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An. 4. Enc. Energ. Meio Rural 2002

 

Metodologia para integrar a geração e avaliação de tecnologia nas áreas rurais sob o ponto de vista energético

 

 

Rodolfo Dourado Maia GomesI; André Tosi FurtadoII

IUniversidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Departamento de Energia (DE) da Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM), C.P.: 6122. Campinas, SP, Brasil. CEP: 13083-970. E-mail: dourado@fem.unicamp.br
IIUniversidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do Instituto de Geociências (IG), C.P.: 6152. Campinas, SP, Brasil. CEP: 13083-970. E-mail: furtado@ige.unicamp.br

 

 


RESUMO

Os países desenvolvidos são responsáveis por grande parte da capacidade de P&D mundial e, dessa forma, as novas tecnologias e os novos métodos produtivos são introduzidos por esses países, respondendo às necessidades dessas sociedades. Por outro lado, os sistemas de C&T dos países em desenvolvimento não refletem de maneira satisfatória as necessidades do setor tradicional e rural, onde se concentra parcela importante da população rural e pobre desses países, especialmente no que concerne às suas necessidades energéticas. Em vista disto, o objetivo deste trabalho é integrar duas metodologias distintas para a geração e avaliação de tecnologia energética 'apropriada' para o meio rural.

Palavras chaves: Tecnologias apropriadas; energia no meio rural; desenvolvimento rural


ABSTRACT

The developed countries are responsible for the majority of the global R&D capacity. Therefore, the new technologies and processes are introduced by them in order to fulfill their societal needs. On the other hand, the developing countries' S&T systems do not satisfactorily reflect the needs, especially the energy needs, of their traditional and rural sector, in which a large number of their poor population are concentrated. For those reasons, the aim of this paper is to integrate two distinct methodologies for the generation and evaluation of appropriate energy technologies in rural areas.


 

 

1. INTRODUÇÃO

Grande parte da capacidade de P&D mundial concentra-se nos países desenvolvidos. As novas tecnologias e novos métodos produtivos são introduzidos por esses países e respondem às necessidades dessas sociedades. Os países em desenvolvimento precisam adaptar as novas tecnologias às necessidades e às condições de produção específicas a eles, entretanto, muitas soluções técnicas exploradas não sofrem esse processo de adaptação, causando uma série de desdobramentos desfavoráveis como desemprego, excesso de sofisticação da demanda, etc.

Os sistemas de C&T dos países em desenvolvimento estão deslocados das necessidades do setor tradicional desses países, onde permanece parcela importante da população rural e pobre. As formas como esses sistemas de C&T abordam os problemas científicos e tecnológicos não conseguem ser aplicadas para a solução das necessidades do setor tradicional e rural. É preciso realizar um esforço para adequar a forma de atuação desses sistemas ao contexto socioeconômico dos países em desenvolvimento.

Fica claro, então, que o problema principal do sistema nacional de C&T dos países em desenvolvimento é a falta de um número de abordagens ou paradigmas gerados de forma endógena os quais podem servir como ponto de referência para desenvolver ou avaliar tecnologias apropriadas às próprias necessidades e aspirações da maioria da sua população. Baseado nisto e na necessidade destes países repensarem seus estilos de desenvolvimento que Herrera (1981) cria o conceito de espaço tecnológico e elabora uma metodologia geral para a geração de tecnologias apropriadas para as áreas rurais.

O objetivo do trabalho é integrar duas metodologias distintas para o processo de geração e avaliação de tecnologia energética 'apropriada' para o meio rural. As duas metodologias advêm, respectivamente, de Herrera (1981) e Ramanathan (1994).

A abordagem deste trabalho dá-se quando o problema energético da localidade rural é tecnológico, devendo-se ter em mente que muitas vezes a problemática é uma questão antes de tudo socioeconômica e/ou política do que tecnológica.

Os programas relacionados com a solução da questão energética são somente um aspecto do desenvolvimento rural e devem existir juntamente com programas que garantam o acesso a outros serviços essenciais. Estes programas somente atingirão a população rural pobre quando se dirigirem especificamente para ela.

