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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

El fiscal, a via sacra do exilado

 

 

Geysa Silva

UNINCOR

 

 

A narrativa hispano- americana caracteriza-se por um tecido constante de elementos históricos mesclados à ficção, o que já se tornou recorrente na maioria de seus romances. Vivenciando uma realidade fantástica algumas vezes, outras, fantasmagórica, o artista ibero-americano, em geral, e o escritor em particular convocam, para suas obras, fatos do cotidiano, quer sejam do presente, quer sejam do passado. Esse é o caso de Roa Bastos, que apresenta o drama do povo paraguaio, discutindo em seus livros o poder ditatorial e as implicações da opressão com a loucura, com o exílio de todo um povo dentro de seu país mesmo.

El Paraguai fué llamado por los cronistas Tierra de Promisión, Tierra de Profecía, la Tierra-sin-Males de los antigos guaraníes. Abundaron en ella profetas carismáticos, revoluciones, sacrificios rituales, holocaustos inter-minables, las formas más primitivas de canibalismo. Un pueblo siempre en peregrinación, en romerías, en éxodos, como en busca de una evasión salvadora (ROA BASTOS, 1993, p.66).

Em El Fiscal, Roa Bastos exibe o apagamento da identidade primeira provocado pela condição de exílio. A perda dessa referência leva ao ódio incontrolável e à obsessão pela vingança, que conduzem ao fracasso e à morte. Relacionar os rastros das origens, ligando-os à desterritorialização, é o propósito desse trabalho. Faz-se mister, portanto, destacar a importância do ato de escrita como estratégia de duplicação do espaço perdido, articulando-o sintagmaticamente com um novo lugar de onde se fala. Pensar o ausente, com o olhar eidético concentrado em determinada fase da nação, é o imperativo do exilado Roa Bastos, para quem o ato de escrever se metamorfoseia na própria nação.

Escrever, para o escritor paraguaio, é experimentar o exílio; exilar-se das raízes guaranis e adotar a língua espanhola, ou seja, para escrever, o paraguaio é forçado a adotar a língua do colonizador. O exílio verbal é tematizado pelo silêncio como se vê na passagem :

Prefiero el silencio a las palabras falsas, porque comprendo que no todo puede decirse por infinitas poderosas o pueriles razonesEncontrarás muchos de esos silencios en este largo relato que ahora empieza, mi querida Morena. Leerás en lo escrito lo que no puede decirse de viva voz cuando falta el soplo del espíritu.(ROA BASTOS, 1993, p.118).

Esta condenação a que tem de submeter-se todo intelectual paraguaio representa uma situação singular, própria dos povos denominados subalternos, constituindo-se no paradigma das inúmeras formas tomadas pelo exílio. Uma vez que, para o escritor, coloca-se a impossibilidade de comunicar-se com seu povo, esse deslocamento alegoriza a situação dos que foram obrigados a deixar a pátria ou até mesmo dos que deixaram a vida. Assim, tem-se uma primeira desterritorialização e é esse novo espaço lingüístico-cultural que, paradoxalmente, possibilita a via de regresso à origem perdida, àquele espaço mestiço onde circulam os textos orais, subjacentes ao texto escrito do romancista. Cria-se um discurso dialógico, onde as vozes silenciadas do povo têm a possibilidade de se fazer ouvir.

Desde O Filho do Homem, Roa Bastos toma a si a tarefa de colocar na letra a voz dos excluídos. Em El Fiscal tem-se um romance cujo tema é o exílio, narrando a idealização, o projeto e a execução ( fracassada ) do plano de assassinato do ditador paraguaio. Apresentado em três discursos, que configuram as três partes do romance, todo o texto é marcado pelo signo da ausência. Inicialmente Félix Moral, o protagonista, narra suas memórias e expõe a obsessão de voltar ao país de origem para executar o tiranicídio.

Esta obsesión del regreso es una idea fija. Una idea falsa, perturbadora. Una idea fija quen me atraviesa sin descanso y que me sostiene. Una aguja fija que marca un norte errátil dentro de mí.Mi divisa no podía seguir siendo: "Pienso porque ignoro". (ROA BASTOS, 1993, p.56).

