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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

Das novas alucinações no romance histórico hispano-americano: o caso de Reinaldo Arenas

 

 

Márcio Antonio de Souza Maciel

UEMS (Dourados/MS)

 

 

''Eu vejo o futuro repetir o passado.
Eu vejo um museu de grandes novidades.
O tempo não pára'' (Cazuza)

 

Prólogo: do romance moderno

Quando em maio último, na Europa, por mais de cem estudiosos entre escritores e críticos de literatura do mundo todo, El Ingenioso hidalgo D. Quijote de la Mancha fora eleito como ''a melhor obra de ficção de todos os tempos'', pouco se falou acerca do veredicto do Instituto Nobel. Sim, aquele do prêmio anual.

Se por um lado no campo alheio à academia, claro, a notícia não causara maior impacto, já, por outro, no meio acadêmico, a boa nova somente veio referendar a legitimidade de seu lugar no cânon literário. A obra-prima de Miguel de Cervantes (1547-1616) é considerada, por muitos, como a gênese do romance moderno, que se consagraria a partir da renascença cultural. Esse ''romance retratou, desde o começo, conflitos individuais e vida cotidiana, opondo-se a noções medievais latinas'' (SCHÜLER, 2000, p.6); daí, por certo, a sua atualidade nas andanças de um cavaleiro sonhador e seu ajudante cético.

Entretanto, os valores agregados a D. Quijote estão para além da crítica às novelas de cavalaria, ao descoberto egoísmo humano e, como resultado, ao nascimento da sociedade burguesa; há outros que, igualmente importantes, fazem-no predecessor e (por que não) modelo das teorias bakhtinianas, como: a polifonia, a intertextualidade, a carnavalização e o humor, dentre outras. Enfim, instâncias que pensávamos localizadas inertes no (já passado, meu Deus) século XX.

Se começamos por Cervantes e já justificada sua relevância, também cabe, por eqüidade, que não nos esqueçamos do crítico russo Bakhtin, que atentou para essas características tão caras à modernidade e (por extensão) ao romance dessa época. É importante que diferenciemos (para mais tarde traçar o paralelo) entre uma primeira modernidade (essa a do Cervantes) que estaria compreendida entre o fim do Renascimento, com o estabelecimento das línguas romances, e o início da época barroca e a outra (a de Bakhtin e nossa, pois bem), a das vanguardas do último século. Feita a distinção, deter-nos-emos, agora, nas mudanças ideológicas advindas dessas transformações, na segunda ''modernidade''.

O nosso século XX inicia-se sob o signo da contestação e da experimentação; os vários ''ismos'' estão aí para atestar: Futurismo, Cubismo, Dadaísmo, Surrealismo, Psicanálise, Marxismo, dentre outros tantos. A literatura, como parte e espelho da sociedade, de verdade, percebeu e assimilou, também, tais contribuições de Freud e de Marx, como outros, para citar os dois maiores gênios revolucionários. A ''descoberta'' e o estudo do inconsciente, assim como a luta entre o capital e a força de trabalho, por exemplo, influenciaram e influenciam fortemente a produção artística, propiciando inovações na ideologia e, claro, nas formas estéticas.

Contudo, esse movimento ''de vanguarda'' que apenas no Brasil, por conta da Semana de Arte Moderna, em 1922, e na América Hispânica, por associação, chamou-se de ''Modernismo'', fora empreendido aqui de maneira divergente que lá, na Europa. Ademais da denominação, conforme já observamos, em terras americanas (Brasil e América de Língua Espanhola) não podemos carregar nas tintas para falar em ''modernismos'', visto que não passáramos (como eles –os europeus) por mudanças tão significativas de nível técnico-industrial (como a Revolução Industrial), daí a nossa (mais uma) singular distinção.

O nosso Modernismo, capenga se comparado ao europeu, daquele se difere; se não tanto quanto à forma, ao menos, quanto ao conteúdo. Basta, para isso, que pensemos em Macunaíma, de Mário de Andrade, no Brasil, e/ou em El Aleph, de Jorge Luís Borges, na Argentina, bem como no correspondente Realismo Mágico/Fantástico da América Hispânica, por exemplo.