O trabalho estrutura-se da seguinte forma: primeiro, aborda-se o conceito de espaço tecnológico, fundamental para a geração endógena de tecnologia e avaliação tecnológica. Os itens seguintes ilustram a metodologia a que se propõe o presente trabalho (Figura 1). O item 3 fundamenta-se em Herrera (1981) para a definição do espaço tecnológico destinado à geração de tecnologias nas áreas rurais, inserindo-se neste processo a proposta da AIE/COPPE et al. (1986) para o diagnóstico energético da localidade. No item 4, quando está definido o espaço tecnológico, onde podem coexistir tecnologias disponíveis, novas ou uma combinação delas, acrescenta-se a metodologia proposta por Ramanathan (1994) de avaliação tecnológica para aquelas já disponíveis.

 

 

2. O CONCEITO DE ESPAÇO TECNOLÓGICO COMO INSTRUMENTO DE PLANEJAMENTO

Um dos elementos centrais do que se chama de capacidade de inovação1 de uma sociedade é a capacidade de definir com precisão (a partir da determinação da demanda científica e tecnológica da estratégia socioeconômica) as características básicas que deve ter em cada caso a solução tecnológica aplicada (HERRERA et al., 1994). O conceito de espaço tecnológico dá as linhas gerais de uma metodologia para se atingir esse objetivo e evitar erros de planejamento ainda existentes.

A maioria dos fracassos de planejamento deve-se a erros ou omissões na identificação dos elementos que constituem uma área-problema2, como pode se ver ao considerar o caso dos problemas tecnológicos.

Um problema tecnológico está sempre imerso em um contexto socioeconômico específico e, como é bem sabido, em muitos casos sua solução depende mais das condições sociais, econômicas ou políticas do que da pesquisa científica e da tecnologia. Não reconhecer claramente isto leva, muitas vezes, instituições científicas competentes a proporem soluções tecnológicas que resultam no final irrelevantes, porque não são adequadas às condições reais da área-problema. Na maior parte das vezes, a causa destes fracassos é que o problema tecnológico foi apresentado à organização científica sem especificar bem as condições de contorno.

Por outro lado, a importância e o significado do componente tecnológico variam de acordo com a situação hierárquica da área-problema. Apresenta-se, a seguir, um esquema muito simples para orientar, numa primeira aproximação, o tratamento dos problemas tecnológicos que levarão à definição do espaço tecnológico.

No nível mais alto da hierarquia de áreas de problema aparecem aqueles que resultam do tipo de inserção do setor, ou da comunidade afetada, no sistema socioeconômico de alcance nacional, ou do país na estrutura de poder mundial. Na maioria dos casos, para os tipos de problemas que se apresentam neste nível, o componente tecnológico é somente subsidiário. Exemplos desta categoria são os problemas relacionados com a estrutura de propriedade da terra, que somente podem ser solucionados pela reforma agrária, e a fixação de preços dos produtos exportáveis, determinada pela estrutura de poder econômico no mundo.

Nos níveis mais baixos da hierarquia, surgem problemas que, mesmo relacionados com os anteriores, apresentam uma variação muito mais ampla quanto a seu grau de controle pelo contexto socioeconômico e político. Estes problemas dividem-se naqueles que não têm um componente tecnológico e aqueles que o têm.

Os problemas que não têm um componente tecnológico estão fora da área de interesse do sistema nacional de C&T3. Exemplos dessa classe de problemas são aqueles derivados da desigualdade na distribuição de renda, como a dificuldade de acesso da população aos serviços essenciais, tais como saúde, educação e energia.

