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An. 3. Enc. Energ. Meio Rural 2003

 

Estimativa do potencial brasileiro de produção de biogás através da biodigestão da vinhaça e comparação com outros energéticos

 

 

Raquel de Souza PompermayerI; Durval Rodrigues de Paula JúniorII

IFaculdade de Engenharia Agrícola/Unicamp, CEP: 13083-970 Tel.: 788-1007
IIFaculdade de Engenharia Agrícola/Unicamp, CEP: 13083-970 Tel.: 788-1035

 

 


RESUMO

Foi realizada uma análise técnico-econômica da produção brasileira de biogás, a partir da biodigestão anaeróbia da vinhaça da cana de açúcar. A avaliação foi feita baseando-se em três alternativas de aproveitamento do biogás gerado: a) todo o biogás sendo usado em veículos, após purificação e compressão; b) todo o biogás sendo usado em caldeiras e o efluente tratado sendo disposto na plantação de cana de açúcar como fertilizante; c) 1/3 do biogás sendo usado em veículos e o restante queimado em caldeiras e o efluente sendo disposto na plantação de cana como fertilizante. Tomando-se como referência as duas primeiras alternativas, comparou-se os custos de produção do biogás com os preços de alguns energéticos potencialmente concorrentes. Os resultados indicam grande potencial de produção e competitividade com vários energéticos, particularmente os de origem fóssil.

Palavras-chave: Produção de Biogás, Biodigestão de Vinhaça, Processo Anaeróbio.


ABSTRACT

This paper analyses the technical and economical possibilities of the biogas production by digestion anaerobic of the sugarcane vinasse in Brazil. It was considered three possibilities: a) all biogas used in combustion internal machines (vehicles), after purification and compression; b) all biogas used in boilers and the effluent disposed in sugarcane plantation as fertilizer; c) 1/3 of biogas used in vehicles and 2/3 burned in boilers and the effluent disposed in sugarcane plantation as fertilizer. After this, the costs of biogas was compared with the prices of potentially concurrent fuels. The results suggest great potential of production and competitiveness with several fuels, mainly the fossils.


 

 

INTRODUÇÃO

A escassez de recursos naturais não-renováveis, aumento da demanda e suas implicações ambientais, têm estimulado a pesquisa e desenvolvimento de tecnologias alternativas de suprimento energético. Neste contexto, a conversão da biomassa em vetores energéticos (combustíveis líquidos, gasosos e eletricidade) tem se mostrado uma alternativa interessante.

No que diz respeito ao aspecto ambiental, sabe-se que a queima de combustível fóssil aumenta o teor de CO2 na atmosfera. Por outro lado, a utilização da biomassa como fonte de energia (biogás, por exemplo) não aumenta o teor de CO2 na atmosfera, uma vez que o CO2 liberado durante a combustão da biomassa, equilibra-se com aquele consumido durante a fotossíntese.

Dentre as formas alternativas de conversão da biomassa em energia secundária, destaca-se a biodigestão anaeróbia de resíduos (agroindustriais, domésticos, etc.), o que permite o seu aproveitamento sob a forma de biogás (metano). Na verdade, a produção de metano é apenas uma das vantagens da biodigestão anaeróbia, cuja finalidade maior é o tratamento de efluentes. As vantagens são as seguintes: alta redução de DBO, produção de biofertilizante, pequena produção de lodo, baixos custos operacionais e de investimento, possibilidade de sistemas descentralizados de tratamento.

Um outro determinante que torna o processo ainda mais proveitoso é a utilização do biogás gerado como uma fonte de calor para o processo, contribuindo para a redução dos custos de tratamento. Em termos energéticos, seu aproveitamento pode ser feito através da simples queima em caldeiras, dispensando sistemas complexos de purificação, compressão e estocagem. Para seu uso em veículos, é necessário altos níveis de purificação para a eliminação de H2O, CO2 e H2S e sistemas complexos de compressão à alta pressão.

Neste trabalho, fez-se uma estimativa e análise técnico-econômica da produção brasileira de biogás, a partir da biodigestão anaeróbia da vinhaça da cana de açúcar. A avaliação foi feita com base em três alternativas de aproveitamento do biogás gerado: a) todo o biogás sendo usado em veículos, após purificação e compressão; b) todo o biogás sendo usado em caldeiras e o efluente tratado sendo disposto na plantação de cana de açúcar como fertilizante; c) 1/3 do biogás sendo usado em veículos e o restante queimado em e o efluente sendo disposto na plantação de cana como fertilizante. Posteriormente, comparou-se os custos de produção do biogás, considerando as duas primeiras alternativas de investimento, com os preços de alguns energéticos potencialmente concorrentes.

