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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

Palavras roubadas: gesto escritural em Vigilia del Almirante

 

 

Heloisa Costa Milton

Universidade Estadual Paulista/ Campus de Assis

 

 

A propósito da atividade ficcional, Roa Bastos nos dá uma instigante imagem do ofício de escritor, ao tecer uma reflexão em forma de auto-crítica a respeito da gênese de seu romance Yo, el supremo (1974):

Caricatura de Ulises, un autor o compilador viaja en el barco de papel, amarrado al mástil de la vela mayor (también en su sentido de vigilia), fascinado por el silencio terrible de las sirenas de las palabras que traspasa sus oídos taponados de cera. Caricatura de Ulises que ve al mágico animal, mitad pez, mitad mujer, ondear con su cola de escamas reverberantes sobre la página blanca.
He aquí la miseria y grandeza de estos ejercicios que pretenden narrar la historia de una historia (1977, p.168)

Como se observa, o gesto escritural supõe, para o escritor, a mítica aventura da viagem pela linguagem no espaço em branco da página, como decorrência da escuta de um atraente silêncio das palavras. Essa ressurreição de uma negatividade, ou o silêncio a ser rompido das palavras-sereias, com todo seu potencial de significados e sua carga de fascinação, é que permite ao romancista empreender aquilo a que se propõe: narrar a história de uma história.

E, nesse sentido, são infinitas as possibilidades. São muitas as histórias que a história enseja, com sua organização discursiva que atualiza a memória e forma, como conseqüência, uma superestrutura de iluminação do próprio presente. O relato dos acontecimentos históricos constitui, pois, o patamar discursivo que funciona como via de acesso para a imaginação do escritor vasculhar livremente o passado e, seduzido pelo chamado das palavras-sereias, exercitar-se plenamente no campo da criação literária

É essa a prerrogativa principal do romance de natureza histórica: fabular histórias da história, fecundado pelos dados que a historiografia lhe faculta; fabular histórias inéditas e muitas vezes surpreendentes, repaginando signos com autonomia de invenção. Trata-se de um romance, como assinala o escritor, cuya materia está constituida por lo real imaginario, a partir de la irrealidad de la Historia, es decir, de la historiografía, y construida con la irrealidad de los signos del lenguaje. (ibid. p.168). Em outros termos, trata-se de uma modalidade de romance que supõe, da mesma forma como seu discurso gerador, a historiografia, a dinamização de mecanismos de linguagem, de imaginação e reflexão, mas nos domínios do poético.

Ademais, Roa Bastos encarece o aspecto de rebeldia deste tipo de romance no tocante às versões autoritárias da história e sua capacidade de revitalizar outros constituintes da experiência humana. Nesse sentido, considera que o desafio para esse escritor ou compilador que, sendo caricatura de Ulisses, viaja pela imensidão da linguagem numa embarcação de papel, é alcançar alta rentabilidade no manejo simbólico da matéria histórica, logrando com independência o estatuto da ficção.

Acrescente-se a isso que, em se tratando da história de Cristóvão Colombo e sua façanha americana, a capacidade de inventar estimula-se justamente na divergência de dados que a historiografia reflete, uma vez que a trajetória histórica do descobridor é, até hoje, celeiro das mais controvertidas interpretações. Em vista disso, o personagem é fonte inesgotável para a ficção, caracterizando-se por uma história que facilmente transcende o sítio imposto pelo princípio da veracidade, que rege a pesquisa e o discurso historiográficos, para encontrar abrigo quase espontâneo na esfera da realização poética e da pluridiscursividade, conhecendo ali novas e originais formulações, ou melhor, expandindo-se pelas incontáveis possibilidades de construção, que são inerentes ao trabalho ficccional.

Colombo, com suas múltiplas interfaces narrativas, é para Roa Bastos um canto de sereia, mas um canto efetivo e promissor. Não deixa de ser significativo o fato de que o regresso do escritor à produção novelística, após dezoito anos, ocorra justamente com a retomada artística dessa figura histórica que, bem e mal, imaginou e efetivamente ''inaugurou'' um novo mundo para o Ocidente até então conhecido.