Os problemas com componente tecnológico podem ser divididos em duas categorias: aqueles para os quais, no momento, a solução tecnológica não é viável devido a restrições socioeconômicas ou políticas e aqueles cuja solução tecnológica é viável nas condições atuais. Na primeira categoria, três alternativas são possíveis (figura 1): (a) deixar o problema de lado até que uma mudança nas condições socioeconômicas possibilite que o problema seja resolvido com a solução tecnológica, (b) procurar uma alternativa tecnológica que 'drible' as restrições socioeconômicas e (c) utilizar a solução do problema tecnológico presumindo que a existência de uma solução para o componente tecnológico possa ajudar na eliminação das restrições socioeconômicas. Estas três alternativas são exemplificadas em Herrera (1981). A decisão entre estas três opções requer não somente um conhecimento adequado do campo tecnológico, mas também, sobretudo, de um conhecimento profundo da verdadeira natureza dos obstáculos socioeconômicos, políticos, culturais e ambientais.

Mediante o processo de análise acima, é definido um conjunto de condições que serão o marco de referência para o desenvolvimento da solução tecnológica requerida. Este conjunto de condições - que inclui informação social, econômica, ambiental, etc. - definirá o que Herrera (1981) chamou de um espaço tecnológico, que constitui o conjunto de restrições e requerimentos que a tecnologia deve satisfazer. Portanto, note que o espaço tecnológico é aquele espaço de soluções onde a tecnologia passa a ser importante para se atingir determinadas metas e objetivos.

Para finalizar construindo a tecnologia, é preciso considerar todas as soluções possíveis que se encaixam nesse espaço. Como é bem sabido, a partir de um determinado corpo de conhecimento científico pode-se conceber muitas soluções tecnológicas para um determinado problema. Um ponto de referência adequado permite a exploração de múltiplos caminhos possíveis e a escolha daquele que seja mais adequado a uma situação particular. Outro resultado deste procedimento é o de dar coerência a tecnologias pertencentes a distintos campos de atividade.

É óbvio que, uma vez construído o espaço tecnológico, já existirá, em alguns casos, a tecnologia requerida e, dessa forma, pode ser um problema de adaptá-la e introduzi-la na área. Em outros casos, pode ser um problema de combinar de maneira diferente elementos tecnológicos já existentes. Para outros mais, será necessário conceber uma tecnologia nova. Sem embargo, quase sempre, tratar-se-á de um problema de combinar algumas destas opções.

Por fim, ressalta-se que, nesta metodologia, a geração endógena de tecnologia refere-se ao processo mediante o qual se determinam as características que ela deve ter. O endógeno é o processo de definição e não necessariamente a tecnologia em si, que pode ser importada, desde que apropriada. Desta maneira, a transferência de tecnologia torna-se uma parte integral do processo de geração de tecnologia.

 

3. DEFINIÇÃO DO ESPAÇO TECNOLÓGICO PARA GERAÇÃO E AVALIAÇÃO DE TECNOLOGIAS ENERGÉTICAS NA ÁREA RURAL

Dois pontos bastante enfatizados por Herrera (1981) são essenciais para a definição do espaço tecnológico no que concerne a geração de tecnologias nas áreas rurais: utilização do conhecimento local e a participação da população local em todo o processo. Estes dois pontos foram bem abordados por Herrera (1981) e não serão detalhados no presente trabalho, mas deve-se mantê-los sempre em mente.

A metodologia proposta por Herrera (1981) é dividida em cinco estágios, os quais serão brevemente descritos a seguir.

O primeiro estágio é considerado o mais importante da metodologia, pois é onde são levantadas as características socioeconômicas da região selecionada, no qual acrescentamos a proposta de diagnóstico energético da AIE/COPPE et al. (1986).

As características socioeconômicas da região selecionada devem ser avaliadas a fim de entender-se os elementos da dinâmica social na qual um problema tecnológico encontra-se sempre inserido (HERRERA, 1981). Como é bem conhecido, em muitos casos, a solução de um problema tecnológico depende mais de fatores de força política, social e econômica do que da pesquisa científica e da tecnologia.

