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An. 4. Enc. Energ. Meio Rural 2002

 

Demanda energética em sistemas fotovoltaicos domiciliares: resultados obtidos na comunidade de Pedra Branca, Município de Ouricuri - Pernambuco

 

 

Federico MoranteI; Roberto ZillesI; Heitor Scalambrini CostaII

IPrograma Interunidades de Pós-Graduação em Energia, PIPGE, Universidade de São Paulo - Instituto de Eletrotécnica e Energia/IEE, Av. Prof. Luciano Gualberto, 1289 - CEP 05508-900 - São Paulo - SP, e-mail: fmorante@iee.usp.br e zilles@iee.usp.br
IINúcleo de Apoio a Projetos de Energias Renováveis, NAPER, Universidade Federal de Pernambuco - Centro de Tecnologia e Geociências/DEESP, Rua Acadêmico Hélio Ramos, s/n - CEP 50740-530 - Recife - PE, e-mail: naper@npd.ufpe.br

 

 


RESUMO

Este trabalho apresenta os resultados de uma pesquisa que está sendo realizada através de uma parceria entre o Laboratório de Sistemas Fotovoltaicos do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (LSF-IEE/USP) e o Núcleo de Apoio a Projetos de Energias Renováveis (NAPER) da Universidade Federal de Pernambuco. Esta pesquisa tenta esclarecer as relações entre a demanda energética e algumas variáveis de caráter sociocultural como o contato das famílias rurais com as áreas urbanas, a composição familiar, a faixa etária, o nível de renda, os usos e costumes, a atividade econômica, a habilidade técnica, etc. Os resultados da pesquisa mostram que o consumo energético não pode ser tratado como uma constante devido a sua natureza aleatória.

Palavras chave: Sistema Fotovoltaico Domiciliar, Demanda Energética, Contadores de Ampère-hora.


ABSTRACT

This paper present result of load measurements in Solar Home Systems located in the northeast region, Brazil. This survey was carried out through a partnership between the Photovoltaic Laboratory Systems-Electrotechnical and Energy Institute/São Paulo University (LSF-IEE/USP) and the Renewable Energy Support Nucleus/Federal University of Pernambuco (NAPER). The research look for evaluate relationships between the energy demand and some social and cultural issues, for example, the contact of the rural families with the urban areas, family composition, age group, level of income, habits, economic activity, technical knowledge and ability, etc. The first analyses show that the energy consumption in Solar Home Systems, due its random and complexity cannot be treated as a constant.


 

 

1. INTRODUÇÃO

Em novembro de 1998 deu-se início a uma pesquisa de campo tentando preencher a lacuna existente no conhecimento do comportamento da demanda energética em sistemas fotovoltaicos domiciliares. Numa primeira etapa foram instalados 20 contadores de Ampère-hora (Ah) em diversos domicílios eletrificados com sistemas fotovoltaicos localizados no Vale do Ribeira, Estado de São Paulo. Os resultados desta pesquisa foram consolidados em uma dissertação de mestrado (MORANTE, 2000) e publicados através de artigos em periódicos e anais de eventos (MORANTE & ZILLES, 2000); (MORANTE & ZILLES, 2001).

Como uma tentativa de aprofundar este estudo a pesquisa foi ampliada e, a partir do mês de março do ano 2000, foram instalados 36 contadores de Ah em domicílios rurais localizados em diversas áreas geográficas do Peru e do Brasil. Um dos objetivos é analisar a relação do consumo energético e as questões socioculturais dos usuários da tecnologia fotovoltaica. Mediante este levantamento estão sendo obtidos dados de consumo em comunidades rurais localizadas nos Estados de São Paulo, Pernambuco e Amazonas e, além disso, em comunidades Quíchuas e Aimaras no Lago Titicaca, Puno - Peru. A tabela I apresenta o número de famílias e alguns dados de localização dessas comunidades.

 

 

Para a instalação dos medidores e a coleta de dados na comunidade de Pedra Branca, se contou com a colaboração do Núcleo de Apoio a Projetos de Energias Renováveis (NAPER) da Universidade Federal de Pernambuco. Isto graças a um Convênio de Cooperação Técnica assinado entre essa instituição e o LSF-IEE/USP. Analogamente, a inserção destes instrumentos nas comunidades localizadas no Lago Titicaca foi possível através do apoio dado pelo Centro de Energias Renováveis da Universidad Nacional de Ingenieria (CER-UNI) da cidade de Lima no Peru.

