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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002
A problemática do idioma dos argentinos em Borges
Ronaldo Assunção
UFMS
Os estudos sobre a língua ou idioma nacional na Argentina, num sentido amplo e no âmbito de uma oralidade literária, foram e têm sido intensos. A Argentina, como se sabe, no período pós-independência, opôs-se de um modo intenso, talvez mais que qualquer outro país hispânico, à influência do espanhol da antiga metrópole colonialista. A busca por definir uma identidade passava, necessariamente (pensava-se), pela busca de um ''idioma nacional'' próprio.
A relação problemática entre pátria (identidade cultural) e língua, já adotada no século XIX como um elemento que corrobora com o ideal nacionalista em formação, é intensificada no século XX,1 sobretudo nos anos vinte, tendo à frente a revista vanguardista Martín Fierro (1924-1927) que, se num primeiro momento reivindica a necessidade da renovação estética, dois anos depois privilegia o debate em torno da identidade cultural. Nesse período, muitos escritores se dedicaram a pensar o ''idioma nacional'' como uma forma de aproximação a uma identidade nacional (a ''argentinidad'') em crise, sobretudo pelo chegada maciça dos imigrantes e o galopante crescimento de Buenos Aires. Borges foi um desses escritores.
Pensar a língua implica, em Borges, repensar a tradição literária e a sua identidade cultural, cujo mito fundacional está centrado no gênero ''gauchesco'', que se estrutura a partir da oralidade do campo. Em outras palavras, a reflexão sobre o idioma nacional tem como eixo central a reflexão dos potenciais de uma tradição cultural e literária como ponto de partida para novas realizações e transformações.
Borges escreve e publica, nos anos 20, três livros onde aborda, dentre outros, o tema do idioma falado pelos argentinos, particularmente os portenhos2 . São textos, na verdade, que mostram um Borges com traços nacionalistas ou ''criollistas'' claros. Entretanto, a questão do nacional ou do ''criollismo'' em Borges é um tema complexo e deve ser visto dentro de um período e contexto específicos de sua trajetória de escritor. Os livros referidos são: Inquisiciones (1925); El tamaño de mi esperanza (1926), e El idioma de los argentinos (1928).
Em El tamaño de mi esperanza, o tema do idioma aparece com grande intensidade em ensaios como ''El idioma infinito'', ''Palabrería para versos'' e ''Inventiva contra el arrabalero'' (há também aqueles indiretos, centrados na linguagem literária e gramatical).
Em ''El idioma infinito'', Borges critica duas atitudes básicas frente ao idioma: por um lado estão aqueles que o transformam em uma infinidade de galicismos na qual tudo é permitido; por outro, aqueles que se agarram à Gramática ou à Academia para seguir fielmente as normas de uma pseudo perfeição da linguagem (''esto es, ya todo está pensado y ojalá fuera así''). Borges alheia-se desse entrevero e propõe sua máxima: ''Lo grandioso es amillonar el idioma, es instigar una política del idioma'' (BORGES, 1994, p. 39). Em outras palavras, o escritor foge dos extremos: nem liberalismo incondicional, nem conservadorismo radicalizado. E propõe alguns pontos para uma ''política do idioma'', visando abrir brechas na rigidez da gramática. Oferece alguns elementos importantes sobre as potencialidades da língua, sobretudo a insistência de que o idioma é infinito, inacabado e aberto a variações que ampliem o seu potencial representativo: ''Lo que persigo es despertarle a cada escritor la conciencia de que el idioma apenas sí está bosquejado y de que es gloria y deber suyo (nuestro y de todos) el multiplicarlo y variarlo. Toda conciente generación literaria lo ha comprendido así'' (Ibid., p. 43).
