An. 5. Enc. Energ. Meio Rural 2004
Adicionalidade em projetos de MDL e a cogeração no setor sucroalcooleiro brasileiro
Rodrigo Marcelo LemeI; Kamyla Borges da CunhaI; Arnaldo WalterII
IMestrando do Programa de Pós-graduação em Planejamento de Sistemas Energéticos da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp
IIProfessor Doutor do Programa de Pós-graduação em Planejamento de Sistemas Energéticos da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp
RESUMO
As emissões de gases precursores do efeito estufa (GEE), a conseqüente intensificação do efeito estufa e suas relação com as mudanças climáticas, têm sido apontados como sério problema global. Por essa razão, firmou-se o Protocolo de Quioto, no âmbito da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (CQNUMC), com o objetivo de estabelecer diretrizes e metas para a estabilização e redução das emissões de GEE. Em seu Artigo 12, o Protocolo de Quioto institui o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), um importante instrumento de flexibilização para os países do Anexo 1 atingirem suas metas de redução de emissões através de projetos nos países não-Anexo 1, promovendo o Desenvolvimento Sustentável e incorrendo em menores custos de redução de emissões. Qualquer projeto, para ser qualificado pelo MDL, deve satisfazer os critérios de elegibilidade estabelecidos pelo Protocolo de Quioto. São eles: promoção do Desenvolvimento Sustentável e comprovação da adicionalidade do projeto. No Brasil, o setor sucroalcooleiro é bastante promissor para o desenvolvimento de tais projetos, através da cogeração com biomassa residual de cana-de-açúcar. Este artigo analisa a adicionalidade dessa classe de projetos, à luz dos critérios definidos pela CQNUMC, com especial atenção aos dois casos brasileiros constantes em seu quadro de análise.
ABSTRACT
The emissions of Greenhouse Gases (GHG), the resulting intensification of the greenhouse effect and its relation with climate change, have been pointed out as serious global problem. For this reason, the Kyoto Protocol was established, within the United Nations Framework Convention on Climate Change (UNFCCC), with the objective of setting up directives and goals to the stabilization and reduction of GHG emissions. In its Article 12, the Kyoto Protocol institutes the Clean Development Mechanism, an important flexibility instrument to Annex 1 Parties in achieving their emission reduction targets through project implementation in developing countries (non-Annex 1 Parties), promoting Sustainable Development and incurring and lesser costs of emission reductions. Any project, to be qualified within the Clean Development Mechanism, must fulfill the eligibility criterions fixed by the Kyoto Protocol, which are: promotion of Sustainable Development and assurance of the project additionality. In Brazil, the sugarcane industry is a promising opportunity of developing these kind of projects, specially by means of the cogeneration from sugarcane residues. This paper analyses the additionality of this sort of projects, in the light of the criterions defined by the UNFCCC, with special attention to the two Brazilian cases registered in the CDM Methodologies Panel.
1 - Introdução
Previsto no artigo 12 do Protocolo de Quioto, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo constitui um instrumento de flexibilização destinado aos países desenvolvidos (Anexo 1) no intuito de ajudá-los na consecução de seus compromissos de redução de emissões de gases precursores do efeito estufa. Sua importância reside no fato de que, diferentemente dos outros mecanismos previstos no Protocolo, o MDL pressupõe a participação dos países em desenvolvimento.
O objetivo do MDL é prestar assistência financeira às Partes não-Anexo 1 da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas para que viabilizem seu Desenvolvimento Sustentável através da implementação de projetos qualificados, ao mesmo tempo que presta assistência às Partes Anexo 1 (ou Anexo B) do Protocolo, para que cumpram seus compromissos quantificados de limitação e redução de emissões de gases precursores do efeito estufa. Dessa forma, um país desenvolvido, pretendendo complementar suas metas de redução, poderá financiar um projeto que reduza emissões de gases precursores do efeito estufa num país em desenvolvimento, obtendo, com isso, Reduções Certificadas de Emissões (RCE).
A priori, qualquer atividade que comprove redução de emissões de gases precursores do efeito estufa pode ser eleita como projeto de MDL, destacando-se aquelas atividades relacionadas a fontes renováveis de energia, captura e recuperação de metano, eficiência energética, reflorestamento e florestamento, substituição de combustíveis e gerenciamento nos setores de transporte e industrial.
País de dimensões continentais e diversificadas condições sociais, econômicas e ambientais, o Brasil desponta no cenário internacional como um dos maiores potenciais provedores de variados tipos de projetos de MDL. Com efeito, ao total, até o final do mês de abril de 2004, mais de 11 propostas brasileiras de projetos de MDL haviam sido submetidas ao Conselho Executivo, órgão criado no âmbito da CQNUMC para coordenar as ações relacionadas ao Mecanismo. Dentre tais propostas, duas referem-se a atividades de cogeração de eletricidade a partir do bagaço da cana-de-açúcar.