Através da pesquisa também estão sendo analisados alguns parâmetros estatísticos, em particular o comportamento da distribuição de freqüência do consumo de energia. Isto porque se tem indícios que o comportamento da demanda energética segue um determinado padrão o qual indica que "muitas pessoas consomem pouco e só algumas consomem muito". Este padrão de comportamento foi observado ao fazer a análise estatística dos dados de consumo obtidos em instalações fotovoltaicas para a eletrificação domiciliar e para o bombeamento de água (NARVARTE, 2001).

Com esta finalidade, a pesquisa também inclui o estudo do comportamento da demanda energética de alguns domicílios eletrificados através da rede elétrica rural (sistema Monofilar com Retorno por Terra, MRT). Os domicílios escolhidos estão localizados nas proximidades das comunidades eletrificadas com sistemas fotovoltaicos domiciliares e compartilham a mesma realidade socioeconômica e cultural.

Em linhas gerais, os dados obtidos nestas localidades complementam aqueles que estão sendo obtidos utilizando os contadores de Ah acoplados aos sistemas fotovoltaicos domiciliares. Na tabela II mostra as comunidades e as redes envolvidas no estudo.

 

 

Este estudo, como pode ser observado, é bastante amplo e complexo e abrange diversas regiões e comunidades. Neste trabalho serão mostrados os resultados obtidos na comunidade de Pedra Branca, interior de Pernambuco.

 

2. A COMUNIDADE DE PEDRA BRANCA

Com a finalidade de entender a inserção da tecnologia fotovoltaica numa sociedade se faz necessário compreender primeiro o lugar aonde ela vai atuar. Isto conduzirá ao conhecimento da história, da cultura e do entorno físico dessa sociedade por menor que ela seja. A seguir tentaremos situar o leitor na comunidade de Pedra Branca visando mostrar as relações entre a demanda energética e as diversas variáveis de caráter sociocultural.

2.1. Localização e clima

Pedra Branca se encontra localizada no Município de Ouricuri na mesoregião do Sertão Pernambucano e na denominada microregião de Araripina.

A sede do município, a cidade de Ouricuri, se encontra a 630 km da capital do Estado a uma altitude de 451 metros e a 07º52'57'' de latitude sul e a 40º04'54'' de longitude oeste. A temperatura média anual é de 24ºC com máximas de 33ºC e mínimas de 20ºC sendo a pluviosidade média anual de 1.426,80mm e os meses mais chuvosos são março e abril. O clima deste município é árido e quente (SEBRAE, 1998). A comunidade de Pedra Branca fica a uma distância aproximada de 70 Km da sede do município. A localização do município de Ouricuri pode ser observada na figura 1.

2.2. Memória histórica

Tal como aconteceu com muitos lugares do Nordeste do Brasil, a comunidade de Pedra Branca formou-se a partir de um assentamento pertencente a uma grande fazenda. Segundo Raul Aquino (1982) quando Tomé de Souza - que foi o primeiro governador geral do Brasil - chegou à Bahia em março de 1549, trouxe como almoxarife do governo a Garcia de Ávila (ou D'Ávila). Por ser este um homem impulsionado pelo espírito de aventura e cheio de ambição, em poucos anos conseguiu ser proprietário de uma enorme extensão de terra. Seu império ficou simbolizado na famosa Casa da Torre1 da Bahia. Foi no auge da "civilização do couro"2 onde o interior nordestino ficou cheio de grandes caminhos que interligavam os currais.

Após a morte de Garcia de Ávila sucedem-se diversos herdeiros os quais expandiram essas terras até os limites dos sertões do São Francisco, do Piauí e do Maranhão. No entanto, com o passar do tempo e por falta de herdeiros varões se inicia o desmembramento das terras por venda a terceiros. "Uma das adquirentes de terra foi a senhora Brígida Maria das Virgens que

ocupou extensa faixa à esquerda do Rio São Francisco até às fraldas da Serra do Araripe, no atual município de Exu. Nesta terra de Dna. Brígida, nasceria mais tarde, a cidade de Ouricuri e parte do município do mesmo nome, face a venda que fizera de uma parte de suas terras, a João Pereira Goulart" (AQUINO, 1982). Esta venda aconteceu em 1816 sendo que a propriedade dos Goulart se transformou na fazenda Tamboril. No lado leste da fazenda se organizou o sítio Aricuri lugar onde foi edificada a cidade de Ouricuri.