''Palabrería para versos'' segue pelo mesmo caminho do ensaio anterior, embora com algumas variantes, dentre elas a idéia básica de que ''El lenguaje es un ordenamiento eficaz de esa enigmática abundancia del mundo. Dicho sea con otras palabras: los sustantivos se los inventamos a la realidad'' (Ibid., p. 46). Ressalta a necessidade de encontrar-se um vocabulário poético para abarcar as coisas do mundo, denunciando, com isso, os limites de representação da linguagem, e a idéia de que o mundo cobra materialidade por meio dessa própria linguagem limitada e arbitrária por natureza, mas que retém um infinito potencial reelaborativo, de auto-superação e de invenção.
O ensaio ''Inventiva contra el arrabalero'' está mais centrado na oralidade como um dos elementos fundantes de uma tradição, de uma identidade. Um ponto fundamental que aparece e será uma constante em Borges não só nos poemários dos anos vinte, mas em poemas posteriores (e também na prosa), é a presença da cidade como novo topos literário e identitário. Ocorre, então, um deslocamento do campo (do ''pampa''), da tradição literária dos antepassados, para o subúrbio (o ''arrabal'' ou a ''orilla'') de Buenos Aires. Ou seja, a busca pela oralidade e pela identidade amplia-se ao deslocar-se para outro espaço e tempo. Borges insiste neste ponto: se o pampa já havia encontrado sua voz, pela qual se fez ouvir e na qual se consolidou uma tradição literária, uma epopéia, o mesmo não ocorreu com Buenos Aires. À cidade faltava essa voz, essa fábula; enfim, faltava uma poesia, um símbolo que a representasse:
Pero Buenos Aires, pese a los dos millones de destinos individuales que lo abarrotan, permanecerá desierto y sin voz, mientras algún símbolo no lo pueble. La provincia si está poblada: allí están Santos Veja y el gaucho Cruz y Martín Fierro, posibilidad de dioses. La ciudad sigue a la espera de una poetización (Ibid., p. 126).
Ao propor um deslocamento geográfico e temporal, mudam-se também os personagens que falam. Agora o que se quer ouvir é a voz do homem típico da ''orilla'': o ''compadrito'', que, ''ya, como el gaucho, es un tema de nostalgia'' (BORGES, 2000, p. 7). O ''compadrito'' será, de fato, uma personagem recorrente em seus contos e poemas e transformar-se-á em mito literário. O ''compadrito'', define Borges, ''fue el plebeyo de las ciudades y del indefinido arrabal, como el gaucho lo fue de la llanura o de las cuchillas. Venerados arquetipos del uno son Martín Fierro y Juan Moreira y Segundo Ramírez Sombra; del otro no hay todavía un símbolo inevitable, aunque centenares de tangos y de sainetes lo prefiguran'' (Ibid., p. 11).
A preocupação pela língua em Borges dirige-se, por um lado, à tradição literária do século XIX, particularmente a ''gauchesca'', e, por outro, à fala daqueles que vivem na (e à) margem da cidade (como o gaúcho vivia à margem do mundo ''civilizado''), que, a rigor, é uma continuidade da oralidade anterior, na medida em que, em muitos aspectos, o ''compadrito'' ou ''cuchillero'' se converte em uma espécie de ''gaúcho'' urbanizado.
Na década de vinte, entretanto, Borges ainda está tateando por estes caminhos, mas é garimpando por eles, com idas e vindas, que solidifica a sua escritura. Não se pode dizer, no entanto, que nesses primeiros tateios já não haja os sinais de uma visão aguçada e inovadora da tradição literária que herda e na qual a língua tem enorme importância.
