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An. 3. Enc. Energ. Meio Rural 2003

 

Infra-estrutura energética rural e incidência de trabalho infantil

 

 

Aloísio Leoni Schmid

Universidade Federal do Paraná, Departamento de Arquitetura, Caixa postal 19.011, CEP 81.531-990 Curitiba PR

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo do Censo Agropecuário de 1996 do IBGE, e de um antigo pressuposto de constituir a mão-de-obra humana uma significativa fonte de energia no campo, procurou-se esclarecer se existe alguma correlação entre a incidência de trabalho infantil e a inexistência de infra-estrutura elétrica nas propriedades rurais brasileiras. Esta verificação foi feita, inicialmente, por município, e depois por cultura desenvolvida compreendendo agricultura, pecuária e extrativismo. A análise por município não revela qualquer correlação. Já uma análise por cultura sugere poder existir uma correlação linear entre porcentagem da mão-de-obra que caracteriza trabalho infantil e a porcentagem de propriedades rurais sem serviços de energia elétrica. Esta correlação se refere à porcentagem de mão-de-obra de menores membros da família, comprovando relatos conhecidos da literatura. Recomenda-se que, no seguimento, seja melhor investigada, com maior especificidade de região e caráter das atividades econômicas.

Palavras-chave: Trabalho infantil; energia renovável; desenvolvimento sustentável


ABSTRACT

Based both on the data available at the IBGE (Braz. Geographic and Statistical Institute) World Wide Web site from the Censo Agropecuário de 1996 and on the premise, that human energy is one of the most important energy sources in rural areas, the existence of a correlation of infant work and electric energy infrastructure in Brazilian rural properties was investigated. The verification was conducted first by Municipality, and second by product. Analysis covered agriculture, poultry and extractive practices. As a result, first part led to no correlation at all. However, the second part suggested a correlation to exist between share of rural workers under 14 and share of rural properties not having access to electric energy services. This correlation refers to the share of workers being both under 14 and belonging to the owner's family, corroborating the indication, in the literature, of infant work being a familiar tradition in the Brazilian countryside. Finally, the advance of the investigations with an approach more specific to region and character of economic activity is recommended.


 

 

INTRODUÇÃO

Não é nova a evidência de que, no Brasil, as crianças da família são ocupadas com afazeres da propriedade rural. Embora não tenha sido localizado um estudo sistemático do assunto em todas as épocas da história do Brasil, diversas obras mencionam tal fato como algo quase que corriqueiro. Um levantamento de numerosas menções a tal prática foi realizado pelo autor [4]. Embora os dados utilizados no presente trabalho sejam de 1995 e como tal não considerem os esforços empreendidos desde então na diminuição e erradicação do trabalho infantil, eles contêm informação ainda hoje válida na coibição de tal prática, que cumpre descrever com a maior clareza.

O trabalho infantil é indesejável tanto por não haver uma perfeita adequação da estrutura física e de saúde das crianças e jovens para muitas atividades profissionais, mas principalmente ao se considerar sua indisponibilidade, caso tenham atividade profissional desde cedo, para a freqüência escolar, assim como para o recebimento de uma educação informal adequada.

A partir de 1997, o governo brasileiro, algumas universidades, academia, imprensa, a sociedade civil organizada e instituições internacionais promoveram uma intensa discussão do assunto, procurando trazer à tona denúncias puntuais como estatísticas reveladoras da situação geral. A diminuição na incidência do trabalho infantil tem sido freqüentemente citada em relatórios de avanços sociais obtidos nas duas últimas gestões presidenciais até o presente momento.

No Brasil, é hoje proibido o trabalho exercido por menores de 16 anos, sendo tolerado o trabalho de jovens a partir de 12 anos com o caráter de aprendizes. Todavia, tal não é a situação do contingente ainda hoje existente no meio rural, havendo a evidência de se tratar de mão-de-obra empregada de maneira informal ou mesmo familiar.

Em agosto de 1999, uma pesquisa realizada pelo IBASE (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) a pedido do Ministério do Trabalho causou perplexidade ao revelar que o PRONAF (Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar), importante iniciativa de crédito a pequenos produtores rurais, estava sendo o causador indireto de evasão escolar 235 mil crianças, uma vez que as famílias beneficiadas com crédito do governo investiam na produção de modo a ficarem automaticamente dependentes de mão-de-obra auxiliar. Um aspecto especialmente conflitante é a diferença de percepção da questão pelo governo de um lado, e pelas famílias recebedoras de crédito por outro. Ao governo interessa a melhoria de desempenho em alguns indicadores sociais específicos. Já às famílias recebedoras de crédito, interessa a subsistência.