Quanto à tecnologia de biodigestão, considera-se reatores UASB (Upflow Anaeróbic Sludge Blanket Reactor). Essa avaliação econômica foi efetuada com base na análise dos custos de produção de biogás, correspondentes às três alternativas de investimento para o aproveitamento do biogás gerado, citadas anteriormente.

 

USO DA TECNOLOGIA DE REATORES UASB PARA PRODUÇÃO DE BIOGÁS

O reator UASB consiste basicamente de um tanque, constituído de um compartimento digestor localizado na base, contendo o leito de lodo biológico e no topo está localizado um decantador precedido por um sistema de separação de gás. O afluente a ser tratado distribui-se uniformemente na base do reator, passando pela camada de lodo, através da qual a matéria orgânica é transformada em biogás. O gás produzido é impedido pelos defletores de dirigir-se ao sedimentador, entrando apenas em algumas regiões do reator. A porção de lodo que atinge o decantador é separada, retornando à base do reator e o afluente é uniformemente retirado da superfície do mesmo. A Figura 1, abaixo, representa esquematicamente o reator UASB.

 

 

Um dos critérios que devem ser utilizados para a operação e controle de um reator UASB é a estimativa da produção potencial de biogás a partir de um resíduo. Segundo SOUZA (1986), essa estimativa é feita a partir dos seguintes fatores:

1. A produção teórica de CH4, num estado constante, é proporcional a quantidade de DQO (Demanda Química de Oxigênio) consumida no reator (1g de DQO consumido corresponde à produção de 0,35 lCH4; a temperatura e pressão normais);

2. Uma parte do biogás produzido é dissolvida e perdida no efluente;

3. Parte da DQO é transformada em biomassa.

Em resíduos concentrados (vinhaça, por exemplo), a produção livre de biogás é alta em relação ao remanescente dissolvido. Neste caso, obtém-se, na prática, uma produção de 0,30 lCH4/g DQO consumida, sendo que a proporção de CH4 no biogás é cerca de 55% a 65% de CH4 (a fração remanescente é constituída principalmente de CO2).

SOUZA et alli (1992), baseados em estudos realizados numa planta piloto de escala industrial (reator UASB de 75 m³), operando 280 dias por ano, demonstraram a viabilidade da digestão anaeróbia termofílica (55-57 ° C) de vinhaça em reatores UASB. Conseguiu-se altas taxas de carregamento orgânico (25-30 Kg DQO/m³ de reator.dia), cerca do dobro daquelas normalmente usadas para tratamentos mesofílicos similares de vinhaça, nesse tipo de reator. Nestas condições, verificou-se alta conversão da matéria orgânica (com 72% de eficiência na remoção de DQO) e taxa de produção de biogás de 10 m³/m³de reator.dia.

Segundo os referidos autores, conseguiu-se um ótimo desempenho do reator nos últimos 50 dias de operação, mesmo aplicando-se uma alta taxa de carregamento orgânico e um baixo tempo de detenção hidráulico (TDH). Valores médios, correspondentes aos parâmetros que mostram o desempenho do reator nos últimos dias de operação, são destacados no Quadro 1, abaixo.

 

 

Verificou-se, portanto, que a remoção de DQO atingiu uma eficiência de, aproximadamente, 72% e que 0,37 m3 de metano foi produzido a partir da conversão completa de 1kg de DQO.

Conforme JOHANSSON et alli (1993), a taxa de carga orgânica poluente encontrada por metro cúbico de etanol processado é de aproximadamente 500 Kg de DQO. Com isso, determina-se que a produção de metano por metro cúbico de etanol é de 185 m3.

 

POTENCIAL BRASILEIRO DE PRODUÇÃO DE BIOGÁS A PARTIR DE VINHAÇA

Através da relação etanol/biogás (1 m3 de etanol = 185 m3 de biogás - 60% de metano), pode-se estimar o potencial de produção de metano a partir da vinhaça gerada pela produção brasileira de etanol proveniente da cana de açúcar.

Atualmente, a produção brasileira de etanol, a partir da cana de açúcar, é de cerca de 16 milhões de m3 por ano [MME, 1998], o que corresponde a uma produção anual de cerca de 3 bilhões de m³ de metano.

Segundo NOGUEIRA (1986), o poder calorífico do biogás depende do teor de metano e do grau de umidade do gás. O valor freqüentemente adotado para o biogás (metano 60%) é de 5.500 kcal/m3. Porém, se o gás for desumidificado e o dióxido de carbono removido, seu valor aproxima-se ao do metano puro, isto é, 9.000 kcal/m3.