O novo contexto urbano, literário e lingüístico que encontra após a sua volta da Europa, propicia a (re)leitura da identidade nacional e de uma possível ''literatura argentina''. Nesse contexto discute, por exemplo, a questão do ''lunfardo'', uma espécie de dialeto (gíria, linguagem gremial, de 'lunfas', ladrões) de Buenos Aires, que Borges irá diferenciar do falar ''arrabalero'' ou portenho, embora o ''arrabalero'' transite pelo ''lunfardo'', na medida em que incorpora muitas de suas expressões. Para Borges,
Sólo hay un camino de eternidad para el arrabalero, sólo hay un medio de que a sus quinientas palabras el diccionario las legisle. La receta es demasiado sencilla. Basta que otro don José Hernández nos escriba la epopeya del compadraje y plasme la diversidad de sus individuos en uno solo. Es una fiesta literaria que se puede creer. ¿No están prenuciándola acaso el teatro nacional y los tangos y el enternecimiento nuestro ante la visión desgarrada de los suburbios? (BORGES, 1994, p. 125).
Preludia-se aqui o que aparecerá mais claro em ''El idioma de los argentinos'' e outros ensaios posteriores: a busca não tanto por palavras diferentes, por essas ''quinientas palabras'', mas por esse ''ambiente distinto de nuestra voz'', que tem uma ''temperatura'' distinta. Isso não significa que as ''palavras'' não tenham a sua importância substancial. Para Borges, cada palavra tem um significado específico, que ele classifica assim: a de ''significación usual'', ''etimológica'', ''figurada'', e a de ''insinuadora de ambiente''. A última é a que se aproxima de sua visão, pois
no ha sido legalizada por nadie y usada y abusada por muchos. Presupone siempre una tradición, es decir, una realidad compartida y autorizada y es postrimería de clasicismo. Entiendo por clasicismo esa época de un yo, de una amistad, de una literatura, en que las cosas ya recibieron su valoración y el bien y el mal fueron repartidos entre ellas. La torpe honestidad matemática de las voces ya se ha gastado y de meros guarismos de la realidad, ya son realidad. Son designación de las cosas, pero también son elogio, estima, vituperio, respetabilidad, picardía. Poseen su entonación y su gesto. (Séanos evidentísimo ejemplo el de las voces organito, costurerita, suburbio, en las que ha infundido Carriego un sentido piadoso y conmovedor que no tuvieron antes)'' (BORGES, 1999, p. 60).
A perspectiva vai ampliando-se. A expressão de uma cultura não está centrada necessariamente no desvio da norma, na corrupção da língua, ou na variedade de sinônimos que oferece o dicionário, mas pelo uso coletivo de vozes não ''legalizadas'' que pressupõem uma tradição ''compartida e autorizada''. Por isso a necessidade de reativar-se o potencial ''gastado'' das palavras para ressaltar sua ''entonación y su gesto''. Daí também o seu repúdio aos modismos lingüísticos, como o ''lunfardo'':
En Buenos Aires escribimos medianamente, pero es notorio que entre las plumas y las lenguas hay escaso comercio. En la intimidad propendemos, no al español universal, no a la honesta habla criolla de los mayores, sino a una infame jerigonza donde las repulsiones de muchos dialectos conviven y las palabras se insolentan como empujones y son tramposas como naipe raspado'' (BORGES, 1994, pp. 121-122).
Borges percebe que os desvios lingüísticos (''infame jerigonza'', ''tramposas como naipe raspado'') não têm consistência cultural nenhuma, ou pelo menos não expressam o que buscava na ''honesta habla criolla de los mayores'' que se enlaça agora na voz dos homens das ''orillas''.
Nesse processo, Borges percebe que há ''duas condutas de idioma'' nos escritores de seu tempo, as quais atestam a incapacidade de dar uma entonação própria ao processo de construção (inventiva) da identidade argentina. A primeira é a dos ''saineteros que escriben un lenguaje que ninguno habla y que si a veces gusta, es precisamente por su aire exagerativo y caricatural, por lo forastero que suena; otra la de los cultos, que mueren de la muerte prestada del español'' (BORGES, 1999, p. 154). Paradoxalmente, estes dois ''modelos'' de linguagem estão fortemente presentes nos seus escritos dos anos vinte. A linguagem clássica ou ''latinizante'' contamina Fervor e Inquisiciones, e o ''criollismo'' contamina Luna de enfrente e El tamaño de mi esparanza. Percebe-se que o paradigma de Borges, presente nesse texto mais afortunado que é El idioma de los argentinos, está na fala ''pura'' dos seus antepassados literários (os ''mayores''), cujo
tono de su escritura fue el de su voz; su boca no fue la contradicción de su mano. Fueron argentinos con dignidad: su decirse criollos no fue una arrogancia orillera ni un malhumor. Escribieron el dialecto usual de sus días: ni caer en españoles ni degenerar en malevos fue su apetencia. Pienso en Esteban Echeverría, en Domingo Faustino Sarmiento, en Vicente Fidel López, en Lucio V. Mansilla, en Eduardo Wilde. Dijeron bien en argentino (Ibid., 1999, p. 155).