O primeiro passo do processo é identificar o setor de atuação. Como estamos preocupados com o subdesenvolvimento das áreas rurais, onde um dos desdobramentos reflete na questão energética, este primeiro passo refere-se à identificação da parcela pobre da população. Através da interação com esta população, os problemas da comunidade serão identificados através da hierarquização das áreas de problema, conforme o processo mencionado anteriormente, a fim de identificar e agrupar em categorias distintas os problemas cuja tecnologia passa a ser importante e aqueles que não podem ser solucionados pelos meios tecnológicos.

Juntamente com o diagnóstico socioeconômico, deve ser realizado o diagnóstico energético, correlacionando sempre que possível estes dois estudos com o objetivo de identificar claramente o que são causas e efeitos. Como se está abordando a questão energética no meio rural, necessita-se de uma melhor análise do diagnóstico energético, que é incorporado no primeiro estágio da metodologia proposta por Herrera (1981) e é feita no item seguinte.

3.1 DIAGNÓSTICO ENERGÉTICO

O estudo da AIE/COPPE et al. (1986) propõe elaborar métodos e instrumentos voltados aos países em desenvolvimento em contraposição aos instrumentos tradicionais de análise e de ação que não levam em conta suas especificidades e a multiplicidade de objetivos que estes precisam atingir para sair do subdesenvolvimento. Dessa forma, apresenta-se a metodologia proposta de forma simplificada, pois não é o objetivo do presente trabalho substituir a utilização do estudo analisado.

A definição e escolha dos dados são de crucial importância para qualquer tipo de planejamento ou diagnóstico que se deseja realizar, porém não são tarefas simples, não devendo esta etapa, por conta disto, ser subestimada.

Os passos para a caracterização do sistema energético, seja ele local ou nacional, utilizados pelo estudo iniciam-se com o instrumento clássico do balanço energético com a necessidade de utilizar instrumentos e métodos mais apropriados, como o balanço energético integrado e o diagnóstico energético. Entretanto, muitos fenômenos quantitativos e qualitativos somente podem ser apreendidos numa escala diferente, justificando a execução de estudos de caso específicos. A identificação dos elementos que constituem o sistema energético é o preâmbulo natural para a etapa seguinte, a da análise e da previsão. Esta é decomposta em análise e previsão dos usos de energia, análise e previsão dos abastecimentos em energia e adequação dos abastecimentos aos usos, mas mostra-se claramente que elas são três partes estreitamente ligadas.

Dessa forma, com posse das informações da caracterização socioeconômica e energética, pode-se agrupar a população rural alvo em conjuntos homogêneos caracterizados por um consumo específico de energia útil, uma estrutura por usos deste consumo, uma estrutura por fontes para cada uso e por rendimentos de utilização de cada fonte de energia em cada uso, sem esquecer as especificidades socioeconômicas e culturais da população em estudo.

Por exemplo, o setor rural produtivo agrupa os requerimentos em energia ligados às atividades da agricultura, da criação de animais, da silvicultura e da pesca. Os módulos energéticos homogêneos são definidos em função dos seguintes elementos: características naturais das diferentes zonas de produção (clima, solo, acidentes orográficos, predominância de ventos, regime e nível de precipitação e fatores climáticos extremos), principais tipos de produtos agrícolas em cada zona considerada, sistema de produção (produção comercializada ou destinada ao consumo próprio), tecnologia utilizada e outros. A utilização da energia útil depende das opções técnicas que concernem à irrigação, à mecanização, ao uso mais ou menos intensivo dos adubos. Ela é feita levando em conta diversos equipamentos empregados (móveis e fixos) e diferentes operações: produção, transporte, refrigeração, aquecimento, repuxo de água e outros. A passagem à energia final leva em consideração as mudanças possíveis na política de desenvolvimento rural. A decomposição por fonte integra as mudanças possíveis ou desejadas na proporção entre energias tradicionais, convencionais e novas. Um elemento importante das possíveis opções é a utilização energética dos resíduos vegetais e animais ligados às diversas produções, bem como a eventual introdução de culturas energéticas.