Posteriormente aconteceram mais desmembramentos e o aparecimento de diversas fazendas. A atual comunidade de Pedra Branca foi um assentamento de trabalhadores agrícolas de uma dessas fazendas. Com efeito, no mês de dezembro de 2001 foram realizadas algumas entrevistas gravadas com cada uma das famílias participantes da pesquisa. Como um exemplo da memória histórica do lugar mostramos parte de um desses depoimentos3:

A senhora é daqui mesmo, do lugar?

Sou daqui mesmo.

E seus pais eram daqui também?

Também eram daqui mesmo. Eram, eles já morreu, ne?

E o que falavam sobre a história da comunidade de Pedra Branca, o que estava contando..........

Pedra Branca? Porque tinha umas pedra branca no riacho ai, ne? Ai por essa pedra branca deu o nome de Pedra Branca. Antigamente eles já nasceram e diziam. A gente ouvira falar desse nome Pedra Branca e perguntava, porque Pedra Branca? Meu pai era muito curioso, ne? "porque tem uma pedra branca, bem branca, ali no riacho e ela é alta, a pedra alta, meia alta, ne?" E acho que essa pedra uma enchente levou ela, ne? Ela é grande, acho que não existe mais. Existe essa pedra? Ainda tá? - dona Cosma pergunta a Francisco Alves.

Existe - responde.

Só uma parte, ne? ´que carregou uma parte, nunca mais fui lá - continua dona Cosma.

Mas aqui o que era nessa época, era uma fazenda, o que era?

Era sim. A fazenda mesmo é Gravatã, o sítio é Pedra Branca, ne? ´que Gravatã é lá mais embaixo.

E as pessoas que ficaram morando aqui?

As pessoas que ficaram, da Pedra Branca, foram se espalhando. A gente veio morar aqui, deu o nome de Pedra Branca de novo, ne?

Ou seja que essas pessoas trabalhavam para aquela fazenda, eram trabalhadores da fazenda?

Trabalhavam para a fazenda.

E dai começou?

Trabalhavam, trabalhavam de roça, de roças. Quando era com muito tempo que as vezes faziam roças pequenas. Ali eles saiam para trabalhar fora e quando chovia voltavam de novo e trabalhavam.

Mas agora são proprietários?

Agora são proprietários, todo o mundo tem sua propriedade.

Mas já tem seus documentos que acreditam?

Tem seus documentos, todo o mundo tem.

Não tem problema de terra na atualidade?

Tem não. Cada um tem sua propriedade e não tem problema não.

 

 

2.3. Paisagem

A geografia local é dominada pela caatinga sendo que a comunidade convive com todos os problemas derivados da seca que periodicamente se apresenta:

"A paisagem das caatingas em Ouricuri exibe dois aspectos diferenciados. Durante o período chuvoso, quando os rios tomam água e os açudes se enchem, a vegetação mostra-se viçosa com nova roupagem de folhas verdes, as aves de arribação constróem seus ninhos, os animais de criação engordam e a população vive dias de relativa fartura. Durante as estiagens, os canais de drenagem 'cortam' e depois secam, os açudes se esvaziam, os animais desaparecem e as caatingas, nessa área, dão a impressão de um imenso pré-deserto, a criação emagrece e começa a morrer de fome e sede" (FIDEPE, 1982: 17)

Devido a estas características, o modo de vida dos habitantes da comunidade de Pedra Branca está relacionado com a sobrevivência em zonas áridas. A maioria dos habitantes subsiste realizando atividades agropecuárias. Nas temporadas favoráveis plantam, entre outros produtos, milho, feijão ou mandioca. Também criam caprinos o qual representa uma das principais fontes de proteína. Além dessas atividades muitas das famílias dependem também dos ingressos econômicos derivados das aposentadorias dos mais idosos.

2.4. Dados socioeconômicos

Em 1998 o NAPER realizou um estudo de campo com a finalidade de determinar o perfil socioeconômico do sítio Pedra Branca. O estudo mostrou que a população desta comunidade está constituída por pessoas de baixo poder aquisitivo dedicadas em sua grande maioria à agricultura. O rendimento médio em moeda é de aproximadamente um salário mínimo. Nessas atividades agropecuárias prevalece o plantio de feijão e milho e a criação de gado, cabritos, ovelha, porco, galinhas e jumentos (NAPER, 1998).