Considerando-se o poder calorífico de 5.500 kcal/m3, o potencial estimado anteriormente (3 bilhões de m3 de metano) corresponde a 1,65x1016 cal. Em termos de equivalência com o petróleo1, isso corresponde a 1.527.778 tEP (tonelada Equivalente de Petróleo); o que significa 0,82% da produção nacional de energia e 0,67% do consumo (Tabela 1). Os dados mostram também a importância que o biogás teria em relação a várias fontes, particularmente carvão mineral e gás natural, cujo potencial de substituição corresponderia, respectivamente, a 72% e 16% de toda a produção nacional. Em relação ao petróleo, o biogás representaria 2,2% do consumo e 3,6% da produção.

A equivalência energética do biogás em relação a outros energéticos é determinada levando em conta o poder calorífico e a eficiência média de combustão. A Tabela 2, abaixo, mostra a relação entre biogás e outros energéticos, em termos de equivalência energética, segundo três fontes consultadas.

 

 

A partir desses dados, pode-se estimar o potencial brasileiro de substituição desses energéticos pelo biogás. A Tabela 3 apresenta uma estimativa, segundo NOGUEIRA (1986), exceto para a eletricidade e GLP (1m3 eqüivale a 1,25 kWh e 0,40 Kg, respectivamente - MOTTA, 1986).

Conforme se observa, o biogás poderia substituir 5% de todo o consumo nacional de diesel (33.037.000 m3), índice este que corresponde aproximadamente à parcela de diesel destinada à geração de eletricidade. Em 1997, o setor de transporte rodoviário foi responsável por 74% do consumo nacional de óleo diesel (24.346.000 m3). Desse modo, cerca de 7% dessa parcela poderia ser substituída pelo biogás. Em relação à gasolina, o índice potencial corresponde a cerca de 10%.

Em 1997, as importações de óleo diesel representaram cerca de 18% do consumo nacional desse energético. Estima-se, assim, que o biogás poderia reduzir aproximadamente 28% dessas importações.

Em relação ao GLP e o carvão mineral, verifica-se que o biogás corresponderia a 18,9% e 42,1%, respectivamente. No que diz respeito ao GLP, importa-se cerca de 40% do consumo nacional (11.527.000 m3). Estima-se, assim, que 46,7% dessas importações poderiam ser substituídas pelo biogás.

Quanto à eletricidade, o biogás representaria 1,27% do consumo nacional, o que corresponde a 3,7 milhões de MWh; ou seja, o equivalente ao consumo anual de uma cidade do porte de Belo Horizonte (cerca de 2 milhões de habitantes).

 

COMPARAÇÃO ENTRE OS CUSTOS DO BIOGÁS E OUTROS ENERGÉTICOS

Ao se fazer um estudo da viabilidade econômica de uma instalação para tratamento de vinhaça por digestão anaeróbia, deve-se examinar atentamente os aspectos relacionados com o tratamento, levando em conta também as considerações sobre o aproveitamento energético. CRAVEIRO et alli (1986), indicam custos de investimento para plantas industriais de tratamento de vinhaça, considerando-se três alternativas de aproveitamento do biogás. Os dados são mostrados na Tabela 4.

Segundo JOHANSSON et alli (1993), os custos operacionais para produção de biogás numa planta UASB, de médio porte, situam-se entre US$ 0,03 a 0,05 por m3. Para plantas de grande porte esses custos podem abaixar para cerca de US$ 0,02/m3. A Figura 2 apresenta estimativas do custo total de produção de biogás, baseando-se nas três alternativas de investimento para o tratamento da vinhaça gerada pela produção de etanol e o aproveitamento do biogás.

 

 

Considerou-se uma vida útil das referidas instalações igual a 15 anos, uma taxa de desconto de 10% ao ano, para a qual encontrou-se um fator de recuperação de capital2 de 0,131. Os custos operacionais variam entre 0,02 e 0,06 US$/m3.

Conforme se observa, os custos variam entre aproximadamente 0,05 e 0,09 dólares por metro cúbico, para a primeira alternativa (veículos), entre 0,038 e 0,078 dólares por metro cúbico para a segunda alternativa (G1 + E1) e entre 0,044 e 0,084 dólares por metro cúbico para a terceira alternativa (G2 + E1).

