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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002
Literatura, história e o problema das narrativas encantadas (na história de Miguel Mármol, por exemplo)
Marcos Piason Natali
CNPq/USP
Este trabalho é sobre o lugar do encantamento na modernidade e em suas principais formas narrativas. Apesar de ser, de certa forma, sobre a América Latina, sua história começa com um encontro na antiga Tchecoslováquia. Em maio de 1966, dois salvadorenhos – Roque Dalton e Miguel Mármol –encontraram-se em Praga. Dalton, romancista e poeta, estava em Praga a convite do Partido Comunista da Tchecoslováquia, na condição de membro do Partido Comunista Salvadorenho. Miguel Mármol, também comunista, pertencia a uma geração anterior de militantes políticos e havia sido uma peça fundamental nos acontecimentos mais importantes da história da esquerda salvadorenha até então. Ele foi, junto com Farabundo Martí, um dos fundadores do Partido Comunista Salvadorenho, e dois anos mais tarde ajudou a planejar e executar a célebre insurreição popular de 1932, um movimento que seria reprimido em poucos dias pelo exército e terminaria tragicamente com a matança de cerca de trinta mil pessoas. Mármol sobreviveu ao massacre, continuou a trabalhar no Partido Comunista, no movimento sindicalista e na mobilização de camponeses, foi preso várias vezes e viveu um período no exílio na Guatemala (onde, aliás, ajudou a fundar o também comunista Partido do Trabalho) (DALTON, 1993).
Quando ocorre seu encontro com Roque Dalton em Praga em 1966, Mármol já era, portanto, uma figura lendária entre a esquerda centro-americana. Dalton sugeriu que aproveitassem a ocasião para que Mármol lhe contasse a história de sua vida e Dalton a registrara. Dalton explicaria depois que seu objetivo, ao recolher a história da vida de Miguel Mármol, fora unicamente político. Assim sendo, ele via a entrevista como parte de sua militância comunista e através dela desejara oferecer aos revolucionários salvadorenhos e latino-americanos um modelo histórico que servisse de contrapeso para as ''posiciones seudorevolucionarias, anti-marxistas y contra-revolucionarias'' que, segundo ele, prevaleciam na América Latina naquele momento (DALTON, 1993, p.30). Para Dalton, o relato cumpriria esta função dado que Mármol era, em suas palavras, ''la encarnación prototípica del activista sindical comunista latino-americano'' (DALTON, 1993, p.16). Mármol finalmente concordou com a idéia e a entrevista, que começara de forma despretensiosa, acabaria durando três semanas e renderia mais de quinhentas páginas de texto.
No entanto, quando Mármol começou a contar a história de sua vida, começaram a surgir episódios que sugeriam que o rótulo ''comunista modelo'' se contorceria incomodamente se colocado ao lado de seu nome. Ao descrever sua infância, por exemplo, Mármol afirmou que em Ilopango, pequeno povoado perto de San Salvador, milagres eram acontecimentos corriqueiros. Assim, quando a família não tinha comida suficiente para todos, a mãe colocava uma frigideira sobre o fogo e se ajoelhava diante do altar caseiro. Antes de acabar de rezar, uma vizinha invariavelmente aparecia à porta oferecendo farinha para as tortillas.
Vários outros episódios da história contada por Mármol, envolvendo milagres ou seres inumanos, seriam ilustrativos aqui; vou me deter em apenas dois. Certa noite, em 1933, Mármol encontrava-se na companhia de um grupo de pescadores, na beira de um rio. De repente, uma linda jovem surgiu da floresta, pediu alguma orientação e, após agradecer a gentileza dos pescadores, seguiu o seu caminho. Assim que eles a perderam de vista, escutaram uma risada estridente e imediatamente suas redes se encheram de peixes. Todos os pescadores concordaram que a mulher havia sido a Cihuanaba, um conhecido espírito de origem náuatle, e que eles haviam sido recompensados pela amabilidade com que a trataram. Trinta e três anos mais tarde, na entrevista a Dalton, Mármol se recusava a negar esta versão do acontecimento e confessou que nunca havia contado a história em tantos anos porque sabia que seus companheiros comunistas ridicularizariam o relato (DALTON, 1993, p.345).
Alguns anos depois do incidente com a Cihuanaba, Mármol fugia da perseguição de um governo militar e cruzou a fronteira entre El Salvador e a Guatemala. Sem o perceber, ele havia entrado em um pasto e estava diante de cinco touros raivosos que avançavam em sua direção. Mármol imediatamente invocou São Francisco e de repente os touros pararam e deram meia volta (DALTON, 1993, p.450). Como no caso da aparição da Cihuanaba na beira do rio, ao narrar este episódio Mármol deixa aberta a possibilidade da existência objetiva de seres inumanos.