Os resultados do senso realizado naquela oportunidade indicaram que havia 82 pessoas maiores de 18 anos e 31 pessoas menores dando uma população total de 113 habitantes, sendo 60 homens. O estudo também mostrou que os principais problemas da comunidade são:

- falta de energia tanto para uso doméstico como produtivo,

- falta de água para uso produtivo (irrigação e criação),

- falta de água para consumo doméstico,

- péssimas condições de ensino,

- desemprego e falta de condições financeiras,

- falta de assistência à saúde,

- dificuldade de comunicação,

- falta de transporte,

- falta de trator (NAPER, 1998).

Nosso estudo de campo e as entrevistas realizadas em dezembro de 2001, confirmam a persistência de muitos desses problemas.

2.5. Usos da energia

Com relação aos usos energéticos, para a cocção dos alimentos as pessoas utilizam lenha, carvão ou gás. Para resolver o problema da iluminação nas moradias não eletrificadas, os candeeiros a gasóleo4 são os mais utilizados. Na figura 3 podemos observar alguns usos da energia de uma família não eletrificada da região, embora possuindo alguns eletrodomésticos.

 

 

3. A TECNOLOGIA FOTOVOLTAICA NA COMUNIDADE DE PEDRA BRANCA

Com relação à eletrificação utilizando sistemas fotovoltaicos, algumas das moradias das proximidades de Pedra Branca e também algumas escolas, foram contempladas em 1996 por um projeto de eletrificação da Companhia Energética de Pernambuco (CELPE). No primeiro semestre de 1998 os técnicos do NAPER realizaram uma avaliação técnica nestas instalações. Na oportunidade foram visitados 43 sistemas fotovoltaicos residenciais e 5 sistemas de eletrificação de escolas rurais da CELPE (BEZERRA et al., 1998).

Nesse mesmo ano o NAPER instalou em Pedra Branca 21 sistemas fotovoltaicos domiciliares atendendo a uma população de 113 pessoas (NAPER, 1998). A inserção desta tecnologia foi realizada através da interação entre essa instituição e a Associação dos Moradores do Sítio Pedra Branca fundada em 14/05/1995. Segundo a avaliação feita, os usuários mostraram bastante interesse no projeto. Além disso, a tecnologia fotovoltaica era uma das soluções mais viáveis para solucionar o problema da falta de energia elétrica na localidade:

"Como esses sítios são muito distantes do município torna-se inviável economicamente para a rede convencional de energia (CELPE) chegar às mesmas, pois o processo de instalação se tornaria muito dispendioso. É a partir desse momento que entra o NAPER, trazendo para essas comunidades a esperança de apagarem os candeeiros" (NAPER, 1998)

Justamente em 9 desses sistemas está sendo realizada a pesquisa de consumo energético utilizando contadores de Ah. Nas figuras 4 e 5 pode-se observar duas das moradias monitorados nesta localidade.

 

 

 

 

Na tabela III estão indicadas as características das instalações fotovoltaicas desta comunidade. Pode-se observar que todas as famílias dispõem do mesmo tipo de gerador e acumulador de energia, no entanto as cargas diferem.

Uma das novidades mais interessantes destas instalações constitui a introdução do liqüidificador (figura 6).

 

 

Nas entrevistas realizadas no mês de dezembro do ano 2001, todas as donas de casa manifestaram grande satisfação pela introdução deste equipamento. Elas afirmam que tem ajudado de maneira positiva na alimentação das pessoas. Como exemplo dessa afirmação temos o seguinte depoimento5:

E a senhora também utiliza o liqüidificador?

Liqüidificador também. A gente, qualquer coisa vai fazer uma vitamina, um suco, uma coisa. E antes a gente não comprava porque não tinha onde fazer, ne? Outra coisa muito ótima que eu achei também foi o liqüidificador.

Achou muito bom?

Bom demais, rapaz!

E utiliza todos os dias ou somente algumas vezes?

Não, não. Quando a gente traz fruta, ne? a gente faz o suco.

Com leite?

Com leite, com maracujá muito bom.

Ajudou bastante então?

É.