Nota-se em Borges a busca por resgatar essa relação íntima entre a voz e a escritura (''su boca no fue la contradicción de su mano''). O elemento verdadeiro, chamemos assim, ou o potencial identitário do idioma falado deve ser desencadeado no corpo das letras. A voz de uma tradição, de uma identidade está presente enquanto escritura. A questão é saber de que escritura estamos falando e é aí onde Borges não só resgata uma tradição, como a transforma. De fato, em ''El idioma de los argentinos'', observa:
Muchos, con intención de desconfianza, interrogarán: ¿qué zanja insuperable hay entre el español de los españoles y el de nuestra conversación argentina? Yo les respondo que ninguna, venturosamente para la entendibilidad general de nuestro decir. Un matiz de diferenciación sí lo hay: matiz que es lo bastante discreto para no entorpecer la circulación total del idioma y lo bastante nítido para que en él oigamos la patria. No pienso aquí en algunos miles de palabras privativas que intercalamos y que los peninsulares no entienden. Pienso en el ambiente distinto de nuestra voz, en la valoración irónica o cariñosa que damos a determinadas palabras, en su temperatura no igual. No hemos variado el sentido intrínseco de las palabras, pero sí su connotación. Esa divergencia, nula en la prosa argumentativa o en la didáctica, es grande en lo que mira a las emociones. Nuestra discusión será hispana, pero nuestro verso, nuestro humorismo, ya son de aquí. Lo emotivo –desolador o alegrador– es asunto de ellas y lo rige la atmósfera de las palabras, no su significado (Ibid., pp. 156-157, grifo meu).
Borges, assim, abandona as expressões distintas e exclusivas do contexto lingüístico portenho com relação aos outros países de língua espanhola, sobretudo a metrópole, como forma de caracterizar o que seria tipicamente nacional. A diferença não é lexical, mas de tonalidade, em que se manifesta a ironia, o humor, a ''emotividade'' da fala (e de certa literatura) argentina que não se afasta de um espanhol geral, mas que tem, entretanto, um tom e uma sintaxe específica para expressar-se.3 Aos poucos o próprio Borges vai encontrando esse ''ambiente distinto de nuestra voz'', sem cair necessariamente na reprodução ''fiel'' do falar popular, mas resgatando (''ressemantizando'', na expressão de Beatriz Sarlo) a voz de uma tradição (o ''ambiente distinto'').
Além do importante ensaio ''El idioma de los argentinos'', presente no livro homônimo, merece alguns comentários o ensaio intitulado ''Eduardo Wilde'':
No quiero insinuar que la veracidad literaria es una ficción; quiero evidenciar lo difícil que es y lo acertado de nuestra gratitud a quienes la alcanzan. Indesmentiblemente, la alcanzó Wilde. Perteneció a esa especie ya casi mítica de los prosistas criollos, hombres de finura y de fuerza, que manifestaron hondo criollismo sin dragonear jamás de paisanos ni de compadres, sin amalevarse ni agaucharse, sin añadirse ni una pampa ni un comité. Fue todavía más: fue un gran imaginador de realidades experienciales y hasta fantásticas (Ibid., p. 140, grifo meu).