As memórias fazem surgir um Paraguai oprimido em seu cotidiano político, mas dotado de enorme força narrativa; o episódio da Guerra Grande se transforma em motivo da intriga, permitindo o deslizamento do histórico para o imaginado e as lembranças da pátria efetuam o revival de eventos tornados simbólicos, tanto no plano individual como no coletivo. Essa visão idealizada da terra, que se foi obrigado a deixar, torna-se real e necessária à própria sobrevivência. As lembranças se transformam em recordações ( no sentido etimológico do termo). Os eventos deixam de ser apenas episódios passados da vida e são experimentados como algo presente , que perdura em sua extensão emotiva e é o fio condutor capaz de sustentar a própria memória, último receptáculo das histórias singular e nacional.

Vê-se, portanto , que o desenraizamento preenche seu vazio ao adotar a estratégia de afiliação textual que enseja a identificação com um povo, tornado objeto do processo discursivo. Confundem-se a potência da palavra e a impotência do personagem, o heroísmo e a transgressão, a salvação pela narrativa e a ruína pela prisão e morte. Perfaz-se a história emblemática do pai tirano e de sua rivalidade com um filho cujos princípios ideológicos postulam as razões justificadoras da liquidação do poder ditatorial. Essa dissociação contrapõe os valores encenados por uma axiologia dual, em que o fato do tempo-heróico ( o tempo de Solano López ) é sucedido pelo tempo-opressor ( o tempo de Strossener ), tempo este que obriga ao exílio e ao crime. Habitando a França, Félix Moral traz o Paraguai dentro de si, como um outro espaço, metaforizado na trama que tenta recuperá-lo. Nesses termos, Roa Bastos, ao discutir a situação dos exilados contemporâneos, afirma:

Pero el exilio dejó de ser hace tiempo el mal de un país. Es una plaga universal. La humanidad entera vive en exilio. Desde que ya no existen territorios patrios - y, menos aún, patria utópica que es el lugar donde uno se encuentra bien -, todos somos beduínos nómadas de una cabila extinta. Objetos transnacionales, como el dinero, las guerras o la peste. El exilio, efectivamente, es la peor de las enfermedades que pueden atacar a un ser humano. (ROA BASTOS,1993, p.18).

A História paraguaia passa a implicar uma idealidade, estendendo uma ponte entre dois mundos contrapolares: o real subterrâneo das ausências e o ideal da representação estética .Assim, Solano López é mostrado como protótipo de herói imolado pelo bem da pátria e cujo sacrifício é comparado ao de Jesus. Se é possível concordar com Nietzche, quando declara que a verdade dos poetas suplanta a verdade dos teóricos, tem-se que a narrativa é a suprema ocasião para instituir a unidade da fantasia com o evento documentado. A figura histórica é apresentada não em suas qualidades humanas, mas da maneira como permaneceu no imaginário popular. A aproximação com Cristo introduz um outro afastamento, inserido na comparação entre o quadro de Grünewald, Crucificação (Fig.1), e o Cristo de Cerro Corá.

 

 

A obra de Grünewald, exposta no altar do convento de Isenheim, em Colmar, mostra um Cristo com o corpo em decomposição, porém sobressaindo-se dos humanos que o rodeiam, por suas dimensões descomunais. À direita, emerge da boca de São João Batista a inscrição latina: Illum oportet crescere, me autem minui (É preciso que ele cresça e eu diminua), ilustrando a opção do pintor pela relevância dada ao Cristo.

Atente-se para o fato de que a presença de São João Batista, morto anteriormente a Jesus, prenuncia a ressurreição do próprio Cristo; a seus pés os símbolos da eucaristia são o anúncio da repetição do sacrifício do monte Calvário, como acontece no ritual da missa. À esquerda, São João Evangelista sustenta a Virgem, que parece desmaiar diante da cena inenarrável, enquanto Santa Maria Madalena, ajoelhada, ergue as mãos ao Filho de Deus, numa atitude compungida de extrema dor. O fundo da tela é completamente escurecido, acentuando a atmosfera elegíaca e ressaltando a imensa figura que jaz dos pregos, ainda com as mãos voltadas para cima, no gesto inútil de quem pede socorro ao Pai. Os tons esverdeados do corpo do Filho de Deus exibem a putrefação que provoca um impacto emocional no observador e evoca a violência que se repete até os dias atuais, quando o homem se torna ''o lobo do homem'' e não hesita em imolar vítimas inocentes. Reduzido ao humano sofrimento, Cristo encena o pathos trágico do ''bode expiatório'' e revela o divino expresso nos sentidos humanos. Félix Moral e Jimena, ao verem a tela de Grünewald, não conseguem escapar da emoção.