 

4. RESULTADOS DAS MEDIÇÕES

A partir de 1998 foram instalados diversos contadores de Ah para estudar o comportamento da demanda energética em sistemas fotovoltaicos. Na tabela IV podemos observar que no dia 12 de dezembro de 2000 foram instalados 9 desses instrumentos na comunidade de Pedra Branca. A figura 7 ilustra a montagem de um desses contadores numa das moradias da comunidade.

 

 

 

 

No histograma da figura 8 estão indicados os consumos em kWh/mês - desde o mês de janeiro de 2001 até o mês de novembro do mesmo ano - das 9 famílias estudadas. Pode-se observar que nenhuma família ultrapassou o nível de 4.50 kWh/mês e todos os consumos diferem ao longo do tempo.

A análise preliminar dos resultados mostra que o comportamento do consumo de energia não é uma constante ao longo do tempo. Este fato também foi constatado no trabalho de campo realizado nas outras comunidades. Na figura 9 pode-se observar o comportamento do consumo médio das 9 famílias estudadas na comunidade de Pedra Branca. Nota-se que de maneira crescente o consumo varia desde 1,07 até 3,80 kWh/mês.

 

 

Tomando como base de comparação às famílias que tiveram o menor e o maior consumo de energia (FAM 3 e 4 respectivamente) serão comentados a seguir alguns aspectos que podem influenciar esse comportamento. Para isso será necessário fazer uma breve descrição dessas famílias:

Família 3

Integram esta família 8 pessoas, sendo a responsável uma mulher de 63 anos. O filho mais velho mora em São Paulo e na casa ficaram um filho de 22 anos, uma nora de 24 e outros jovens de 18, 17, 15, 6 e 4 anos respectivamente. A dona de casa não sabe ler nem escrever e os outros integrantes da família no máximo concluíram o Primeiro Grau.

A casa possui cinco cômodos. As paredes são de alvenaria, a cobertura é de telhas de barro e o piso de cimento. A renda principal da família provém da aposentadoria da dona de casa e das atividades agropecuárias que realizam de acordo à temporada.

A dona de casa afirma que nunca saiu além da cidade de Ouricuri, embora um dos filhos more na cidade de São Paulo. Também alega que a eletricidade não mudou muito sua vida e que tinha medo que o sistema fotovoltaico não funciona-se, por isso utilizava somente o gravador e a iluminação de maneira limitada desde as 18 até as 21 horas. A família não possui televisão e a dona de casa afirma que não gosta deste aparelho.

Tal como mostrado na tabela III, as cargas que possui esta família estão constituídas por 4 lâmpadas fluorescentes de 20 W, um radio-gravador de 9 W e um liqüidificador de 30 W. Cabe mencionar que desde o mês de julho do ano 2001 a bateria chegou ao término de sua vida útil e não conseguiram repô-la. Um dos motivos foi a desativação da associação dos usuários que funcionava desde o inicio do projeto, ficando cada família responsável por seu sistema. Atualmente a iluminação é com um candeeiro. Adicionalmente, alegam que não compram uma nova bateria na esperança de sua moradia ser conectada à rede elétrica6.

Família 4

Esta família obteve o maior consumo médio durante a pesquisa e está constituída por um casal de 61 e 53 anos respectivamente e por 2 filhos de 25 e 18 anos. A dona de casa estudou até a quarta série do Primeiro Grau e o marido só assina o nome, já os filhos completaram o Segundo Grau e continuam estudando. A esposa, além dos ingressos econômicos provindos de uma aposentadoria, se dedica também a realizar atividades próprias da agropecuária junto com o marido.

Ela tem bastante contato com as zonas urbanas e viaja com freqüência às cidades de Petrolina e Recife. A moradia possui 5 cômodos, é de alvenaria com cobertura de telhas de barro e piso de cimento.

Quanto ao sistema fotovoltaico ela alega que a eletricidade mudou muito sua vida e deseja ampliar sua instalação para poder ligar uma geladeira e principalmente um ventilador. Com relação a este ponto, a dona de casa se encontra no dilema de deixar totalmente o sistema fotovoltaico ou fazer a conexão à rede elétrica, se por ventura ela vier.

Também indica que se fosse possível gostaria de substituir o aparelho de televisão preto e branco que possuem na atualidade por um colorido. Para adquirir estes aparelhos ela diz que pode fazê-lo a prestação e também afirma que não tem nenhum problema para comprar a bateria.