2 - Cogeração no setor sucroalcooleiro
A setor sucroalcooleiro é dos mais importantes na economia brasileira. Há, atualmente, cerca de 300 usinas e destilarias operando ao redor do país, principalmente nas Regiões Sudeste e Nordeste. O Estado de São Paulo destaca-se no número de usinas e destilarias, produção de açúcar e álcool, e na cogeração de eletricidade. Cerca de metade das usinas e destilarias do país localizam-se nesse Estado, que produziu na safra 2003-2004, segundo dados da ÚNICA (União da Agroindústria Canavieira de São Paulo) mais de 207 milhões de toneladas de cana-de-açúcar, o que representou cerca de 61% da produção nacional. Outros importantes produtores nacionais são os Estados do Paraná e de Minas Gerais.
No Brasil, praticamente todas as usinas e destilarias realizam cogeração de energia a partir do bagaço de cana-de-açúcar em suas instalações durante o período da safra, sendo auto-suficientes em suas demandas térmica e eletromecânica. Numa instalação típica, o bagaço de cana-de-açúcar é queimado nas fornalhas dos geradores de vapor, o vapor gerado vai acionar os turbo-geradores, que produzem eletricidade, e as moendas, bombas, difusores e outras demandas de energia mecânica. Depois disso, o vapor finalmente atende a demanda térmica do processo. A eletricidade produzida pelos turbo-geradores atende completamente a demanda interna e, quando há produção de excedentes, pode ser exportada para a rede local.
Apesar da auto-suficiência em energia elétrica, a geração de excedentes é ainda bastante limitada. A razão é que não houve intenção de produção de excedentes quando da instalação das usinas e destilarias. A maior parte delas possui instalações relativamente antigas que operam aquém do potencial técnico existente, considerando-se a quantidade de biomassa residual gerada e as novas tecnologias disponíveis. O interesse na produção de eletricidade excedente teve início em meados da década de 1980, estando concentrado atualmente no Estado de São Paulo, onde seguramente a maior parte dele é produzido.
A capacidade instalada de cogeração a partir do bagaço de cana-de-açúcar no Brasil, segundo dados da UNICA (UNICA, 2004) é de pouco mais de 2.100 MW, correspondendo a cerca de 2% da capacidade instalada no país. Aproximadamente 63% dessa capacidade está instalada no Estado de São Paulo. A maior parte dessa capacidade é usada pelas próprias usinas e destilarias, cerca de 1.500 MW. A diferença, em torno de 600MW, é produção de eletricidade excedente, disponível para ser comercializada com as distribuidoras.
Tal potencial pode ser significativamente ampliado caso algumas medidas sejam tomadas, tais como:
(1) Aumento da pressão e temperatura de operação do vapor, possibilitando melhora na eficiência do ciclo;
(2) Melhoria da eficiência de uso de vapor pelo processo, reduzindo seu consumo e resultando em maior excedentes para produção de eletricidade pela utilização de turbinas de condensação;
(3) Aproveitamento das pontas e folhas da cana-de-açúcar como combustível, adicionalmente ao bagaço. Atualmente as pontas e folhas da cana não são aproveitadas nas caldeiras. São, em grande parte, queimadas no campo em virtude da prática da colheita de cana queimada, tradicionalmente usada no setor;
(4) E, finalmente, uso de tecnologias mais avançadas, como é o caso da tecnologia BIGGT (Biomass Integrated Gasifier Gas Turbines) com processo de gaseificação de biomassa integrado à turbina a gás.
Das medidas apresentadas, apenas a última está distante da realidade atual, pois as tecnologias de gaseificação, apesar dos recentes avanços, ainda se mostram inviáveis economicamente, não havendo espaço para sua adoção em escala comercial. Vale ressaltar, também, que o aumento da geração de excedentes pela cogeração no período da entressafra depende necessariamente da disponibilidade e armazenamento de combustível adicional. Esse combustível seria as pontas e folhas da cana, resultado da colheita da cana crua, e uma possível complementação com gás natural ou óleo combustível.
Estudos recentes comprovam a existência do potencial de expansão da produção de excedentes no setor. O Centro Nacional de Referência em Biomassa (CENBIO, 2001) levantou potencial de cerca de 3800 MW pela adoção de medidas como: aumento da temperatura e pressão de operação do sistema; redução de consumo do vapor pelo processo; utilização de turbinas de extração-condensação; e cogeração também durante a entressafra utilizando pontas e folhas como combustível adicional. Segundo o CENBIO, a taxa de produção de excedentes atual é da ordem de 10 kWh/tc (tonelada de cana). Com as alterações consideradas, esse número poderia chegar a até 126 kWh/tc.