Portanto, como observado no estudo da AIE/COPPE et al. (1986), os métodos e instrumentos para a caracterização do sistema energético consideram tanto as suas articulações internas, como a abordagem física da tecnologia em si e da cadeia energética energia primária - energia final - energia útil, como também as diversas relações socioeconômicas envolvendo a energia. Em outras palavras, vislumbra-se os aspectos micro e macro da energia na sociedade, fornecendo, desta forma, a visão necessária para o processo de avaliação tecnológica e geração de tecnologia para o meio rural, especificamente, e para os diversos setores da sociedade, de forma geral.

De posse do diagnóstico socioeconômico e energético, dentre os problemas cuja tecnologia passa a ser importante e que apresentam uma solução tecnológica viável, alguns ou todos eles serão selecionados pela população alvo e pesquisadores para ação imediata. A seleção basear-se-á de acordo com as prioridades da população alvo e nas possibilidades do sistema nacional de C&T. O estágio seguinte será a pesquisa e implementação das soluções.

O segundo estágio da metodologia elaborada por Herrera (1981) consiste na determinação das funções que a tecnologia requerida deverá satisfazer. Enfatiza-se a necessidade inicial de rejeitar, o máximo possível, qualquer idéia preconcebida ou preconceito sobre a natureza das múltiplas necessidades (social, econômica, psicossocial) que deverão ser satisfeitas.

O terceiro estágio consiste na análise das soluções que a comunidade local tradicionalmente tem utilizado. É importante ter em mente que esta análise não implica que as tecnologias ou idéias locais têm de, necessariamente, serem incorporadas naquelas que estão sendo desenvolvidas. Sua importância pode ser exemplificada pelo trabalho realizado por Souza et al. (2000), que, ao analisarem as estruturas dos fogões a lenha de localidade situada no Amazonas, puderam melhorá-las e aumentar o rendimento energético, reduzindo o consumo de lenha em 70% e os impactos na saúde dos residentes com a expressiva redução na emissão de fumaça. Desta forma, não foi preciso utilizar novas tecnologias, apenas buscou-se melhorar, através do conhecimento científico, aquela já existente e tradicionalmente incorporada na comunidade local.

O quarto estágio consiste em uma pesquisa geral com o intuito de realizar levantamento dos recursos naturais da região. Desta forma, a pesquisa deve levar em consideração tanto os produtos da natureza que têm sido usados como recursos como, também, aqueles com potencial aplicação para o problema da área sendo estudada.

Por fim, o quinto estágio representa a definição do espaço tecnológico. Com base nas informações coletadas nos estágios anteriores, um conjunto de considerações ou paradigmas - contendo informações científicas, tecnológicas, ambientais, econômicas, sociais, psicossociais e antropológicas - será gerado, tornando-se o plano de referência do estágio final para o desenvolvimento da tecnologia requerida. Dessa forma, o espaço tecnológico é, basicamente, o conjunto de requerimentos e restrições que a tecnologia precisa satisfazer. A área pontilhada da figura 1 representa os passos necessários para a criação do "espaço tecnológico" no que concerne à questão energética no meio rural.

Tanto para as tecnologias disponíveis como para as que precisam ser geradas e que se encaixam dentro do espaço tecnológico definido, é preciso, como já mencionado, que se leve em consideração o conhecimento local e a participação da população rural, dado que as tecnologias precisam ser incorporadas pelos usuários, no sentido dos beneficiários adotarem-nas de maneira útil, e não como uma adoção "simbólica"4 (ROURA et al., 1999), o que resultaria em fracasso. Esta assertiva está diretamente relacionada com a capacitação da população local, ou seja, com a sua capacidade de incorporar a tecnologia oferecida pelo projeto de desenvolvimento energético, especificamente, e rural, de forma geral.

Como exemplo prático para o caso brasileiro, muitos sistemas fotovoltaicos instalados dentro de programas de eletrificação rural encontram-se atualmente inoperantes porque, dentre outros motivos, não houve a capacitação dos usuários no manejo e manutenção destes equipamentos (COSTA et al., 2000). Em termos práticos, isto pontualmente comprova e significa que, quando tecnologias modernas são inseridas nas comunidades sem sua prévia capacitação, elas são insatisfatoriamente incorporadas e, conseqüentemente, o projeto fracassa ao não prover os serviços esperados.