Marx – quem Dalton diz que Mármol havia estudado escassamente – empregou uma série de termos extremamente enérgicos para descrever elementos religiosos como os que encontramos na narrativa contada por Mármol: restos não conquistados, idiotice da vida rural, consciência tribal de cordeiros (MARX, 1978, p. 241, 477), ópio do povo, mistificação (MARX, 1977, p. 169, 175). Qualquer forma de religiosidade, desde a mais ''primitiva'' até a mais sofisticada, era, simplesmente, superstição, as sobras de uma visão de mundo ultrapassada e condenada a desaparecer. Neste aspecto, o papel da burguesia para Marx seria positivo: ela espalharia sua ideologia pelo globo, afogando os ''êxtases sagrados do fervor religioso'' e varrendo todos antigos preconceitos. ''Tudo o que era sólido se evapora no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e por fim o homem é obrigado a encarar com serenidade suas verdadeiras condições de vida e suas relações com a espécie'' (MARX, 1998, p.146). A religião seria um véu cobrindo o mundo, um véu a ser retirado pela racionalidade que acompanharia a expansão do capitalismo. Além de falsa, a religião seria também um obstáculo para a justiça social, conclusão a que chegam várias vertentes do pensamento marxista: só teremos uma sociedade mais justa quando a desrazão e a superstição forem banidas da nossa visão de mundo. Aos subalternos, então, o marxismo fazia uma oferta, mas, como lembraram Walter Benjamin e, mais recentemente, Roberto Calasso, a oferta é de certa forma desonesta e dissimulada (CALASSO, 1997, p.155). Ela oferece a liberdade, mas somente após o proletariado ter se despido de suas roupas. Projeta-se a emancipação ao futuro, mas não sem antes decidir que neste futuro não haverá lugar para alguns dos elementos mais preciosos da cultura subalterna: seu passado e sua religiosidade. A armadilha, no caso, é que isto é vendido como uma forma de libertação.
O respeito com que Mármol é tratado devido a sua participação na fundação do comunismo centro-americano não lhe garante imunidade a acusações deste tipo. No caso de sua história oral, as acusações surgem já no ensaio introdutório escrito por Roque Dalton e publicado nas três edições em que o testemunho apareceria. Neste texto Dalton adverte que o relato de Mármol, apesar de seu valor imensurável, deve ser visto como um texto ''incompleto''. O ingrediente que falta ao texto, e que Dalton tenta acrescentar na introdução e em notas de rodapé, é algo que ele chama de ''análise'' e que inclui, por exemplo, uma narrativa macro-histórica (DALTON, 1993, p.30). A leitura progressiva da introdução de Dalton deixa cada vez mais claro, no entanto, que o que ele propõe é na verdade uma espécie de tradução simultânea desta narrativa sobre um mundo encantado a uma linguagem desencantada. Espera-se que o leitor acompanhe as palavras de Mármol – sobre a aparição da Cihuanaba, por exemplo – e ao mesmo tempo imagine sob estas palavras uma legenda negando a veracidade daquilo que é narrado.
Neste sentido, o chamado ''contexto histórico'' cuja ausência Dalton lamenta, surge como um elemento fundamental no processo de tradução. Como não se aceita a possibilidade de seres encantados terem existência objetiva, supõe-se que eles podem ser explicados de forma mundana; demonstra-se, então, como a crença nos seres encantados fora o resultado de um contexto histórico inadequado. Como explicou o historiador Dipesh Chakrabarty, o ''cientista social-historiador supõe que 'contextos' explicam determinados deuses''. Assim que se determina a natureza do contexto social – digamos, uma comunidade camponesa semi-indígena nos arredores de uma cidade centro-americana na primeira metade do século 20 –, as crenças podem então ser tratadas como simples fatos sociais. ''Se todos tivéssemos o mesmo contexto'', Chakrabarty continua, ''então todos teríamos os mesmos deuses'' (CHAKRABARTY, 1997, p.39).