Paradoxalmente, se não tivemos um ''modernismo'' na América Latina (e graças a isso), no entanto, somente aqui pudera florescer tal ''convicção literária'' que é como prefere denominá-lo (o movimento artístico) Carpentier: ''... esa presencia y vigencia de lo real maravilloso no era privilegio único de Haití, sino patrimonio de la América (grifo nosso) entera donde todavía no se ha terminado de establecer, por ejemplo, um recuento de cosmogonías. Lo real maravilloso se encuentra a cada paso en la historia del Continente'' (apud FRANCO, 2001, p.300-1).

Como representantes dessa ''convicção literária'', além do renomado escritor cubano, podemos elencar os argentinos Jorge Luís Borges e Julio Cortázar, o guatemalteco Miguel Ángel Asturias, o colombiano (e Nobel) Gabriel García Márquez e, um pouco mais recente, o mexicano Carlos Fuentes, entre outros.

De posse, então, dessa nova condição de americanos, portanto, ''novomundistas'', o escritor hispano-americano, de modo distinto do europeu, que tenta ''descobrir via arte literária a lógica do comportamento humano e do viver social'', muito pelo contrário, ''contesta essa falsa crença, pondo em relevo o que há de absurdo e desumano na realidade individual e social. O fantástico passa a ser utilizado como recurso expressivo para evidenciar a inexistência de fronteiras entre o real e o imaginário, o natural e o abnorme'', segundo D'ONOFRIO (2000, p.435). Não é de se estranhar, pois, seus vários antitéticos nomes: Realismo Mágico, Real Maravilhoso ou, igualmente, Realismo Fantástico.

Em linhas gerais, essa ''nova'' escritura hispano-americana que, por isso mesmo, muda, pela primeira vez, o foco de atenção e empréstimo, vai tratar da busca pelas questões americanas. O movimento agora é centrípeto e não mais centrífugo como o era antes. Mitos pré-colombianos, o tempo ontológico, a sociedade atual, a realidade mesclada com o sonho, serão, grosso modo, a tônica para esses novos romances.

 

Do (novo) romance histórico (hispano-americano)

Um pouco anterior às inovações ideológicas do final do século XIX e começo do século XX, é o romance que se passou a chamar de histórico. Claro, o epíteto que o qualifica vem do embricamento entre a ciência da História (com maiúscula mesmo) e a história (que hoje dispensa o e de outrora -o enredo). No entanto, já de começo, alertamos que afora o restritivo ''histórico'', o romance de cunho histórico, ficção historiográfica (enfim, os nomes são muitos) não é história, tampouco o pretende ser.

Hoje já é quase consenso que, conquanto haja registro de romances outros alheios ao modelo scotiano e a ele inclusive anterior, data do começo do século, em 1819, com o mesmo inglês Walter Scott, a base para o paradigma de romance histórico que, ora estudamos, na sua obra Ivanhoe. Esse romance, diferentemente do ''novo romance histórico'' que mais adiante veremos, tinha como pressuposto antes mais o apego à historiografia factual e menos à construção dos personagens nele inseridos. É o que nos diz ESTEVES por meio do seguinte esquema:

1- A ação do romance ocorre num passado anterior ao presente do escritor, tendo como pano de fundo um ambiente histórico rigorosamente reconstruído, onde figuras históricas ajudam a fixar a época, agindo conforme a mentalidade de seu tempo.
2- Sobre esse pano de fundo histórico situa-se a trama fictícia, com personagens e fatos criados pelo autor. Tais fatos e personagens não existiram na realidade, mas poderiam ter existido, já que sua criação deve obedecer a mais estrita regra de verossimilhança. (1998, p. 129)

Tal constatação não diminui o seu valor, tampouco põe literatura e história em campos opostos como adversárias; senão, antes, as baliza e as aproxima, pois que, ainda com o estudioso, ''a história e a literatura têm algo em comum: ambas são construídas de material discursivo, permeado pela organização subjetiva da realidade feita por cada falante, o que produz uma infinita proliferação de discursos'' (ESTEVES, 1998, p.125).

Filho do romance histórico ''tradicional'' scotiano, mas (como todo filho) dele um pouco divergente, portanto, um pouco além, é o que se convencionou (por analogia ao progenitor) chamar de ''novo romance histórico'' e, em nosso caso específico, ''hispano-americano''. Esse ''novo'' subgênero seria um prolongamento do primeiro, porém com algo de ''mais leve'', mais centrado no personagem e menos no fato histórico datado como o era o seu anterior. Agora, nesse novo gênero, haveria não só a releitura da história, como também essa seria acompanhada de um algo a mais: a releitura seria crítica.