Definido o espaço tecnológico, as soluções tecnológicas que se encaixem nele podem estar já disponíveis ou possuírem um componente de P&D (para os dois casos podendo ser tecnologias tradicionais, modernas ou um "blending". É para a avaliação das tecnologias disponíveis que se incorpora metodologia proposta por Ramanathan (1994).

 

4. METODOLOGIA PARA AVALIAÇÃO TECNOLÓGICA

Ramanathan (1994) propõe uma metodologia de avaliação tecnológica ao identificar a utilidade de incorporar os critérios sugeridos pela literatura de tecnologia apropriada e de difusão da inovação de uma maneira integrada. Portanto, esta metodologia possui a virtude de segmentar os critérios de avaliação de determinada tecnologia ou inovação5 em três categorias justapostas: (1) quando a tecnologia atende às especificações técnico-econômicas, (2) quando é compatível com a capacidade econômica e tecnológica da organização e (3) quando é compatível com as expectativas do domínio operacional (ambiente sociopolítico nacional). Estas três categorias de critérios foram chamadas por Ramanathan (1994) como, respectivamente: critério de compatibilidade técnico-econômica (TECC), critério de compatibilidade da capacidade organizacional (OCCC) e critério de compatibilidade do domínio operacional (ODCC). Estas categorias e respectivas propostas de critérios encontram-se na Tabela 1.

As três categorias de critérios podem ser aplicadas para o problema de avaliação tecnológica de duas maneiras: quando a seleção ocorre entre uma gama de tecnologias e quando se tem somente uma tecnologia e deseja-se conhecer seus pontos fortes e fracos.

Para a avaliação e decisão da tecnologia a ser selecionada, pode-se utilizar métodos multicritério como os desenvolvidos por Saaty6 e Souder7 (RAMANATHAN, 1994).

A Tabela 1 contém exemplos de alguns critérios para a avaliação tecnológica. No entanto, como são critérios de exemplificação da abordagem integrada proposta por Ramanathan (1994), podem-se inserir e/ou retirar critérios pertinentes para cada caso específico em estudo. No nosso caso, muitos dos critérios acima podem ser utilizados na avaliação de tecnologias para geração e uso final de energia no meio rural, como também podem ser inseridos e/ou retirados outros.

A título de exemplo, duas são as questões que devem fazer parte dos critérios. Uma delas é a questão da dicotomia alimento/energia, ou seja, a pertinência entre a produção de alimentos e energia, podendo ser considerada na categoria ODCC para a sociedade em geral e na categoria TECC ao procurar abordar a eficiência econômica em se produzir alimentos ou energia. A outra questão é a relação entre produtividade e eficiência energética, pois aumentar a eficiência energética da agricultura, por exemplo, nem sempre é desejável do ponto de vista produtivo, uma vez que pode influenciar, negativamente, a produtividade agrícola.

No entanto, a avaliação das tecnologias candidatas depende de critérios predeterminados pelas micro-unidades, os quais muitas vezes são subjetivos, não contemplam toda a gama de tecnologias existentes (STEWART, 1978) e as tecnologias modernas são sobreestimadas (ROURA et al., 1999: cap. 4). Daí a importância, como foi chamada a atenção por Herrera (1981), da participação efetiva da população alvo em todo o processo e a utilização do conhecimento local.

Portanto, um dos desafios para a avaliação tecnológica é estabelecer um conjunto de critérios predefinidos aceitável e que possa ser utilizado para avaliar as tecnologias candidatas.

 

5. CONCLUSÕES

O objetivo fundamental da metodologia proposta neste trabalho é a utilização do conceito de espaço tecnológico para definir o conjunto de requerimentos e restrições onde as tecnologias passam a ser importantes na solução dos problemas energéticos das áreas rurais. Desta forma, o espaço tecnológico é definido através de um processo endógeno necessário para refletir as realidades locais.