Mármol havia se deparado com a prepotência deste tipo de imperialismo epistemológico já na adolescência, quando, segundo seu relato, ele mudou-se do povoado de Ilopango para San Salvador, a capital e maior cidade de El Salvador, para trabalhar na maior fábrica de sapatos do país, e lá, enquanto recebia sua primeira educação política, exigiu-se que ele abandonasse o que foi chamado de ''fanatismo'' e desenvolvesse uma ''concepção científica do mundo'' (DALTON, 1993, p.70). Apesar dessa pressão, não estaria fora de lugar na boca de Miguel Mármol a confissão feita por Arguedas alguns anos depois: ''el socialismo no mató en mí lo mágico'' (ARGUEDAS, 1992, p.258). E Mármol não estaria só: a resistência das crenças tradicionais dentro dele e sua teimosa fé no sobrenatural poderiam não fazer dele o comunista sonhado por Dalton, mas esses elementos tampouco fariam dele um comunista latino-americano atípico. Boa parte dos marxistas e comunistas do continente tentou conciliar, tanto na teoria quanto na prática, o racionalismo científico e a persistência da religiosidade.
Entre as formulações teóricas mais eloqüentes deste dilema estão os ensaios escritos pelo peruano José Carlos Mariátegui ainda na década de 1920. Mariátegui chegou a definir a diferença do subalterno como sendo justamente a sua fé:
Lo que más neta y claramente diferencia en esta época a la burguesía y al proletariado es el mito. La burguesía no tiene ya mito alguno. Se ha vuelto incrédula, escéptica, nihilista. (...) La burguesía niega; el proletariado afirma. La inteligencia burguesa se entretiene en una crítica racionalista del método, de la teoría, de la técnica de los revolucionarios. (...) La fuerza de los revolucionarios no está en su ciencia; está en su fe, en su pasión, en su voluntad. Es una fuerza religiosa, mística, espiritual. (...) La emoción revolucionaria (...) es una emoción religiosa. (MARIÁTEGUI, 1974, p.32).
Para Mariátegui – e aqui se revela o caráter original de sua reflexão–, a escatologia messiânica do marxismo é sua maior força (e não sua debilidade, como concluiriam alguns analistas). Seria até possível afirmar, através de Mariátegui, que o cientificismo e o historicismo de Marx, que aquilo que Mariátegui chamara ''apriorismo anticlerical'' do marxismo, que a ortodoxia ''atéia, laica e racionalista'' e que a identificação de religiosidade e ''obscurantismo'' (MARIÁTEGUI, 1975, p.113), seriam, digamos, ''memorias del subdesarrollo'' – memórias do Iluminismo, talvez – presentes em Marx e no marxismo. O maior desafio do marxismo na América Latina foi, então, evitar tornar-se um novo imperialismo, mesmo um imperialismo disfarçado de anti-imperialismo, e unir sua força crítica a maneiras de viver em que o inumano estivesse presente. (Muitos anos depois de Mariátegui, a Teologia da Libertação foi outra tentativa neste sentido.)
Até aqui, pode parecer que o problema da convivência entre discursos encantados e desencantados está limitado ao marxismo, e de fato comunistas latino-americanos podem ter sentido uma necessidade especial de explicar sua religiosidade. Mas na verdade, como já assinalou Emmanuel Levinas, independentemente de qualquer adesão ao comunismo ou ao marxismo, todos somos chamados pela modernidade a justificar nossa existência diante da razão (LEVINAS, 2002). O encontro com o marxismo é apenas uma forma que esta exigência toma. Afinal, a tradução das narrativas encantadas que o marxismo exige é a tradução à forma narrativa hegemônica na modernidade: a história. Dalton afirma, por exemplo, que várias vezes se sentiu tentado a alterar o texto e torná-lo mais homogêneo (DALTON, 1993, p.23), mas ele resiste, declarando que o próprio autor é heterogêneo e contraditório (esclarecendo, em seguida, que as contradições são resultado do atraso histórico de El Salvador).
Essa heterogeneidade do texto só é possível por causa de certa abertura inerente ao gênero. A narrativa em primeira pessoa do testemunho autobiográfico permite a coexistência de diferentes maneiras de se tornar mundo, uma coexistência que definitivamente não é permitida nas narrativas historiográficas. Assim, nos textos de história que narram a vida de Miguel Mármol, incidentes como o encontro com a Cihuanaba ou a intervenção de São Francisco no pasto guatemalteco estão ausentes. Em um só gesto, são definidos novos limites para o real, toda presença inumana é apagada e todos aqueles seres que antes habitavam as narrativas sobre o passado e o presente são banidos das narrativas que quiserem ter legitimidade institucional. Os historiadores, em outras palavras, raramente resistem à tentação de homogeneização descrita por Dalton. (É importante assinalar aqui que esta não é uma questão de falta de evidência empírica; episódios mundanos narrados por Mármol são devidamente incorporados por historiadores, apesar de seu testemunho ser a única fonte disponível.)