A procura de um vínculo entre a incidência de trabalho infantil e a disponibilidade de uma infra-estrutura energética decorre de uma tentativa de interpretação energética de duas tendências concomitantes:

- a correlação entre falta de acesso aos serviços energéticos e as altas taxas de natalidade, sugerida por alguns estudiosos e mencionada em [1];

- a correlação (mais óbvia) entre incidência de trabalho infantil e a baixos índices de freqüência, ou altas taxas de evasão escolar.

Partimos da hipótese de que o trabalho infantil é um recurso emergencial numa situação de carência na satisfação de necessidades básicas – aqui definidas de acordo com a formulação proposta pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) em 1976, a seguir utilizada por diversas organizações até ser aperfeiçoada pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) proposto pela UNDP (Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas). Embora o conceito de necessidades básicas não seja o mais atual na caracterizacão da pobreza, serve ainda bem para caracterizar seus vínculos com a energia.

Na classificação apresentada por Nohlen [3] vemos que o trabalho infantil abrange os três grupos inferiores de necessidades básicas:

- de sobrevivência básica (ex.: procura e transporte de água potável e alimentação básica);

- de sobrevivência durável (ex.: construção e manutenção de um abrigo; procura de alimentação suplementar);

- de sobrevivência produtiva (ex.: atividades produtivas e acesso aos fatores de produção, incluindo alguma educação).

Já um quarto grupo de necessidades básicas, que se identifica acima de todos estes é o da sobrevivência com satisfação de necessidades materiais e não materiais, que traduzimos aqui como sobrevivência cidadã. Com menos freqüência, identificamos exemplos que atestam a participação de crianças nas atividades deste grupo (como acesso a bens de consumo e participação nas decisões que afetam a vida individual e do grupo). Uma vez garantida a sobrevivência produtiva, a conquista da cidadania inclui a educação suplementar dos pais de família e, antes ainda, da educação da geração dos filhos. Assim, uma das condições para que se satisfaça o nível de necessidades básicas, referentes a uma "sobrevivência cidadã" é a própria manutenção dos filhos na escola, na maioria dos casos incompatível com o trabalho infantil.

A importância do esclarecimento das relações entre trabalho infantil e incidência de uma infra-estrutura energética é de modo a se conceber adequadamente programas de disponibilização de serviços de energia em regiões rurais isoladas, de modo a alcançar o máximo impacto sobre a qualidade de vida das populações.

Uma importância que é freqüentemente atribuída aos serviços de energia nas regiões rurais é a iluminação, viabilizando aulas no período noturno, e a televisão na escola, possibilitando o recebimento de programas educativos por vídeo ou satélite, e mesmo ainda o uso computador. Tal destaque recebido por estas aplicações da energia no campo tem justificado, mesmo, a prática de programas de eletrificação rural concentrados no atendimento das necessidades comunitárias, como tem sido o PRODEEM (Programa para o Desenvolvimento Energético dos Estados e Municípios, do Ministério de Minas e Energia), existente desde 1994 e que vem crescendo em abrangência, tendo já em 1998 superado os R$ 10 milhões anuais de investimento.

Aqui, cabe um comentário esclarecedor. Embora seja de indiscutível valor tanto a iluminação nas escolas quanto a disponibilização de um conjunto de TV e vídeo-cassete, parece haver uma inversão de prioridades quando tais equipamentos são introduzidos na escola antes que as famílias de seus alunos tenham garantida uma sobrevivência produtiva. Parece paradoxal o investimento em qualidade do ensino se a causa da evasão escolar está na dificuldade das famílias, em satisfazerem suas necessidades de alimentos, água, saúde básica ou uma habitação adequada.

Completando a definição da hipótese acima, propomos que o maior benefício da energia para a educação, nas áreas rurais não é girar o vídeo-cassete, mas livrar os alunos da função de energia motriz para seus lares, nas operações mais freqüentes do trabalho infantil.

 

RESULTADOS GERAIS

O número total de menores de 14 anos empregados na propriedades rurais brasileiras era de 2.435.000 em (13,58%) 31 de dezembro de 1995. Isto significa a grande maioria dos trabalhadores infantis apontados naquele ano. O número total de propriedades rurais eletrificadas, no Brasil, era de 1.895.068 num total de 4.859.829 (38,99%).