Una increíble fuerza como de la succión magnética nos absorbió hacia el centro mismo del campo óptico del cuadro que irradiabauna fuerza tremenda. La cruz plantada a florde tierra se combaba hacia nosotros. ( ROA BASTOS, 1993, p.96.).

A tela causa um impacto como por exemplo o teatro de Pinter, ou a temática de Bacon. Além disso sua obra exibe aspectos do imediato e da emoção palpável, diante do martírio do Cristo. Essa emoção é fruto da incrível economia de meios que Grünewald conseguiu. A figura humana consegue dar uma majestade escultórica ao morto, enquanto o plano de composição dos volumes de todas as figuras confere-lhe dramaticidade e realismo, fazendo coexistir o humano (a morte) e o divino (a intemporalidade da eucaristia), numa união mística com que sonham todos os cristãos. É evidente a relação de Grünewald com os modernos, apesar de ter vivido no século XVI; impossível não ligá-lo ao teatro da crueldade e ao expressionismo alemão, refletindo a desumanidade do homem para com o homem e também o exílio, não do corpo, mas o exílio da alma, tirada do Paraíso e sendo obrigada a viver no "vale de lágrimas", não permitindo a alienação de quem a contempla. Interessante notar que a Crucificação se encontra numa região de fronteira, entre França e Alemanha, portanto zona de confluência étnica e cultural., um lugar não determinado sob o ponto de vista da nação.

A vida de Grünewald também é marcada pela ausência de informações a respeito de datas e de locais , quando e onde teria nascido; até seu nome é hoje contestado por alguns pesquisadores de sua obra, que afirmam ser Mathias Gothart-Nithart seu verdadeiro nome. Por outro lado , o Cristo de Cerro Corá tem sua autoria discutida, por uma coincidência de nomes: há um Cándido López argentino e outro paraguaio e ambos pintaram a Crucificação.

Es asombrosa, por inexplicable pero también por su perfección (más allá de sus relativos valores pictóricos) esta semejanza que une indisolublemente a los dos pintores coetáneos, casi anónimos aún a cominzos del siglo.(ROA BASTOS, 1993, p.368).

Se Grünewald dedicou praticamente todo o seu trabalho à vida e ao sofrimento de Cristo, Roa Bastos tem se dedicado à história paraguaia , trazendo para a literatura e, portanto, para o mundo, o sofrimento de todo um povo, esquecido mesmo dentro do continente americano. Mais do que isso, ao recriar o espanhol com inovações sintáticas e com a inserção de palavras guaranis, Roa Bastos traz à cena o texto ausente, a ressonância da língua oral que ficou oculta sob a língua do colonizador. Como em outras obras desse autor, vários são os conceitos discutidos. Interessam sobretudo os discursos a respeito da Literatura e do exílio. No primeiro caso, é prosseguida uma discussão iniciada em Eu o Supremo, ampliada agora para a questão biográfica, considerada manifestação de narcisismo deplorável, revestida de falsa modéstia e despida de autocrítica.

Quien pretende retratar su vida tendría que inventarse un lenguaje propio, ditinto de lo que se entende por literatura, esa actividad ilusoria de monederos falsos.Nadie conoce su verdad íntima.Sólo esto les impiede a algunos morir de verguenza.Unicamente en la incertidumbre de lo que uno escribir de sí sin esconderse. (ROA BASTOS, 1993, p.26).

A vida do exilado é comparada a uma história em ruínas, sempre voltada para algo já morto, que se luta para não deixar cair no esquecimento. Os manuscritos de Félix Moral são por ele mesmo chamados de" papéis póstumos", aptos a abrigar aquele que perdeu sua identidade e, por isso, é um morto que ainda vive; o desenraizamento do lugar de nascimento corresponde à perda da identidade original, exibida em manuscritos que, na verdade, são outro texto, quando Jimena se refere a eles, ao escrever a carta para a mãe de Félix. Observe-se que os manuscritos foram escritos na primeira pessoa, condição que se modifica ao serem citados por alguém diferente de seu autor.