Depois de Yo el supremo, o romance Vigilia del Almirante (1992) marca a presença de Roa Bastos na polêmica desencadeada pela efeméride de 1992, embora ele tenha começado a escrever o livro na década de 40, como atesta no excerto final da obra, denominado ''Reconocimientos''. Nessa parte, moldura elucidativa do seu processo de criação artística, o autor expressa agradecimentos a todos os que colaboraram com seu retorno literário, esclarecendo que a polêmica

encendida en torno al V Centenario de la empresa descubridora, que a todos nos concierne, me animó a tomar parte en ella de la única manera en que puedo hacerlo: en mi condición dentro de mis limitaciones de escritor, de hombre común y corriente, de latinoamericano de 'dos mundos'. Retomé los viejos apuntes, me sumergí en la vigilia imaginada del Almirante hacía más de cuarenta años, y traté de narrarla como mejor pude, desde mi punto de vista personal (...) Torrencialmente la fuente seca fluyó y en menos de tres meses quedó terminada la obra que aquí entrego después de diecisiete años de silencio novelístico (ROA BASTOS, 1992, p. 377-378).

Vale ressaltar que nesses dezoito anos de silêncio novelesco, caracteristicamente inquieto, Roa Bastos dedicou-se a uma intensa atividade, conformando uma sucessão de escritos inacabados e sempre recomeçados, as misérias e grandezas do exercício de escrever, segundo suas palavras, em meio a um conjunto de circunstâncias pessoais problemáticas em que se sobressaiu como um escritor comprometido com a oposição sistemática aos regimes ditatoriais da América Latina e do Paraguai em especial. Nesse sentido, a refiguração artística da história de Cristóvão Colombo emblematiza a disposição de rever e refletir sobre a trajetória de um mito que tanto toca de perto a sua experiência pessoal quanto recobre, como marca insistente, a experiência americana coletiva, em seus variados contornos ao longo do tempo.

No romance, a representação que Roa Bastos faz de Colombo acomoda-se, em muitos momentos, aos dados veiculados por importantes hipóteses históricas. Assim, Colombo é judeu e genovês (tese de Madariaga) e deve sua façanha às informações que lhe foram prestadas pelo Piloto Anônimo (tese do historiador Juan Manzano), denominado Alonso Sánchez de Huelva, tal como consta na obra do Inca Garcilaso de la Vega. Isto, só para explicar o aproveitamento de hipóteses consagradas, num romance no qual o protagonista comparece como aquele que se apropria do descobrimento alheio, no caso o do Piloto, advindo, a partir daí, seu estatuto novelesco de encobridor da América e, além disso, de sombra daquele que seria o ''verdadeiro artífice'' da gesta americana, como o romance propõe nas suas formulações finais.

No entanto, o Colombo do escritor paraguaio, sobrepondo-se aos dados da interpretação histórica, é sobretudo um Dom Quixote do Mar Tenebroso, em notória identificação com o mito literário. Sendo assim, na fábula, de tanto consumir as chamadas ''histórias mentirosas'', perde o juízo, caracterizando-se não como um cavaleiro andante, mas como um Cavaleiro Navegador em busca de marítimas maravilhas asiáticas. Alucinado e fracassado, tanto quanto o mito espanhol, tem sua Dorotéia Encantada e os seus moinhos de vento nas províncias orientais de Cipango e Catay, que, pela magia do delírio, são transferidas para o Ocidente e projetadas, obsessivamente, no Novo Mundo. É esse o teor da revisão da história empreendida pelo romance.

Contudo, é preciso ressaltar que o Colombo de Roa Bastos é, também, aquele que resgata a dignidade pessoal e a dignidade histórica, perdidas no sonho fabuloso das Índias Ocidentais, quando consuma um último e grandioso gesto, no epílogo da fábula. Prestes a morrer no convento de Valladolid e já recuperado do estado de loucura (aqui, novamente se delineia com força o mito quixotesco na descrição de uma morte em estilo e ambientação cervantinos), ele pede perdão aos historiadores, inclusive ou principalmente a Cide Hamete Benengelis do Quixote, que durante cinco séculos teriam tentado decifrar os enigmas de sua vida. Essa vida o Colombo que se autobiografa caracteriza, significativamente, como um legado de histórias fingidas. Com tal motivo fabular, o romance recobre a interpretação histórica de contornos ficcionais, simbolizando-a na esfera do mito.