Borges antevê em Wilde o que será uma das características mais marcantes de sua ficção, particularmente nos seus contos: unir o registro oral ao fazer literário de modo a revelar o nacional sem ser nacionalista, o local sem ser localista, o ''criollo'' sem ser ''criollista''. O desafio ou necessidade, lançada em Inquisiciones (1925), de que os poetas argentinos ''no deben acallar la esencia de anhelar de su alma y la dolorida y gustosísima tierra criolla donde discurren sus días. (...) Que deberían nuestros versos tener sabor de patria, como guitarra que sabe a soledades y a campo y a poniente detrás de un trebolar'' (BORGES, 1994, pp. 20-21), cujo nacionalismo ''criollo'' deliberado em Borges é uma evidência neste período, desloca-se, alguns anos depois, para algo mais complexo e amplo, no qual se nota a capacidade de desfazer-se cada vez mais deste ''criollismo'' naturalista.
Os textos escritos depois da década de vinte sobre o idioma revelam um Borges já livre do fervor ''criollista'' ou até mesmo nacionalista com relação ao idioma, por um lado, e sua tendência cultista ou ''barroca'', por outro. Nessa linha, caberia destacar dois ensaios cuja natureza problemática e polêmica se sobressaem, havendo uma clara articulação entre o idioma com a tradição, a história e a literatura: ''Las alarmas del doctor Américo Castro'', de Otras inquisiciones (1952) e ''El escritor argentino y la tradición'', de Discusión (1932), este último publicado pela primeira vez em Cursos y conferencias (1953), e em Sur (1955), e incorporado definitivamente a Dicusión, em 1957, nas Obras completas, V. I.
''Las alarmas del doctor Américo Castro'' é um texto sintético, mas fulminante. Borges parte do livro de Américo Castro, La peculiaridad lingüística rioplatense y su sentido histórico, para, concomitantemente, desconstruí-lo e expor o que ele entende por ''sentido histórico'' do idioma dos argentinos. O título do ensaio já preludia o seu caráter provocativo e irônico: é tão cacofônico quanto o de Castro, além de apresentar um deliberado tom depreciativo presente na designação ''doctor'' que, ao contrário do que se poderia pensar, adquire um sentido oposto ao de reconhecimento intelectual ou acadêmico.
A partir de seus estudos, Américo Castro mostra que o espanhol falado (e escrito) em Buenos Aires está corrompido pelo ''lunfardismo'' e a ''mística gauchofilia'', alertando para o grave perigo que assola o idioma de Cervantes. Borges se manifesta contra as teses de Castro questionando, já de início, a própria idéia de ''problema'' alavancada pelo alarmado filólogo espanhol.
Borges não refuta as observações de Castro por serem inexistentes. Criticar o ''lunfardismo'', o ''arrabalerismo'', os ''argentinismos'' e outros ismos ligados ao linguajar portenho, sobretudo nos anos vinte, foi o que mais criticou nos seus textos sobre o idioma portenho. Seu claro repúdio ao livro de Castro deve-se ao modo como o autor acusa o idioma espanhol falado em Buenos Aires em termos de ''corrupção da língua'', como manifestação dos ''graves problemas que el habla presenta en Buenos Aires'', sem perceber os limites dessas manifestações que são de caráter passageiro e de grande pobreza expressiva ou representativa. O que irrita a Borges é o fato de que um filólogo vinculado à metrópole venha criticar determinadas formas do falar popular (e mesmo a escrita) para valorizar e ressaltar (em oposição) o modelo ideal de língua que seria o espanhol da Espanha, como se lá não ocorressem fenômenos semelhantes. Há mais de dez anos Borges já anotava para o equívoco de pensar que a língua espanhola é em si perfeita por suas sessenta mil palavras:
La numerosidad de representaciones es lo que importa, no la de signos. Ésta es superstición aritmética, pedantería, afán de coleccionista y de filatero. Es sabido que el obispo anglicano Wilkins, el más inteligente utopista en trances de idioma que pensó nunca, planeó un sistema de escritura internacional o simbología que con sólo dos mil cuarenta signos sobre papel pentagramado, sabía inventariar cualquier realidad (BORGES, 1999, pp. 149-150 e 151).4
A visão mais ampla e madura do idioma, nestas alturas, não poderia calar-se frente às teses conservadoras de Américo Castro. O ensaio de Borges termina como havia começado, de forma sarcástica e não menos demolidora: ''En la página 122, el doctor Castro ha enumerado algunos escritores cuyo estilo es correcto; a pesar de la inclusión de mi nombre en ese catálogo, no me creo de todo incapacitado para hablar de estilística'' (BORGES, 1999, p. 35).