Estas novas definições do real não são o resultado de um consenso social e não surgem da realidade local; elas já chegam prontas, da Europa e de seu século 18, e por isso muitas vezes são vividas como uma forma de violência espistêmica. Imagina-se que não exista passado independente da história, ou passado que não possa ser transformado em história; aquilo que parece independente ou fora da história simplesmente está esperando que sua história seja escrita. O domínio da historiografia é tão grande que chegamos a pensar que toda relação com o passado deve necessariamente passar pelo filtro da historiografia. (Daí vem, por exemplo, o desdém moderno pela nostalgia, aquela relação com o passado que se baseia no afeto e circunavega a evidência empírica.)
Podemos nos perguntar, então, se seria possível escrever a história dos subalternos – uns subalternos que, digamos, habitassem um mundo em que os espíritos e os seres sobrenaturais participassem ativamente –, mantendo os subalternos como sujeitos de sua própria história, se ao mesmo tempo negamos a possibilidade das experiências mais íntimas narradas por eles? (CHAKRABARTY, 1997, p.40). Na América Latina, muitas das narrativas banidas da esfera pública pelo domínio da historiografia foram buscar um abrigo na literatura. As várias formas de literatura encantada desenvolvidas na literatura hispano-americana de meados do século passado podem ser vistas como a busca de um modelo narrativo que fosse mais receptivo a situações híbridas como a de Mármol, um modelo que não exigisse a negação da singularidade de sua existência. A narrativa hispano-americana – certa narrativa hispano-americana – pode inclusive ser vista como uma resposta à violência epistêmica da historiografia. E se de fato for verdade, como acredito que seja, que a religiosidade foi expulsa da esfera pública pela transformação da religião em patologia, arcaísmo ou Realpolitik disfarçada, e que esta religiosidade em parte migrou à literatura, que tipo de reação houve de parte da teoria literária a este fenômeno? Afinal, se a história é escrita apagando os sinais da presença de deuses, espíritos, santos e espectros, o entre-lugar da teoria literária, com um pé na historiografia e outro na literatura, seria então um espaço privilegiado para desenvolver uma reflexão sobre a diferença entre estas duas formas narrativas e sobre a violência necessária para transformar diversas formas de narrar em uma só. A teoria literária poderia, por exemplo, contar a história do encolhimento do reino do possível quando passamos do literário ao histórico.
Apesar da teoria literária se encontrar em uma situação privilegiada para desenvolver esta crítica à historiografia, eu acredito que não estaria cometendo uma injustiça se dissesse que a crítica literária latino-americana não respondeu ao chamado que a literatura lhe fez e, de modo geral, se manteve fiel às normas das ciências sociais na sua prática crítica. O que vimos, inclusive, foi o desenvolvimento pela teoria literária de estratégias de leitura que negassem a existência dos elementos encantados quando eles surgissem na literatura (através de conceitos como alegoria, mito, simbolismo, etc.). E aqui é importante lembrar, além da influência do marxismo e do historicismo, que a teoria literária latino-americana freqüentemente beberia da fonte de outro discurso desmistificador: a psicanálise.
No cenário que esbocei aqui, neste duelo entre dois comunistas em torno a formas de narrar o mundo, a crítica literária latino-americana das últimas décadas estaria mais próxima da posição de Dalton: sua função tem sido a de traduzir, mais uma vez, as narrativas encantadas a uma prosa desencantada.
BIBLIOGRAFIA
ARGUEDAS, J. M. El zorro de arriba y el zorro de abajo. Madrid, Colección Archivos, 1992.
CALASSO, R. Uma tumba apócrifa. In: 49 degraus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 152-158.
CHAKRABARTY, D. The Time of History and the Times of Gods. In: LOWE, L. (org.). The Politics of Culture in the Shadow of Culture. Durham: Duke University Press, 1997, p. 35-60.
DALTON, R. Miguel Mármol: Los sucesos de 1932 en El Salvador. San Salvador: Universidad Centroamericana Editores, 1993. 520 p.
LEVINAS, E. Deus e a filosofia. In: De Deus que vem à idéia. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 85-114.
MARIÁTEGUI, J. C. El hombre y el mito. In: Ensayos escogidos. Lima: Editorial Universo, 1974, p. 28-34.
MARIÁTEGUI, J. C. O fator religioso. 7 ensaios de interpretação da realidade peruana. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1975, p. 113-135.
MARX, K. The Marx-Engels Reader. Nova York: W.W.Norton, 1978. 788 p.
MARX, K. Capital, I. Nova York: Vintage Books, 1977.
MARX, K., ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Xamã, 1998. 174 p.