Vários são os estudiosos que se debruçam sobre essa ''outra'' maneira de escrever a ficção historiográfica. Primeiramente Ainsa, em célebre estudo de 1991, lista as dez características desse ''novo'' romance.

Depois, mais tarde, por outro igualmente importante crítico, Menton (1993), são essas dez características reduzidas a seis. Tais caracteres, vale lembrar uma vez mais, tentam, ainda, diferenciar ou completar as nuances entre o ''velho'' e o ''novo'' romance de cunho histórico e, de certo modo, bebem na teoria de Bakhtin. São essas:

1- A representação mimética de determinado período histórico se subordina, em diferentes graus, à apresentação de algumas idéias filosóficas, segundo as quais é praticamente impossível se conhecer a verdade histórica ou a realidade, o caráter cíclico da história e, paradoxalmente, seu caráter imprevisível, que faz com que os acontecimentos mais inesperados e absurdos possam ocorrer;
2- A distorção consciente da história mediante omissões, anacronismos e exageros;
3- A ficcionalização de personagens históricos bem conhecidos, ao contrário da fórmula usada por Scott;
4- A presença da metaficção ou de comentários do narrador sobre o processo de criação;
5- Grande uso da intertextualidade, nos mais variados graus;
6- Presença dos conceitos bakhtinianos de dialogia, carnavalização, paródia e heteroglossia ( MENTON, apud ESTEVES, 1998, p.134).

Assim, pois, com o receituário de Menton à mão, todavia, para além dele, é que qualquer que seja o adjetivo que se escolha para designá-lo: novo romance histórico, romance de cunho histórico, romance de ficção historiográfica e/ou ad eternum ou até mesmo a série de traços que se discriminem para caracterizá-lo, encontramos na novelística hispano-americana dos últimos cinqüenta anos (para tomar a publicação de El reino de este mundo, de Alejo Carpentier, de 1949) um corpus muito substancioso de romances que vieram (e vêm) transformando, de modo deveras contundente, as maneiras tradicionais de representação ficcional da história.

 

Da escrita de Reinaldo Arenas

Muito antes das glórias (sempre) póstumas alcançadas com a autobiografia e a conseqüente adaptação de Antes que anochezca, de 1991, para o cinema, o escritor cubano Reinaldo Arenas (1943-1990) já deixara sua contribuição para a literatura mundial e, claro, para as letras hispano-americanas. Se não fora quando da sua estréia no mundo ficcional com o quase brilhante Celestino antes del Alba, de 1967, fora pouco tempo depois com o segundo (e seu mais importante) romance, El mundo alucinante, de 1969. Nesse romance (e desde a capa ele, o autor, já deixara claro seu caráter ficcional), Arenas se propõe a reescrever um momento da história mexicana e, logo, da história americana seguindo um documento, qual seja, um texto prévio: as Memórias do frade Servando Teresa de Mier (1763-1827), dominicano mexicano que sofrera uma vida de perseguições e de aventuras inverossímeis, por haver questionado, em uma célebre pregação, a aparição da Virgem de Guadalupe, padroeira da América Latina e símbolo para os mexicanos de hoje e de sempre.

Deste modo, o novo texto (o romance) adquire valor não somente em si mesmo (dada a qualidade artística e inventiva da prosa de seu escritor) como estrutura terminada, senão antes, também, por suas relações intertextuais, uma vez que as transformações operadas pelo autor põem em relevo, igualmente, o seu labor textual.

O romance de Reinaldo Arenas que, quase didaticamente, apresenta todos os matizes para a sua inclusão dentre os que, ora estudamos, sob a etiqueta de ''novo romance histórico hispano-americano'', não apaga o intertexto; mas, pelo contrário, o projeta para novos direcionamentos. Significados outros há que o atualizam de forma que a aproximação constante com o religioso Servando Teresa de Mier a identifica com a infausta situação de Arenas mesmo, nos anos subseqüentes à Revolução Cubana. A trajetória de Fr. Servando, acreditamos, é uma metáfora do acercamento que o poder (em todas as suas instâncias) tem reservado às vozes que dele divergem (como ambos, Arenas e o próprio Servando). Os mecanismos de escritura (história para a ficção) e reescritura (ficção para a história) que o autor propõe para o seu romance e, ao seu turno, para a sua visão histórica, correspondem de modo perfeito à uma possível apologia (e lembremo-nos da Apología do frade) da diferença que o leitor encontra na obra. O romance constrói absurdamente um mundo carnavalesco e alucinante (por muito real que se mostra) ao recolher o mais cruel do humor areniano.