Em ''El escritor argentino y la tradición'', Borges insere a questão do idioma dentro do debate entre o escritor argentino e a tradição. O tema do idioma é pensado a partir da poesia ''gauchesca'' e da poesia dos gaúchos ou popular. Para Borges,
hay una diferencia fundamental entre la poesía de los gauchos y la poesía gauchesca. Basta comparar cualquier colección de poesías populares con el Martín Fierro, con el Paulino Lucero, con el Fausto, para advertir esa diferencia, que está no menos en el léxico que en el propósito de los poetas. Los poetas populares del campo y del suburbio versifican temas generales: las penas del amor y de la ausencia, el dolor del amor, y la hacen con un léxico muy general también; en cambio, los poetas gauchescos cultivan un lenguaje deliberadamente popular, que los poetas populares no ensayan. No quiero decir que el idioma de los poetas populares sea un español correcto, quiero decir que si hay incorrecciones son obra de la ignorancia. En cambio, en los poetas gauchescos hay una busca de palabras nativas, una profusión de color local (BORGES, 1999, p. 268).
Logo depois, Borges refere-se à produção de algumas obras ''admiráveis'' da poesia ''gauchesca'' como um ''género literario tan artificial como cualquier otro'' (Ibid., p. 268). ''Lenguaje deliberadamente popular'' (entendida aqui por ''linguagem ou registro oral'') é vista por Borges como artifício; isto é, trata-se de uma oralidade construída ou inventada e não da reprodução fiel de uma ''oralidade real''. Isso quer dizer que há um deliberado trabalho compositivo, de economia verbal dos poetas gauchescos que determina, em definitiva, a qualidade estética de suas obras. A poesia ''gauchesca'', assim, é uma adequação da oralidade do campo ao texto literário, sem haver necessariamente uma reprodução fiel da mesma. Quando Borges fala das composições de Bartolomé Hidalgo, por exemplo, diz que havia um ''propósito de presentarlas en función del gaucho, como dichas por gauchos, para que el lector las lea como una entonación gauchesca'' (Ibid., p. 268). A visão de Borges amplia-se ao ponto de afirmar, em uma conferência de 1965, intitulada ''Poesía y arrabal'', que o próprio linguajar gauchesco é uma falácia, invenção de ''diccionarios de argentinismos'': ''no hay, contrariamente a lo que afirman los autores de diccionarios de argentinismos, un dialecto gauchesco, sino más bien una entonación gauchesca del común idioma español'' (BORGES, 1986, p. 56).
A questão primordial e mais provocativa suscitada por Borges está calcada na idéia de que para ser argentino ou para fazer literatura argentina não é preciso sobejar nas cores locais, em um linguajar nativo ou local: ''Creo que los argentinos podemos parecernos a Mahoma, podemos creer en la posibilidad de ser argentinos sin abundar en color local'' (BORGES, 1999, p. 270).
Assim, a grande contribuição de Borges para a tradição literária argentina é reconhecer o valor de qualquer obra desde que logre representar bem do ponto de vista estético. A partir daí é possível manejar todos os temas, não importando de onde sejam e quais sejam: ''Creo que si nos abandonamos a ese sueño voluntario que se llama la creación artística, seremos argentinos y seremos, también, buenos y tolerables escritores'' (BORGES, 1999, p. 274).