Além da televisão eles possuem um rádio-gravador, 3 lâmpadas fluorescentes de 20 W e um liqüidificador. Tanto os filhos, o marido e a dona de casa assistem televisão e ela diz que gosta das novelas. A televisão fica ligada algumas horas durante o dia e a noite até as 21 ou 22 horas. Ela diz que a iluminação também é aproveitada para ler e engomar (para isso utiliza um ferro de passar roupa a brasa), no entanto, no banheiro utiliza uma vela, porque não conseguiu ligar uma lâmpada ali. A iluminação fica ligada até as 21 horas e eles dormem no escuro, pois assim estão acostumados. Menciona também que para evitar atração de besouros não utiliza iluminação externa.

 

5. ALGUMAS OBSERVAÇÕES

Uma das primeiras constatações que se desprende da comparação destas duas famílias é que cada uma delas constitui um microcosmo e uma concepção de vida diferente. Isto não obedece a leis das ciências exatas mais sim a determinantes de caráter aleatório e estocástico. Essencialmente tudo isso contém componentes pertencentes ao âmbito socioeconômico e cultural. O comportamento da demanda energética também segue esse padrão.

Um dos aspectos a serem comentados é a influência do número de pessoas no consumo de energia. No caso, a família 3 está constituída por 8 pessoas e a outra com somente 4. De acordo a estes resultados e aos obtidos em outras comunidades, estamos em condições de afirmar que o número de pessoas não é uma determinante fundamental no consumo de energia.

Outra questão que vale a pena ser comentada é o uso da televisão. Este aparelho é um dos que fica mais tempo ligado e seu uso é tanto de dia como de noite o que influi fortemente no consumo de energia. Como exemplo disso apresenta-se o seguinte diálogo com uma das pessoas entrevistadas7:

E a televisão mais ou menos a partir de que hora ligam?

A televisão? liga umas 7 horas.

Da noite? E quem utiliza mais os adultos ou as crianças?

Quem utiliza mais é os meninos e os adultos, o pessoal que vem assistir as novelas.

Mais é novelas?

Novela, jornal. Ai os meninos vão embora quando eu chego a noite ai eles.........

E pega bem a televisão, sem problemas?

Pega bem.

As crianças, o que elas assistem?

As crianças gostam demais, se fosse possível assistiriam o dia todinho.

Gostam? mas não tira o tempo para eles estudar?

É, eles estudam pela manhã, a tarde que eles vem e assistem um pouquinho.

Com relação às questões relacionadas com os hábitos e costumes existem múltiplos exemplos. Para ilustrar este ponto, podemos mencionar o caso da necessidade de deixar ou não uma luz acessa durante a noite. Esta situação se apresenta em todas as comunidades, no entanto, a resposta difere de uma para outra. Assim, de maneira diferente às outras regiões onde a pesquisa está sendo desenvolvida, muitos dos entrevistados da comunidade de Pedra Branca alegaram que não gostam de deixar nenhuma luz acessa durante a noite por estarem acostumados a dormir no escuro ou por outras razões. Neste sentido, a dona de casa da família 4 menciona o seguinte:

Mas de noite não sentem falta de deixar uma luz pequena pelo menos?

Não, porque eu acostumei desde criança a dormir no escuro. Mas quando durmo no claro eu fico assim sem sono, é por isso que apago.

Então é melhor no escuro mesmo?

É melhor no escuro. Agora qualquer coisa eu tenho lanterna, ai eu toco ela não?

Já a dona de casa da família 3 dá outras razões para o fato de não deixar a luz acessa durante a noite:

E a partir de que hora ligavam a luz?

Mais ou menos às 7 horas.

E até que hora ia?

Ía até as 8 horas. Nove, dez, máximo dez.

Ai deitavam e não ligavam mais?

Nunca liguemos a noite toda, de jeito nenhum!

E porque não ligavam a noite toda?

Por medo de dá problema.

Ah! por medo que de problema?

Era medo de explosão, ne?

Neste ponto é interessante comentar algumas das condutas assumidas pelos usuários diante da nova tecnologia. Muitos ficam inibidos de utilizar plenamente seu sistema por medo a este falhar. Isto guarda relação com a confiança que os usuários têm do desempenho da nova tecnologia. Por sua vez isto depende da qualidade dos equipamentos além do cuidado e da manutenção dos mesmos. Um dos fatores fundamentais que determina este comportamento é a maneira como foi passada a informação relacionada com o funcionamento dos sistemas. A somatória de tudo isso ficará refletida no gasto de energia. Neste sentido, o seguinte diálogo8 é muito eloqüente:

E o primeiro dia quando o sistema começou a funcionar o que sentiram?