Uma vez que o custo de investimento (0,029 US$/m3) é fixo, o custo total (investimento + operacional) varia em função do custo operacional. A Figura 3 mostra a contribuição de cada custo na composição do custo total, considerando a alternativa em que todo biogás é utilizado em veículos automotores. Conforme se observa, o custo de investimento varia entre 32% e 60% do custo total.

 

 

A Tabela 5 apresenta uma comparação entre os custos de produção do biogás e o preço de alguns energéticos, considerando as duas primeiras alternativas e os valores convertidos em US$/tEP3.

Em relação à primeira alternativa, verifica-se que os custos de produção do biogás variam entre 80 US$/tEP e 147 US$/tEP, ao passo que os preços médios do diesel, da gasolina e do álcool, correspondentes ao ano de 1995, eram de 327, 436 e 237 dólares por tEP, respectivamente. Nota-se, portanto, que, na pior das hipóteses (custo operacional de 0,06 US$/m3), o biogás apresenta custos bastante inferiores aos demais energéticos.

Quanto à segunda alternativa (G1 + E1), os custos de produção de biogás variam entre 63 US$/tEP e 129 US$/tEP. Os principais combustíveis que podem ser considerados concorrentes neste caso (isto é, que poderiam ser queimados em caldeiras) são o óleo combustível, o gás natural, o GLP e o carvão vapor, cujos preços médios de 1995 foram de 150, 103, 203 e 26 dólares por tEP, respectivamente. Nota-se, portanto, que, com exceção do carvão vapor, cujo preço é bastante baixo, os demais combustíveis apresentam preços bastante superiores ao do biogás.

 

CONCLUSÃO

As estimativas do potencial brasileiro de produção de biogás, a partir do processamento do etanol de cana de açúcar, mostram a importância relativa que o biogás poderia ocupar na matriz energética nacional. Os dados indicam também grande competitividade com vários energéticos, particularmente os de origem fóssil, cujas importações têm um peso relativo considerável na balança comercial brasileira.

Lembrando-se, ainda, que a queima de combustíveis fósseis provoca graves impactos ao meio ambiente e que o tratamento da vinhaça reduz sua carga orgânica poluente e produz um energético competitivo com esses combustíveis, conclui-se que se trata de uma alternativa economicamente viável e duplamente benéfica ao meio ambiente.

 

REFERÊNCIAS

1. CRAVEIRO, A. M., SOARES, H. M. & SCHMIDELL, W. Technical Aspects and Cost Estimations for Anaerobic Systems Treating Vinasse and Brewery/Soft Drink Wastewaters. Water Science and Technology, v. 18, n.12, p. 123-134, 1986.

2. FERRAZ, J. M. G., MARRIEL, I. E. Biogás - Fonte Alternativa de Energia. EMBRAPA/CNPMS, Sete Lagoas (MG). 27p, 1980.

3. IPT - Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo S.A. Análise Econômica dos Processos de Digestão Anaeróbia do Vinhoto. Relatório IPT n. 20.508, 173p, 1984.

4. JOHANSSON, T. B., KELLY, H., REDDY, A. K. N. & WILLIAMS, R. H. Renewable Energy Sources for Fuels and Electricity. Island Press, Washington. 1160p, 1993.

5. MME – Ministério de Minas e Energia. Balanço Energético Nacional. Brasília, DF, 1996/1998.

6. MONTENEGRO, A. - PEM - Engenharia. Comunicação Pessoal, 1986.

7. MOTTA, F. S. Produza sua Energia - Biodigestores Anaeróbios. Editora S.A, Recife (PE). 144p, 1986.

8. NOGUEIRA, L. A. H. Biodigestão a Alternativa Energética. Editora Nobel, São Paulo. 93p, 1986.

9. PAULA JR, D. R. Processos Anaeróbios para o Tratamento de Efluentes: Fundamentos e Aplicação. Anais do IV SHEB - Seminário de Hidrólise Enzimática de Biomassa, Maringá (PR), v.1, p. 127-140, 1995.

10. SOUZA, M. E., FUZARO, G. & POLEGATO, A. R. Thermophilic Anaerobic Digestion of Vinasse in Pilot Plant UASB Reactor. Water Science and Technology, v. 25, n. 7, p. 191-200, 1992.

11. SOUZA, M. E. Criteria for the Utilization, Design and Operation of UASB Reactors. Water Science and Technology, v. 18, n. 12, p.55-69, 1986.

 

 

1 1 tEP = 10.800 Mcal [MME, 1998].
2 FRC= i(1+i)15/[(1+i)15-1].
3 US$ de 1995, corrigidos segundo a inflação americana acumulada no período (1986-1995) [MME, 1998].