Configuram-se várias rupturas, inauguradas com a ruptura inicial, que é a do exílio. Félix Moral rompe com sua corporeidade, ao modificar seu corpo para poder voltar ao Paraguai e matar o ditador.

Sólo he tenido que tomar un nombre falso, despojar al yo de su impossible sinceridad, mudar de aspecto, inventarme nuevas señas particulares:espesa barba tornasolada por canas rubiáceas, una honda hendidura en el arco cigomático, y sobre todo, dominar perfectamente la lengua com el acento y la entonación de provincias. (ROA BASTOS, 1993, p.14.).

Os textos também sofrem rupturas, pois são interrompidos por circunstâncias diversas. O primeiro deles é um diário de Félix Moral, interrompido por sua partida para Assunção. O segundo é a carta de Félix a Jimena, interrompida pelo desaparecimento de Félix. O terceiro narra a ruptura assinalada pela queda da tirania. A íntima relação entre a trama e a organização de sua estrutura pode ainda ser verificada quando se constata que os dois primeiros textos são produzidos em situações especiais: um, no continente europeu, logo, traz, para o espaço do texto, a experiência do exílio; outro, embora dentro do Paraguai, é escrito em segredo, com tinta invisível e em escuridão; o último encerra não só o romance, mas também o fim da tirania.

No sé de donde vendrá esse rayo sonolliento. Quizás se filtre por la ventana, aunque yo la há cerrado herméticamente.[...] Te escribo, viendo apenas lo que escribo. Espero que la pluma de Clovis evite los monitores ocultos de detección. (ROA BASTOS,1993, p.267).

Escrito em tinta invisível, este também é um texto ausente que vem juntar-se aos outros textos, numa multiplicidade por onde se insinuam os múltiplos territórios percorridos pelas personagens. O espaço cultural de origem, deslocado, aparece como um novo lugar, um esconderijo, para que o proscrito se subtraia aos olhos do ditador, da mesma forma que o discurso popular se cala para subtrair-se ao poder autoritário.

Acuados pela intolerância em seus países de origem, chegando em um novo espaço, mergulham na intricada teia de novos hábitos e novas relações, desenvolvendo um sistema auto-repressivo e auto-protetor, muitas vezes transformando-se na imagem invertida deles mesmos. Em El Fiscal, a personagem que melhor exemplifica este comportamento é Mme. Alves. Filha de um poeta, mulher culta , pertencente a um meio de intelectuais (seu pai era amigo de Fernando Pessoa) , Mme. Alves é obrigada a fazer serviços domésticos para sobreviver. Permanentemente de preto, permanece muda, negando-se a falar em outra língua diferente da sua, como última forma de resistência à perda da identidade cultural.

Yo no he entrado aún en nel mundo de este ser introvertido y discreto, refugiado en permanente mutismo. No lo conzco la voz a Mme. Alves.Pasa delante de mí como ante una columna de humo, lo que atribuo a respecto y timidez, no a despreciativa indiferencia. (ROA BASTOS, 1993, p. 23.).

Além de Mme. Alves, também Jimena sofre o problema do exílio, porém de maneira diferente. Nascida em terras estranhas, por seus pais terem se exilado, Jimena percorre os países à procura de uma identidade que não chegou a possuir. O ressentimento funde-se à ternura, seus gestos e palavras deslizam com suavidade pela narrativa, mesmo quando o episódio é dramático, como por exemplo ao escrever para a mãe de Félix, após a morte deste. Seu desesperado caminho em busca da origem é a via crucis de quem luta contra o destino, sem perder a esperança. Idealizada pelo narrador, é para ele a causa e o fim de sua sobrevivência. Mais do que amante, Jimena se transforma na mãe protetora cujo regaço está pronto para acolher seu filho.