Ah! a gente ficou contente que era..........ficou muito bom, muito claro. Nessa época eram as 4 lâmpadas que tinha nesta casa, nos achava bom demais.

E ficaram todos alegres?

Ficaram todos alegres. Só que depois fomos obrigados a diminuir porque as lâmpadas foram queimando à toa. Ai fomos economizando mais, agora mesmo estamos só com uma, ne? mais para economizar. Mas a outra tá nova ai, mas para economizar só usa uma. Quando vamos ligar a televisão desliga a luz, fica só com vela.

Ligam a vela?

É, desliga a luz lá e fica somente com a vela para economizar a energia.

Mas de acordo aos resultados que estão tendo nessas medições dá para deixar mesmo uma luz ligada sem problemas porque o consumo não é tanto assim, dá para ligar.

É? tá levando bom, é melhor do que o candeeiro. O candeeiro é muito chato.

Mas quando começou a falhar o que sentiram?

Fico com medo de ficar no escuro, estar sem ela.

Outro ponto de interesse que determina o nível de consumo é o contato das famílias com o modo de vida urbano. No caso das famílias 3 e 4 da comunidade de Pedra Branca, uma das donas de casa viaja com freqüência às cidades de Petrolina e Recife. Esta influência se manifesta na arrumação da sua casa, em seus anseios de utilizar outros equipamentos e em alguns hábitos que acabam influenciando o consumo de energia.

Cabe também comentar que um dos principais fatores que influi na demanda energética é o nível de renda das famílias. Este fator constitui um limitador direto para a aquisição dos equipamentos de usos finais da energia. No entanto, por si só o nível de renda não determina o consumo pois somado a isso existem as outras variáveis de caráter sociocultural.

 

6. COMENTÁRIOS FINAIS

De acordo aos dados apresentados na tabela III os sistemas fotovoltaicos da comunidade de Pedra Branca estão constituídos por um gerador fotovoltaico de 50 Wp e uma bateria de 100 Ah. As medições de consumo obtidas através dos contadores de Ah acoplados a esses sistemas indicam que o consumo médio máximo alcançado não ultrapassa os 11 Ah por dia (4 kWh/mês). Inclusive muitas das famílias têm um consumo diário inferior a esse valor.

Se considerarmos uma profundidade de descarga de 20% - de acordo também aos níveis de irradiação do nordeste do Brasil - podemos afirmar que a maioria dos usuários que participaram na pesquisa está tendo um consumo inferior ao que poderiam obter de seu sistema.

Existem muitas razões que podem explicar as variações do consumo de energia de uma e outra família. Isto nos conduzirá à análise de uma série de fatores de caráter demográfico, psicológico, econômico, sociocultural, etc. Estes fatores, observados de maneira global, podem oferecer um conjunto de explicações, no entanto, é imprescindível estar em campo e em contato com os usuários já que eles são os portadores dessas respostas.

Assim, a pesquisa realizada na comunidade de Pedra Branca está oferecendo algumas dessas respostas as quais podem ajudar a esclarecer o complexo problema do comportamento da demanda energética. Muitas das constatações verificadas nessa comunidade também estão sendo observadas nas outras regiões abrangidas pela pesquisa.

Frente às observações percebe-se que a demanda energética não pode ser tratada como algo fixo e invariável, isto é, como se fosse uma constante. Partindo desta constatação, fica a tarefa de conciliar um problema de caráter aleatório e sociocultural com os métodos da engenharia, os quais seguem os padrões das ciências exatas.

 

AGRADECIMENTOS

Este trabalho foi possível graças ao apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP. O agradecimento também é extensivo a todas as pessoas da comunidade de Pedra Branca que amavelmente colaboraram nesta pesquisa e a ONG Caatinga.