De outro modo, a ficção também está concebida como um organismo de relativa independência de multiplicidade semântica que nos permite leituras outras. O jogo discursivo que compõe o tecido enredado, proposto pelo hábil narrador, faz com que se aumente a (multi) significação do mesmo texto ao ''colar'', sobrepor versões e diversões para um mesmo acontecimento, freqüentemente contraditórias, desde a perspectiva adotada, ou que de forma recíproca se anulam. E, assim, duelando entre o dito e o mal dito ou ainda o não dito, a construção que o leitor pode depreender da leitura da(s) história(s) pode ver-se negada em parte ou no todo por seqüências incompatíveis.

O mundo alucinante nos conta a saga de Fr. Servando Teresa de Mier da sua infância em Monterrey até a sua morte na capital mexicana, após a empresa e luta pelo processo de independência de seu país. É nesse ínterim, nesse factum em que transcorre a história da perseguição que gerará os pontos-cume do romance: a perseguição e a fuga. Entre esses elementos pares da estrutura da história (pícara, pois não) se amoldam os momentos que definem a personalidade do personagem . Personalidade que (como todas as grandes) concilia as contradições e as utopias de que somos vítimas todos nós.

Dito de outro modo, o romance é, como tantos outros exemplos hispano-americanos, não somente uma crítica, mas antes também (por que não o admitir?) a exposição do (por vezes) ridículo no discurso histórico oficial. No afã de transpor a normatividade e a cronologia historicistas, o humor (e já o mencionamos antes) aparece como desvio outro para reinterpretar e propor um sentido (ou um nonsense) à uma parte da História que, de verdade, é toda a história. Ao preferir o oficioso ao oficial historiográfico, o romance, pelo viés, revela o intra-histórico: a visão sim ainda da história, porém desde o nível mais humano, a maneira pela qual os vários acontecimentos podem resultar em um sem fim de possibilidades. Finalmente, a obra se caracteriza, para referendar, como romance histórico, também, pela sua simples razão paradoxal de que o seu senso de humor e os artifícios textuais de que se vale negam a possibilidade da verdade que se esconde lá na história individual da agonia de alguém.

 

Do epílogo

Já não é segredo entre nós que nesse embricamento entre a ficção e a história, a literatura da América de expressão hispânica, de maneira singular, tenha se mantido nos interstícios, nesse meio-algo, rompendo com os ditames hegemônicos (com muito sucesso) discursivos de outros. Talvez só aqui pela nossa própria trajetória inclusive, às vezes confusa, às vezes até mesmo surreal, tal realidade pudesse se dar.

O cubano Reinaldo Arenas, nessa sua obra-prima, e com muita legitimação no que diz e faz, reescreve a história de um outro herói da independência mexicana, porém sob, claro, outro olhar. Ele (Arenas-escritor) lança luz no caos e põe em discussão a primeira versão dos fatos.

Para tal empresa, se mune (agora a sua criação literária: o narrador) de várias vozes que se dizem e se contradizem para, quiçá, tentar dizê-lo mais tarde. Só ao final podemos perceber isso. É claro que é uma história de várias histórias, de cacos de vidas, mas assim também o somos. A nossa história está, cremos, não ainda por ser escrita, senão que ajustada.

 

Bibliografia

ARENAS, R. O mundo alucinante. Trad. Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Record, 2000. 299 p.

D'ONOFRIO, S. Literatura Ocidental – Autores e obras fundamentais. 2.ed. São Paulo: Ática, 2000. 527 p.

ESTEVES, A. R. O novo romance histórico brasileiro. In: ANTUNES, L. Z. (org.). Estudos de literatura e lingüística. Assis: Arte e Ciência, 1998, 319 p.

FRANCO, J. Historia de la literatura hispanoamericana. Barcelona: Editorial Ariel, S.A., 2001. 398 p.

SCHÜLER, D. Teoria do romance. São Paulo: Ática, 2000. 88 p.