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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Out. 2002

 

Apolo entre as duas Américas: uma problematização identitária contemporânea

 

 

Silvia Miranda Boaventura

UERJ

 

 

A questão da identidade na América Latina já passou pelo debate de caracterização da pureza cultural diante da contaminação de influências estrangeiras. Tal debate encaminhou-se depois para a compreensão da inevitabilidade dos empréstimos culturais em função da condição sócio-econômica periférica no contexto internacional, que condicionaria também a produção de bens simbólicos.

Essa visão de dependência cultural, centrada majoritariamente no eixo econômico, foi ultrapassada pela perspectiva da interdependência durante o século XX, mediante os movimentos estéticos vanguardistas e a ''consciência estético-social''. A compreensão de interdependência passava por pensar o desenvolvimento econômico como propiciador cultural de ''integração transnacional'', em que houvesse ''assimilação recíproca''.

Antonio Candido flagrava nesse momento a consciência de subdesenvolvimento que levava não só ao pensamento revolucionário para transformar a realidade político-econômica mas também à compreensão do inter-relacionamento necessário no plano da cultura como participação nos recursos internacionais, provenientes dos grandes centros, transformados em bens comuns.

Assim, as relações política e econômica entre os países determinavam a partir dos centros desenvolvidos o jugo imperialista, mantenedor das realidades subdesenvolvidas dos estados nacionais, historicamente, enfraquecidos pela vinculação de dependência. Contudo, a análise das relações culturais apontava para possibilidades de trocas fecundas quanto à visibilidade das realidades locais dos países periféricos e à mobilidade mundial das produções caracterizadas por princípios estéticos internacionais.

As mudanças ocorridas a partir do final do século XX na cena do mundo propulsionam a chamada era da globalização que se distingue da anterior, ''internacionalização das culturas nacionais'', pela ausência de reconhecimento sobre o que é produção local ou estrangeira. Nessa conjuntura, observa Néstor Canclini: ''a cultura é um processo de montagem multinacional, uma articulação flexível de partes, uma colagem de traços que qualquer cidadão de qualquer país, religião e ideologia pode ler e utilizar'' (CANCLINI, N. , 1995, p. 17).

A questão que Canclini destaca nesse cenário globalizado de ''diversos sistemas simbólicos'' cruzados e interpenetrados é a possibilidade de entendimento dos ''processos de hibridização intercultural'' que vão reconstruir as ''identidades étnicas, regionais e nacionais''. Essa recomposição das identidades há de considerar a diversidade dos modos compositivos em relação à desigualdade dos espaços produtivos, comunicacionais e de ''apropriação da cultura''.

Nesse sentido, mais do que a mestiçagem cultural na construção identitária da atualidade, interessa saber como se processa tal hibridação, a complexidade interativa da circulação de bens culturais, a recepção, a apropriação e a reconversão. Importa notar, ainda, a opção conceitual da mescla como ''reconversão'': ''El análisis empírico de estos procesos articulados a estrategias de reconversión muestra que la hibridación interesa tanto a los sectores hegemónicos como a los populares que quieren apropiarse los beneficios de la modernidad'' (CANCLINI, N., 2000, p. 53).

As disparidades culturais, que são evidenciadas na convivência contínua entre o primitivo e o moderno na América Latina, podem ser compreendidas pelo enfoque que Martín-Barbero incorpora de García Canclini ao situar a diferenciação nos planos das pressões, mediações e afirmações.

As pressões são de ordem externa e correspondem ao empobrecimento e às migrações de grupos populacionais. Alie-se, ainda, o incentivo à produção de bens simbólicos locais para consumo turístico, fazendo da cultura popular espetáculo de estereótipos. Neste sentido, a mistura deixa entrever a diferença entre primitivo e moderno, porém subordinando o primeiro ao segundo. Se o consumo capitalista é o acicate da situação anterior, o Estado pressiona ao se apropriar daquelas produções culturais para operar ideologicamente a identidade nacional contra as fragmentações sociais e políticas.

As mediações ocorrem no âmbito interno, quando o nivelamento cultural opera com o desligamento dos nexos entre o fazer, o saber e o existir das comunidades. Nesta perspectiva, o indivíduo é distanciado do seu núcleo comunitário, o sentido da produção coletiva se desfaz, levando ao ocultamento da memória da atividade comum e seu sentido social para privilegiar a necessidade da marca individual.

As afirmações são menos visíveis que os planos precedentes, já que pressuposições etnocêntricas advindas de análises antropológicas ou de lutas políticas dificultam o discernimento sobre ''o sentido do desenvolvimento daquelas culturas''. Os pressupostos que marcam a diferença de atividades ou produtos da cultura popular diante dos da alta cultura, acabam por fazer da primeira uma referência que valoriza a segunda e, ao mesmo tempo, reforça a ''dominação cultural e social''.