 

REFERÊNCIAS

AQUINO, Raul (1982). Ouricuri: História e Genealogia. Recife: Centro de Estudos de História Municipal, Coleção biblioteca pernambucana de história municipal Vol. Nº 14

BEZERRA PIMENTEL, Ricardo; SCALAMBRINI COSTA, Heitor; RODRIGUES FERREIRA, Marcelo e DE MOTTA BRAGA, Maurício (1998). Diagnóstico de Sistemas Fotovoltaicos Instalados na Zona Rural do Estado de Pernambuco. Anais do IV Encontro do Fórum Permanente de Energias Renováveis, Recife 6 a 9 de outubro de 1998.

FIDEPE (1982). Ouricuri. Governo de Pernambuco, Secretaria de Planejamento. Recife: Fundação de Informações Para o Desenvolvimento de Pernambuco-FIDEPE, Série Monografias Municipais.

MORANTE, Federico (2000). Demanda Energética Em Solar Home Systems. Dissertação de Mestrado. Programa Interunidades de Pós-Graduação em Energia da Universidade de São Paulo. http://www.iee.usp/biblioteca/produção/2000/teses/2000.htm

MORANTE, Federico e ZILLES, Roberto (2000). Medidas de Consumo em Sistemas Fotovoltaicos Domiciliares. Anais do 3º Encontro de Energia no Meio Rural, AGREENER 2000, Campinas 12 a 15 de setembro de 2000.

MORANTE, Federico e ZILLES, Roberto (2001). Energy Demand in Solar Home Systems: The Case of the Communities in Ribeira Valley in the State of São Paulo, Brazil. Progress in Photovoltaics Res. Appl. 2001; 9: 379-388

NAPER (1998). Perfil Socioeconómico do Sítio Pedra Branca. Documento interno (Mimeo.) do Núcleo de Apoio a Projetos de Energias Renováveis, NAPER, da Universidade Federal de Pernambuco.

NARVARTE FERNÁNDEZ, Luis (2001). Hacia un Paradigma de Electrificación Rural Descentralizada con Sistemas Fotovoltaicos. Tesis doctoral, Escuela Técnica Superior de Ingenieros de Telecomunicaciones, Universidad Politécnica de Madrid.

SEBRAE (1998). Diagnóstico Socioeconómico do Município de Ouricuri - PE. Recife: programa de Emprego e Renda de Ouricuri - PE, Série PRODER.

 

 

1 A Casa da Torre de Garcia D'Ávila é uma construção portuguesa do século XVI que foi sede da maior sesmaria das Américas por um período de 300 anos. Suas terras se estendiam até o atual Estado do Maranhão. O Castelo está situado no topo da colina de Tatuapara de onde é possível ter uma visão privilegiada da Praia do Forte. Sua edificação teve início em 1551, após a chegada do Governador Geral Tomé de Souza na Bahia em 1549, acompanhado de Garcia D'Ávila, com o título de Almoxarife Real de Dom João III.
2 "Do couro era feito o calçado, gibão, a sela e outros arreios, a corda para amarrar o boi e armar rede, fazer cama, mala, cadeira, porta. De couro se fazia borracha para conduzir água, alforje e surrão para alimentos. Chapéu, cinto e outras utilidades" (AQUINO, 1982:12)
3 ENTREVISTADA: Sra. Cosma Maria Mattos
LOCALIDADE : Pedra Branca, PE
Fita 6 - Lado A+B DATA: 11/12/01
INICIO: 17:00 FINAL: 17:50
4 O gasóleo é uma mistura de gasolina com óleo Diesel. Uma das finalidades desta mistura é a diminuição dos custos do combustível para a iluminação.
5 ENTREVISTADA: Sra. Maria Julia Mattos Silva
LOCALIDADE : Pedra Branca, PE
Fita 5 - Lado A DATA: 11/12/01
INICIO: 13:22 FINAL: 13:50
6 Na data da entrevista (11/12/2001) a empresa concessionária de eletricidade, CELPE-IBERDROLA, se encontrava cavando buracos para colocar os postes de uma futura rede elétrica que atenderia a região onde se encontra localizada a comunidade.
7 ENTREVISTADO: Sra. Cleonilde Maria de Jesus
LOCALIDADE : Cacimbinha, Pedra Branca, PE
Fita 7 - Lado A DATA: 12/12/01
INICIO: 9:11 FINAL: 9:41
8 ENTREVISTADO: Sra. Terezina de Jesús Silva
LOCALIDADE : Pedra Branca, PE
Fita 5 - Lado B DATA: 11/12/01
INICIO: 14:40 FINAL: 15:00