Além disso o personagem, após o mea culpa redentor expresso no pedido de perdão, prossegue no resgate da dignidade pessoal e histórica por meio de outros procedimentos repaginadores dos fatos do passado. Ele cancela os processos jurídicos que acionara para reconquistar os direitos subtraídos pela coroa espanhola, renega o que passa a considerar ''loucos disparates cometidos nas Índias Ocidentais'' e dita novo e definitivo testamento, no qual ordena que sejam devolvidos aos proprietários originais as terras usurpadas em um descobrimento que, no cômputo final, nunca existiu:

Mando que todas las tierras y posessiones que se me han atribuido en recompensa de un descubrimiento que no ha sido hecho por mí, y de una conquista que yo he comenzado y que va contra todas las leyes de Dios y de los hombres, sean devueltas a sus propietarios genuinos y originarios (ROA BASTOS, 1992,p. 374).

decreta Colombo, expiando a culpa da parte que lhe cabe na história.

Esse epílogo é o ponto alto da inserção da obra de Roa Bastos na polêmica sobre a efeméride de 1992. Tendo realizado no Novo Mundo o delírio quixotesco levado às últimas conseqüências, o herói purga-se de sua má consciência e, curado e nutrido da bondade inerente ao fidalgo Quijano, restitui uma desejada justiça histórica.

El ajuste de contas almirantino – comenta o narrador onisciente – duró más de doscientos años. La cuenta grande, quinientos, que en este año se cumple sin estar resuelta y, peor aún, aumentada, enriquecida por los intereses y avideces de otros imperios más nuevos, arrogantes y poderosos, pues la España imperial no pasó de Ayacucho, donde ya para entonces estaba exhausta; algunos dicen, de su propia grandeza (ROA BASTOS, 1992, p. 371).

Como se nota, a reflexão sobre o descobrimento alcança atualidade, num enlace de tempos que faz referência a uma crise que, deflagrada em 1492, prima pelo caráter de permanência. Na mesma direção, a apresentação do evento histórico como encobrimento é a contribuição do texto literário para a revisão da história, uma contribuição que leva o leitor a redescobrir o homem Colombo e nele flagrar erros, obstinações, amores e veleidades diversas, aspectos que o derrubam do pedestal heróico para, por outro lado, valorizá-lo em sua condição humana.

O romance recobre principalmente a primeira navegação, pautando-se pela reescritura que o protagonista faz do seu Diário de bordo e de outros escritos históricos de sua autoria, como o Libro de las profecías e o Libro de memorias, além de outras criações novelescas como um tal Diario privado e o Libro de las cosas extrañas, conjunto que compõe um universo escritural anacrônico, ao qual se somam fragmentos discursivos de Shakespeare, San Juan de la Cruz, Valéry, Vallejo, Rulfo, e que totaliza um tecido por onde desfila romanescamente a história, ao longo das 52 partes constitutivas da obra.

No relato intervêm, como vozes principais, dois narradores. Um, em primeira pessoa, aciona a narração, comenta, pondera e executa a crônica do descobridor; dotado de uma ubiqüidade temporal que oscila entre 1492 e os dias de hoje. O outro é o próprio Colombo quem, a partir da vigília conciliadora do leito de morte, rememora e reescreve seus fatos e feitos. Essa revisão autobiográfica, se ideologicamente redunda na devolução do continente usurpado, no âmbito metalingüístico alicerça a multiplicação desenfreada de escrituras que o protagonista institui.

Nesse sentido, Colombo caracteriza-se como um prolixo escrivinhador, cuja maior ambição é escrever um livro semelhante ao Dom Quixote, por sua qualidade de epopéia suprema entre o bem e o mal. Além disso, orienta-se pelo princípio metalingüístico de que não existe um texto original. Em sua concepção, a palavra escrita é sempre uma palavra roubada, tecida num circuito de apropriação que vai do roubo de um livro, roubado por sua vez de outro livro, e assim sucessivamente até que o único fenômeno verdadeiro seja o vazio da palavra original. No entanto, cabe ao leitor eventual preencher esse vazio, com a leitura dos signos que não estão explicitamente revelados e a atribuição de substância de verdade a esse universo de frases vazias, roubadas e mentirosas.

Recorde-se, a propósito, que o protagonista da obra, a exemplo do mito que o condiciona, é um ávido leitor, originando-se daí seu estado de loucura e, conseqüentemente, a sua ação no sentido de transferir, fantasiar e inventar a realidade de um novo mundo, como se depreende da seguinte passagem:

Cayó en la manía – conta-nos o narrador onisciente – de que aquellas historias, en particular la de descubrir un mundo resplandeciente de oro y pedrerías al outro lado del mundo, él podía ir pasándolas poco a poco a la realidad. Y esto sin ser historiador ni poeta.
Vivía pues nuestro hombre en medio a una babel de libros (ROA BASTOS, 1992, p. 172).