Desse modo, o discernimento consiste em perceber-se o processo de apropriação que a cultura popular faz dos signos modernos para atualizar suas produções, comunicações ou atividades sem perder o controle sobre o uso de tais signos, ou seja, as pessoas que portam esses elementos distintivos do moderno os inserem em suas vidas, conforme a sua visão de mundo, suas identidades e suas transformações.

Passemos, agora, à afirmação de Martín-Barbero sobre a capacidade vanguardista da literatura ao realizar o desenvolvimento do processo de mestiçagem - ''tecido de temporalidades e espaços, memórias e imaginários que até agora só a literatura soube exprimir. Talvez somente aí a mestiçagem tenha passado de objeto e tema a sujeito e fala: um modo próprio de perceber e narrar, contar e dar conta'' (MARTÍN-BARBERO, J., 1997, p. 259). Vejamos, então, como o discurso literário latino-americano de Carlos Fuentes sintoniza seu estilo de interpretação com a medida e o modo de negociação entre a apropriação transformadora e o radicalmente diverso.

A proposta da arte literária de Carlos Fuentes convoca leitores plurais que questionem e respondam como sujeitos ativos as questões geradas por sua narrativa. O próprio autor, mediante as conexões culturais que estabelece, também se faz detentor de múltiplos autores, construindo sua obra como uma longa narrativa. Por essa perspectiva, a criação refaz seu inventário artístico a cada momento, quando/onde acontece o encontro do escritor com o eleitor-leitor.

As narrativas curtas que compõem o livro El naranjo de Carlos Fuentes anunciam desde o título a mestiçagem, pois a laranja, que aparece em todos os contos, mostra a migração das culturas e aclimatações distintas, uma vez que é introduzida pelos árabes na Espanha e levada à América pelos conquistadores. A própria imagem da fruta espelha a circularidade das narrativas.

Do livro de Carlos Fuentes selecionamos ''Apolo y las putas'' (Aylp) que conta a história de um ator dos Estados Unidos em férias na cidade de Acapulco; na profissão e na vida pessoal ele passa por um momento crítico, carreira decadente e casamento fracassado. No balneário mexicano, o galã busca qualquer possibilidade de prazer no desfrute do turismo sexual, culminando em orgia com prostitutas em uma viagem de caíque. O desregramento leva o barco a perder o rumo; e o astro, a vida. A morte, contudo, confere-lhe poderes como a continuidade da narração e a agudização da consciência que percebe para além da decadência dos corpos: morto (o do ator) ou comercializados (os das prostitutas) realidades humanas mais integrais.

O personagem, que narra sua própria história, traz a marca de sua inserção cultural nos Estados Unidos: um migrante da Europa periférica, funcionando como ícone da indústria cultural.

Eres un irlandés negro, me dijo Cindy cuando me enamoré de ella. Era platinada e idéntica a todo lo que he visto hoy desde los cielos. [...]Te llamas Vince Valera [...] un náufrago. Un descendiente de marineros españoles arrojados a la costa de Irlanda por el desastre de la Armada Invencible. [...] Un latino del norte, Vince, moreno con las cejas más negras y pobladas del mundo [...], tu pelo negro, lustroso, y la perfección de tu cuerpo, Vince, liso como un Apolo, sin vello en el pecho o las piernas, lustroso como un mármol negro o un gladiador antiguo, fuerte como el pectoral de un legionario romano, musculoso como un guerrillero español, pero con más pelo en las axilas y el pubis que cualquier hombre que yo haya conocido antes (Aylp,1993, p.183-4)

Quando a homogeneização da indústria cinematográfica americana é tensionada pela afirmação cultural de um outro modo de ser, olhar, narrar, em um idioma distinto do inglês, o ator percebe-se um sujeito multifacetado e compreende a opacidade contínua de seus papéis, que propiciaram seu reconhecimento pelos meios massivos e pelo público, anterior a essa atuação:

Padovani [el cineasta] no da resposta. El espectador debe darla.
Yo sentí que por única vez en mi vida mi actuación estaba en manos de un artista. Sentí que la película se iba descubriendo a sí misma a medida que él [...] la filmaba. La diferencia entre el teatro y el cine es que éste se hace de una manera quebrada y sin continuidad. Padovani logró convertir este procedimiento técnico en creación artística. La obligada manera técnica de filmar -el final al principio, el principio al final- él la convirtió en una manera de buscar la película. Además, [...] me obligó a buscarme a mí. No se trataba de memorizar líneas y decir mañana me toca de tal a tal página. Se trataba de buscarme como actor y como hombre y descubrí que esto era un personaje: alguien que es y que representa al mismo tiempo. (Aylp,1993, p.179)