A questão que se coloca, então, é saber de que modo o idioma (centrado sobretudo na oralidade) pode ser um dos elementos fundamentais e fundantes para demarcar o que há de diferente, ou o que esta expressividade (discurso) diferenciado mostra do ''outro'' e de si mesmo? Markus K. Schäffauer, com base no pensamento de Bakhtin, acredita que o problema da oralidade é, antes de mais nada, uma questão do discurso do ''outro'', ''y sólo en un segundo momento y como una consecuencia, una cuestión de lenguaje oral. Por tanto, falta ver la oralidad como discurso, más precisamente como discurso de la diferencia, y, llevándolo a un extremo, como discurso sobre la otredad. En este sentido hay que comprender la oralidad literaria como una oralidad discursiva que establece un nexo entre oralidad y otredad (SCHAFFÄUER , 1998, p. 6). Nessa linha, entende-se, está centrada a preocupação de Borges em seus textos, particularmente os ensaísticos, em que desponta a questão do idioma nacional. Preocupação sempre centrada no discurso do ''outro'', seja o da poesia ''gauchesca'' e popular ou dos argentinos ''viejos'', seja o falar dos ''compadritos'' do ''arrabal'', buscando, assim, demarcar uma diferença, marca da identidade, que deve ser reconhecida, interpretada e, sobretudo, inventada.
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1 Sobre esta questão observa Adriana Rodríguez Pérsico: ''La patria y la lengua: los significantes predilectos de los discursos nacionalistas insisten otra vez. El idioma se constituye en un poderoso centro de identificación; allí emerge un aparato disciplinario que pone en caja posibles desvíos provenientes del exterior'', in: ''Identidades nacionales argentinas 1910 y 1920'', in: ANTELO, Raúl (org.). Identidade & representação. Florianópolis: Pós-Graduação - Literatura Brasileira e Teoria Literária -UFSC, 1994, p. 88.
2 Outros textos sobre o tema aparecem nesse período em revistas locais: ''¿Llegaremos a tener un idioma propio?'', in: Crítica, 19 jun. 1927; ''Sobre el idioma de los argentinos'', in: Anales del Instituto Popular de Conferencias, Tomo 13, 1927; ''Sobre pronunciación argentina'', in: Nosotros, nº 227, año 22, V. 20, 1928; a resenha ''Idioma nacional rioplatense'', sobre o livro de Vicente Rossi, Idioma nacional rioplatense, 1928, in: Síntesis, nº 18, año 2, jun. 1928. Os três livros de ensaios dos anos vinte, vale lembrar, foram veemente proibidos de serem reeditados pelo autor. O ensaio ''El idioma de los argentinos'', entretanto, foi um dos poucos salvos por Borges em edições posteriores. Foi republicado em colaboração com José Edmundo Clemente, em 1952, com o título de El idioma de los argentinos. El idioma de Buenos Aires, e reeditado em 1963 com o título geral de El lenguaje de Buenos Aires.
3 Em ''Las coplas acriolladas'', de El tamaño de mi esperanza, Borges discute, no campo da poesia, esta diferenciação. Reproduzo um exemplo dado por Borges de uma copla sentenciosa espanhola seguida de uma variante ''criolla'' cantada na província de Buenos Aires:
Querer una no es ninguna,
querer dos es vanidad
y querer a tres y a cuatro
eso sí que es falsedad.
Na variante ''criolla'':
Querer una no es ninguna,
querer dos es vanidá;
el querer a tres o cuatro
4 Vale lembrar que o ''sistema de escritura internacional o simbología'', de Wilkins, será retomado no ensaio ''El idioma analítico de John Wilkins'', de Otras inquisiciones. Texto que, como se sabe, foi referido por M. Foucault na introdução ao seu livro As palavras e as coisas.