 

ANÁLISE POR MUNICÍPIOS

Considerando-se a possibilidade das relações entre as diferentes realidades de infra-estrutura energética condicionar em cada um dos municípios brasileiros o recurso ao trabalho infantil nas propriedades rurais, procedemos à exaustivo processo de cruzamento de dados de

a) percentagem de mão de obra abaixo de 14 anos nas propriedades rurais e

b) porcentagem de propriedades rurais eletrificadas

referentes a universo de mais de 4000 municípios brasileiros constantes no Censo Agropecuário de 1996, disponível nas páginas do IBGE na World Wide Web.

Como resultado de tal cruzamento de dados, obtivemos um gráfico de difícil leitura onde a dispersão de pontos é de tal modo visível que demonstra, já visualmente, não haver indícios de uma correlação entre as duas variáveis a) e b) acima descritas. Devido à dificuldade da leitura, optamos por não reproduzir tal gráfico aqui.

Como explicação para tamanha dispersão, aceitamos provisoriamente a hipótese de serem as especificidades regionais e locais fortes condicionantes de cada uma das duas variáveis a) e b) tomadas individualmente, inibindo uma correlação no âmbito nacional. Há indícios de haver fatores relativizadores. Por exemplo, a pecuária bovina pode contar com situações bastante distintas de eletrificação se compararmos os pampas gaúchos com as pastagens na Rondônia. O fato de um fazendeiro em Rondônia possuir boa parte de sua propriedade não atendida pela rede elétrica pode não significar um baixo nível de renda como significaria para um gaúcho. A escala de sua produção e os preços alcançados no mercado local, mais do que um padrão tecnológico, irão condicionar a permanência num determinado estrato de renda. Todavia, na média nacional, as ocorrências de bovinocultura apresenta valores para a) e b) que, se comparada com os valores médios nacionais das outras culturas de pecuária, e ainda também com outras culturas agrícolas e de extrativismo, parecem estar linearmente relacionados.

 

ANÁLISE POR CULTURA

A análise dos dados relativos a a) e b) da descrição acima tomados por cultura parece bem mais reveladora que a análise feita por municípios.

Analisou-se os números apresentados pelo Censo Agropecuário para cada uma das principais culturas praticadas no Brasil, tanto em agricultura, pecuária como extrativismo.

As seis atividades que mais empregavam menores de 14 anos totalizavam 67% do contingente total em 31 de dezembro de 1995 são apresentadas na Tabela 1. Temos nela um indício de, em termos quantitativos, estar o trabalho infantil associado a culturas de subsistência. Esta hipótese é sustentada pela percentagem de proprietários moradores no local: produção mista (82%), bovinos (56%), mandioca (80%), feijão (59%), milho (55%), arroz (76%).

 

 

A Tabela 2 apresenta a relação de todas as culturas consideradas, assim como os números relativos à composição da mão-de-obra, e à disponibilidade ou não de serviços de energia elétrica.

O gráfico da Figura 1 foi obtido da totalidade dos pontos da Tabela 2. Numa tentativa de aproximar uma reta aos pontos, obteve-se o coeficiente de correlação R² próximo de 0,5, o que indica não haver, provavelmente, uma correlação entre as duas propriedades a) e b) analisadas.

 

 

Dando continuidade à análise, procedeu-se a uma classificação elementar dos dados disponíveis, separando-os sob dois critérios:

- força de trabalho menor de 14 anos: distinção entre os menores da família do proprietário & administrador e os de fora;

- culturas listadas na Tabela 2: distinção entre aquelas de caráter alimentício daquelas de caráter não-alimentício.

Destacando-se da Tabela 2 todas as atividades relacionadas a produtos não-alimentícios (Fumo, Juta, Mamona, Floricultura, Sericicultura, Silvicultura, Madeira plantada, Não madeireiros plantados, Madeira extrativa, Não madeireiros extrativos, Borracha extrativa, Carvão vegetal de madeira plantada, Carvão vegetal de madeira nativa, e a cana-de-açúcar, pelo seu caráter predominantemente de combustível), obtemos Figura 2 como resultado da comparação entre as variáveis a) e b) para o grupo de menores membros das famílias.

 

 

Já as culturas cujos produtos não se caracterizam como alimentícios apresentam uma relação entre energia e trabalho infantil da de acordo com a Figura 3.

 

 

Percebe-se que para as culturas não voltadas à produção de alimentos é menos evidente uma correlação entre disponibilidade de energia elétrica e incidência de trabalho infantil.