A narrativa literária, desde o início, mistura-se com a forma do roteiro de um filme com subtítulos que funcionam como marcação temporal das cenas: ''A punto de amanecer'', ''Mediodía'', ''Otro ocaso'', ''Cayó la noche'', ''20:00'', ao mesmo tempo, o narrador personagem compõe o seu discurso sobre si próprio e os outros e traz os relatos destes sobre ele mesmo como fragmentos da linguagem cinematográfica: ''esa película me dio un pasado, ya no tengo más pasado que no sea mi película italiana!''(Aylp,1993, p. 184), ''por más que yó cerrase los ojos, las luces le daban a Cindy un rostro fluido, ora verde, ora rojo, como si sus celos y su furia no fueran más que descripciones del juego de luces en una discoteca''(Aylp, 1993, p.184), ''eres parte del cine negro, no dejes de ser el villano oscuro, Vince mi amor, sé siempre el Apolo maldito de la serie B...''(Aylp, 1993, p.184)

A linguagem da cultura popular em um de seus modos de ser mais coloquial e lúdico, o trocadilho, caracteriza a fala das prostitutas e o traço de marginalidade dos periféricos nas grandes cidades com fluxos contínuos de gentes, a corrupção ambiental e social das urbes corresponde à corruptela da língua. Todavia, tal linguagem ressalta a possibilidade de um controle comunicacional no uso cifrado do padrão lingüístico hegemônico:

A las muchachas quería ensenãrles una cosa. [...] Todas se rieron mucho y empezaron a burlarse. Alburearon de lo lindo, como es la costumbre en México y en Los Ángeles, ciudades hermanas en las que el lenguaje sirve más para la defensa que para la comunicación, más para disfrazar que para revelar. El juego del albur aleja, disfraza, esconde; se trata de sacar de una palabra inocente otra palabra soez, hacer que todo tenga doble sentido y que éste, consuerte, se vuelva triple. [...] Después de una noche de entregarse a la energía del cuerpo, era como si las muchachas hubiesen sudado todos los jugos corpóreos y ahora tuvieran bien lubricadas las cabezas para dedicarse al arte del lenguaje. Pero era un lenguaje grosero, que les provocaba hilaridades en cadena y que sin embargo parecía afirmarlas como seres de algún modo superiores, dueñas de la lengua en contra de los dueños del dinero, castradoras del idioma ''decente''del señor, el jefe, el millonario, el turista, el cliente. (Aylp,1993, p.197-8)

A morte do personagem mistura as diversas perdas irrecorríveis das mulheres da vida, que estão em sua companhia, à transformação do olhar conservador que eterniza sua condição de prostitutas para afirmar a percepção de suas histórias pessoais, para tal as totalizações se desfazem, nem a caracterização pela ideologia compensatória de inclusão nacional nem o pré-conceito da classificação sociológica externa: ''empecé a distinguirlas de verdad. Tuve que morirme para individualizarlas, desmexicanizarlas, destercermundializarlas?'' (Aylp,1993, p.207)

No entanto, a compreensão da condição de desamparo dos habitantes e do país latino-americano, que é o inverso do protecionismo do estilo de vida norte-americano, também se esclarece nessa onisciência irônica, conferida pela perda da existência. ''Me di cuenta. En la muerte, me volví mexicano''. (Aylp,1993, p.227). A laranjeira está ao lado da tumba do personagem que permanece sonhando à sombra dessa árvore as diversas e incessantes misturas históricas e culturais, senha para a reflexão do leitor sobre a constante possibilidade de mudanças.

 

BIBLIOGRAFIA

BOAVENTURA, S. M. A imaginação histórica: inventário da América em Cristóbal Nonato e Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras, UFRJ, 2000. p. 123-233.

BOSI, A. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 308-347.

GARCÍA CANCLINI, N. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Trad. Maurício Santana Dias & Javier Rapp. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1995. 266 p.

------. ''El debate sobre la hibridación en los estudios culturales''. In: Cultura en América Latina. Deslindes de fin de siglo. México: Universidad Autónoma de México, 2000. p. 47-69.

CANDIDO, A. ''Literatura e subdesenvolvimento''. In... América Latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 343-362.

FUENTES, C. El naranjo. Madrid: Alfaguara Hispánica. 1993. p. 169-232.

------. Geografía de la novela. México: Fondo de Cultura Económica, 1995. 178 p.

MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Trad. Ronald Polito & Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997. 356 p.