Jimena, na verdade, vive no anonimato cultural, perplexa diante de uma anterioridade que estrutura seu presente, de modo a inscrevê-la como "outra" no contexto social. Sua dificuldade em introduzir-se no movimento sincrônico do tempo faz com que tente recuperar as origens através de comportamentos inusitados: colecionar objetos espanhóis, mexicanos, guaranis, "restos de otras épocas, acaso por aquello de que el recuerdo del pasado es todo el futuro que nos queda". Poder-se-ia dizer que Jimena vive no que Bhabha chamou de "comunidade imaginada", unindo-se pela imaginação a um povo que ela sequer chegou a conhecer. Situada à margem, ela transforma seu cotidiano em metáfora do que nunca possuiu: convívio com parentes e amigos de uma terra comum a eles, com a mesma história, mesmas lendas, mesma literatura.

A nação preenche o vazio deixado pelo denraizamento de comunidades e parentescos, transformando esta perda em linguagem da metáfora. A metáfora, como sugere a etimologia da palavra, transporta o significado de casa e de sentir-se em casa (...), através daquelas distâncias e diferenças culturais, que transpõem a comunidade imaginada do povo nação. (BHABHA, 1998, p.199).

Essas palavras de Bhabha, que se referem à nação, podem ser aplicadas à Jimena, singular exemplo de toda uma existência no exílio, cercada por exilados, sem nunca ter experimentado o sabor e o odor da terra de seus ancestrais, sem nunca ter participado de sua política, portanto sem participar de sua História. Jimena é a mãe protetora de Félix, que o recebe e o acolhe, compartilhando o sofrimento e o sacrifício a que o amante se impôs. Porque Félix Moral ( o nome é sintomático ) reedita a tragédia do Cristo crucificado, ao aceitar a missão de sacrificar-se pela redenção do povo paraguaio. A narrativa conta os "passos" de sua via sacra, desde o momento em que se decide a matar o tirano até o desenlace com a tortura e morte. Note-se que a figura do Cristo de Colmar, desprovido da santidade para espelhar o sofrimento, assemelha-se à de Félix Moral ,cujo corpo tinha sido ultrajado pela tortura, apresentando-se como um espectro de si mesmo.

Sus ojos turbios y sinvida me miraron y no me reconocieron. Emitió un confuso sonido, algo como un quejido estrangulado. Se le cayó el plato. Me arrodillé y levanté su mugrienta y leonina cabeza.Descubrí que le habían arrancado todos los dientes.Los rastros de ultrajes y torturas eran visibles en todo su cuerpo.(ROA BASTOS,1993, p.391.).

Compare-se com o Cristo de Colmar, principalmente no que tange à cabeça e aos pés, além da boca entreaberta, sem que seja possível ver os dentes. Cristo é aí inteiramente humano, pura matéria. É nítida a derrota do filho de Deus, transfigurado em homem. Decomposto pela dor física, o Cristo de Grünewald é a imagem de todos os torturados e mortos por diferentes poderes. A pintura serve então à representação do pathos moral, tal como o discurso de Jimena. A imagem produzida pela palavra ou aquela desencadeada pelo olhar afetam os sentidos e despertam a paixão, no leitor e/ou espectador , transformando o amante da arte no místico que vivencia a dor de seu mestre. Um e outro , Cristo e Félix, estão reduzidos a frangalhos, recobertos pela morte e pela decomposição que se anunciam, denunciando a desumanização de seus algozes. Se Cristo teve sua chaga molhada por um pano embebido em vinagre, Félix recebe a última ofensa, quando o coronel Pedro Abad Oro lhe cospe na face: "Volvió el rostro hacia el cuerpo yacente de Félix y esculpió sobre él."

Tem-se, portanto, em El Fiscal e no Cristo de Colmar, pontos de convergência na composição de imagens, o que permite a possibilidade do princípio ut pictura poesis , que afinal está na base de discussões teóricas desde a Antiguidade. A narrativa utiliza a pintura como índice e como ícone de sua trama, exibindo a precariedade da vida, quando exposta ao poder discricionário.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BAKHTIN, Mikail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

BASTOS, Augusto Roa. El fiscal. Buenos Aires: Sudamericana,1993.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myrian Ávila e outros. Belo Horizonte:Ed.UFMG, 1998.

GRÜNEWALD. Coleção Gênios da Pintura. São Paulo: Abril Cultural, número 57,1968.