Este trecho, de extração metalingüística, torna patente que, por ser leitor desenfreado, o personagem acredita e reivindica para si o poder de compor realidades fantásticas. E mais: além de constituir-se nesse leitor sem limites, imbuindo-se do ofício de mago das palavras, o protagonista dispõe-se a inscrever novos fatos históricos (no momento em que consuma as suas novas memórias), sobrepondo-se ao historiador e ao poeta, já referidos por Aristóteles.

Ora, se a cosmovisão do Colombo novelesco obedece a esses parâmetros escriturais, claro está que sua façanha, representada também de forma escritural, corresponde a uma ação vazia, roubada e mentirosa, traduz-se num descobrimento que não descobriu, um mundo imaginado que não se concretizou. É esse o sentido da vigília última do Almirante: a tomada de consciência de que o seu feito histórico equivale, como ele próprio avalia, ao más grande libro de historias fingidas que leerán los siglos (1977, p.368), destinado a ter tantos significados, segundo afirma o aventureiro escrivinhador, quantos leitores haja no mundo.

Fazendo circular a relação entre história e ficção como eixo propulsor do romance, na introdução Roa Bastos qualifica seu trabalho de relato de ficção impura, o mixta, oscilante entre la realidad de la fábula y la fábula de la historia. Além disso, qualifica-a de obra heterodoxa, ahistórica, acaso anti-histórica, anti-maniquea, lejos de la parodia, del pastiche, del anatema y de la hagiografía (1977,p.11) Com essas proposições do escritor, relativizam-se as fronteiras que dividem os territórios, conciliando-se, no espaço privilegiado do tecido ficcional, as possíveis realidades históricas com a potencialidade das realidades imaginadas.

De fato, o romance Vigilia del Almirante cumpre plenamente essa missão e o desafio de evocar, sugerir, projetar outras versões da história, realizando, no interior da sua linguagem poética, aquilo que Roa Bastos descrevera como o projeto da sua obra Yo el Supremo:

Mi ''proyecto ''de novela consistió, pues, en un primer momento, en escribir una contrahistoria, una réplica subversiva y transgresiva de la historiografía oficial. Mientras compilaba el texto experimentaba cada vez com mayor fuerza que debía utilizar esta rebelión contra la historia de los historiadores como eje del sistema operativo del texto. También como posibilidad de explorar otras dimensiones de la existencia humana, individual y colectiva. En este segundo momento, las leyes internas del texto a través de los códigos que el texto mismo iba elaborando, me impusieron la necesidad de una transformación: la antihistoria debía convertirse en una intrahistoria y, simultáneamente, en una transhistoria. La garantía de este logro, improbable e incierto, radicaba en alcanzar la realidad autónoma de la historia imaginada; en otras palabras, lograr el estatuto de la ficción pura, sin que esto implicara la ruptura de los referentes históricos (ROA BASTOs, 1977, p. 177).

Roa Bastos acaba estabelecendo, assim, um constructo estético-ideológico de iluminação de sua obra poética, válido para um e outro romance. À Vigilia del Almirante, que dialoga com seu antecessor inclusive pela dinamização do mito de Dom Quixote, também se aplicam os selos de anti-história, intra-história e trans-história, porque, na confluência de seus signos em transitividade na morada simbólica, na disseminação de seus múltiplos significados, a obra também compõe uma réplica subversiva e rebelde às asserções da história oficial.

E, seja como for, é prerrogativa da ficção traçar inúmeras possibilidades de leitura da memória da existência humana, no plano individual e coletivo. O Colombo de Roa Bastos, protótipo anacrônico do Cavaleiro da Triste Figura, irradia, pela via privilegiada da encenação literária, novas e atuais aproximações a um campo temático vasto e conturbado, como o que envolve descobrimento, colonização, pós-colonialismo, modernidade e pós-modernidade da América, um conjunto de questões que, com arte e artimanha, o romance propõe ao leitor.

 

BIBLIOGRAFÍA

ROA BASTOS, A. Vigilia del Almirante. Madrid: Santillana, 1992.

_______________ Algunos núcleos generadores de un texto narrativo. Escritura: teoría y crítica literarias. Caracas, julio\diciembre (II-4): 168, 1977.