O comportamento mais afastado da relação linear observada na Figura 2 no caso das culturas não voltadas para produtos alimentícios pode ser atribuído a diferenças importantes de escala e da natureza dos empreendimentos. Embora sejam incluídas na classificação de propriedades rurais, apresentam maior probabilidade de uma diversificação maior da mão-de-obra, tendendo a uma menor significação de membros da família proprietária ou administradora.

A consideração dos menores contratados fora da família que administra a propriedade origina o diagrama da Figura 4 para o caso dos produtos alimentícios. Para o caso dos produtos não-alimentícios, vale o diagrama da Figura 5.

 

 

 

Não existe nesta uma relação linear que mostre haver tanto mais mão-de-obra menor de 14 anos quanto menor for a percentagem de propriedades servidas pela energia elétrica. Do contrário, sugere a disposição dos pontos em configuração linear no sentido oposto àquele encontrado na Figura 2. Todavia, o significado desta distribuição, provavelmente aleatório, não será objeto de discussão aqui.

O resultado mostrado nas figuras é no mínimo instigante a um aprofundamento das pesquisas. Já uma semelhante verificação da existência de uma correlação entre a variável a) acima e a disponibilidade de tratores aponta resultados negativos.

 

CONCLUSÃO

No Censo Agropecuário Brasileiro de 1996 , os dados de a) percentagem de mão de obra abaixo de 14 anos nas propriedades rurais e b) porcentagem de propriedades rurais eletrificadas não mostram qualquer tendência à correlação se tomados por cada um dos mais de 4000 municípios considerados.

Já os dados tomados por cultura sugerem visualmente haver a disposição dos dados configurando uma função linear, o coeficiente de correlação R² = 0,55 não permite sustentar tal afirmação.

Procedendo-se à separação das variáveis de acordo com os critérios de produtos alimentares e não alimentares, e de menores da família e menores de fora da família, chega-se a um coeficiente de correlação R² = 0,72 para a incidência de menores da família trabalhando em culturas voltadas para produtos alimentares. Na mão-de-obra infantil considerada, observa-se ser a mesma composta de uma parcela predominante de menores da família do dono ou administrador da propriedade, em que a correlação com b) é mais provável, e uma parcela de menores contratados de fora da família do dono ou administrador da propriedade, em que a correlação com b) é completamente ausente.

Os resultados levam a crer que, no meio rural brasileiro, o trabalho infantil não é de natureza intelectual nem criativa, mas tem a função primordial de força motriz. Percebe-se como as famílias engajadas na produção de alimentos ainda não conseguiram abandonar um estágio de subsistência em direção à geração de excedentes através da atividade produtiva que as habilita a tomar decisões em favor do próprio futuro, entre elas as referentes à educação dos filhos.

É certo que a pesquisa realizada assume um caráter bastante simplista da verificação da correlação entre duas variáveis que, se não parecem independentes entre si, não são isentas de outras influências. Todavia, a forma obtida no gráfico é no mínimo curiosa. Como um significado prático desta observação, podemos tirar duas lições:

- a melhoria sustentável da qualidade de vida passa necessariamente pela introdução de serviços energéticos

- as políticas de melhoria de qualidade de vida através da introdução de serviços energéticos devem endereçar prioritariamente as necessidades mais básicas, para depois partirem para as mais elevadas.

A última lição significa que, mesmo que seja justificável pelo ponto de vista de logística o início pelas aplicações comunitárias da energia, a ordem mais lógica do ponto de vista de hierarquia de necessidades seria o atendimento das necessidades particulares. Prevalece o desafio de fazê-lo de maneira equalitária, sem criar nem aguçar desigualdades.

Tanto a atualidade do tema quanto a abrangência da base de dados já disponível no IBGE, indicam como oportuno o prosseguimento desta pesquisa, com seleção mais refinada de critérios de comparação, e o estabelecimento de um projeto piloto para a análise da eficácia de uma intervenção.

 

REFERÊNCIAS

[1] H.Scheer, O Manifesto Solar: energia renovável e a renovação da sociedade, tradução do original alemão por A. L. Schmid, Eletrobrás (1995)

[2] Censo Agropecuário Brasileiro, www.ibge.gov.br

[3] D. Nohlen (organizador), Lexikon Dritte Welt, Rowohlt Handbuch, Hamburg, Alemanha (1993)

[4] A. L. Schmid, Trabalho infantil e contexto familiar em regiões rurais: o papel da infra-estrutura energética, 18 pp., monografia submetida ao IPEA em janeiro de 1999

 

 

Endereço para correspondência
Aloísio Leoni Schmid
alschmid@uol.com.br