No entanto, o sucesso desse processo está diretamente associado com a capacidade dos responsáveis pelo projeto em conseguir aderir às realidades locais (tecnológica, ambiental, econômica, social, psicossocial e antropológica) da comunidade, suas necessidades e aspirações. Para tal, é necessária a participação efetiva da população rural em todo o processo de geração e uso do conhecimento.

Espera-se, portanto, que o presente trabalho possa contribuir para a discussão em torno da geração e avaliação de tecnologias nas áreas rurais a fim de suprir apropriadamente as suas necessidades energéticas, lembrando-se que a questão da energia no meio rural é apenas um recurso necessário, mas não suficiente, para o desenvolvimento, devendo-se fazer parte de um pacote de desenvolvimento rural mais amplo, ao prover outros serviços essenciais, cujos objetivos e a quem ele é dirigido devem ser bem definidos.

 

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao prof. André pela inestimável e perene colaboração para minha formação científica e crítica e por ter-me "apresentado" ao grande mundo que é o Amílcar Herrera e seu trabalho. Obrigado, André!

 

REFERÊNCIAS

AIE/COPPE et al.. Energia e Desenvolvimento: quais desafios? Quais métodos? Sínteses e Conclusões. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero, 1986.

COSTA, H.S, PIMENTEL, R.B. Diagnóstico físico e operativo de sistemas fotovoltaicos de uso doméstico instalados em Pernambuco, após 5 anos de funcionamento. In: Seminário Internacional NUTAU'2000. São Paulo: USP, agosto, 2000.

HERRERA, A.O. The generation of technologies in rural areas. World Development, v.9, pp.21-35, 1981.

HERRERA, A.O., CORONA, L., DAGNINO, R., FURTADO, A.T., GALLOPÍN, G., GUTMAN, P., VESSURI, H. Las nuevas tecnologías y el futuro de América Latina: riesgo y oportunidad. México: Siglo XXI editores, 1994.

RAMANATHAN, K. An integrated approach for the choice of appropriate technology. Science and Public Policy, v.21, (4), pp.221-232, 1994.

ROURA, H., CEPEDA, H. Manual de identificación, formulación y evaluación de proyectos de desarrollo rural. Santiago de Chile: CEPAL, Diciembre, 1999.

SOUZA, R.C.R., PEREIRA, G.A., FRANÇA, B.S., MARTINS, G. Aperfeiçoamento e difusão de fogão a lenha de queima limpa no estado do Amazonas. In: III Encontro de Energia no Meio Rural. Campinas: UNICAMP, setembro, 2000.

 

 

Este trabalho foi apresentado no IX Congresso Brasileiro de Energia. Rio de Janeiro, maio de 2002.
1 A capacidade de inovação se refere à capacidade global de uma sociedade para incorporar o progresso tecnológico em função de sua própria concepção de desenvolvimento (HERRERA et al., 1994).
2 A definição de área-problema é dada por Herrera et al. (1994) e consiste na articulação de obstáculos de natureza econômica, social, ambiental, incluindo recursos naturais, culturais, tecnológicos, etc., que precisam ser eliminados para que se alcance as metas propostas pelo planejamento socioeconômico.
3 Note que se está referindo às tecnologias físicas. É evidente que esses problemas pertencem à área de interesse das ciências sociais.
4 Entende-se aqui como adoção "simbólica" a aceitação dos objetos que fazem a tecnologia, mas sem utiliza-los ou dando-lhes um uso diferente (ROURA et al., 1999).
5 O sentido para inovação empregado por Ramanathan (1994) refere-se a toda idéia, prática ou artefato material percebido como sendo novo pela unidade que o adota.
6 SAATY, T.L. The Analytical Hierarchy Process. McGraw-Hill, New York, 1980.
7 SOUDER, W.E. "Project screening, evaluation and selection". In: Management Decision Methods (Van Nostrand Reinhold Co, New York, 1980), Chapter 9.