Outro estudo apresentado (LEAL, 2004) aponta números mais otimistas, de até 6.000 MW, com tecnologia comercial, como mostra a Tabela 1.
3 - Critérios de elegibilidade nos projetos de MDL
Para que um projeto seja aprovado no MDL, deve passar por um processo de validação, registro e certificação, no qual são aferidos os critérios de elegibilidade definidos pelo Protocolo de Quioto (UNEP, 2003). Dentre os critérios de elegibilidade inclui-se a promoção do Desenvolvimento Sustentável e o que está definido no item 5 do artigo 12 do Protocolo de Quioto:
(1) Participação voluntária das partes envolvidas no projeto;
(2) Benefícios reais, mensuráveis e de longo prazo relacionados à mitigação da mudança do clima;
(3) Reduções de emissões que sejam adicionais às que ocorreriam na ausência do projeto.
O último critério, comumente chamado de adicionalidade, consiste na redução de emissões ou no aumento da remoção de gases precursores do efeito estufa de forma adicional ao que ocorreria na ausência do projeto. Em outras palavras, para que um projeto de MDL seja creditado e possa emitir RCEs, deve comprovar que contribuiu, de forma adicional à determinada referência, para a redução de emissões ou para o seqüestro de carbono da atmosfera. A forma imprecisa com o que a definição da adicionalidade foi estabelecida pelos textos legais tem levado a literatura a identificar tanto seu aspecto ambiental, respeitante à comprovação das reduções de emissões de gases precursores de efeito estufa em relação ao cenário de referência, quanto seu aspecto financeiro, como as barreiras ao investimento e a viabilidade econômica do projeto com e sem os recursos oriundos do MDL (LEINING et al., 2000).
O aspecto ambiental da adicionalidade refere-se efetivamente às reduções de emissão resultantes do projeto, que devem ser reais, mensuráveis e de longo prazo. A questão que se coloca é o que teria ocorrido relativamente às emissões de GEE na ausência do projeto de MDL. As reduções são medidas em termos de RCEs, cuja contabilização depende de três passos:
(1) Definição do cenário de referência, ou linha de base, de emissões de GEE;
(2) Estimativa das emissões e/ou seqüestro de GEE pelo projeto;
(3) Comparação quantitativa entre a linha de base e as emissões/seqüestro do projeto.
Esses três passos precisam estar adequadamente registrados no Documento de Concepção do Projeto (Project Design Document - PDD), que deve ser apresentado e aprovado pelo Conselho Executivo da CQNUMC para que o projeto seja eleito ao MDL.
O estabelecimento da linha de base é etapa fundamental do processo de validação do projeto. Ela pressupõe a definição de critérios relativos à própria adicionalidade e também à escolha de uma metodologia apropriada. No âmbito do MDL, a linha de base de um projeto é o cenário que representa, de forma razoável, as emissões antrópicas de GEE que ocorreriam na ausência do projeto proposto, incluindo todos os gases, setores e categorias de fontes listadas no Anexo A do Protocolo de Quioto. Ela serve de base tanto para a verificação da adicionalidade quanto para a quantificação dos RCEs, que serão calculadas justamente pela diferença entre emissões da linha de base e as emissões verificadas em decorrência do projeto candidato. As emissões decorrentes do projeto devem incluir tanto as diretas quanto as indiretas, que ocorram dentro dos limites do projeto e fora deles, em virtude da ocorrência do projeto.
A análise da adicionalidade é feita por meio de um procedimento previsto e regulado nos Acordos de Marrakech. Esse procedimento compõe-se das fases de validação-registro, verificação-certificação e obtenção final das RCEs, que são, então, contabilizadas em contas que cada país possui perante os órgãos criados no âmbito da CQNUMC. Dessa forma, os proponentes de um projeto de MDL devem elaborar o PDD, no qual conste a metodologia de análise da linha de base. Essa metodologia deve ser previamente aprovada pelo Conselho Executivo, órgão criado no âmbito da CQNUMC com a principal atribuição de coordenar o processo de certificação de projetos de MDL.
Conforme previsto no parágrafo 48 dos Acordos de Marrakech, os participantes do projeto devem adotar a metodologia de linha de base que for considerada mais apropriada para o projeto, tomando como base:
(1) As emissões atuais ou históricas existentes, conforme o caso; ou
(2) As emissões de uma tecnologia que seja economicamente atrativa, levando-se em conta as barreiras para o investimento; ou
(3) A média das emissões de atividades de projeto similares realizadas nos cinco anos anteriores, em circunstâncias sociais, econômicas, ambientais e tecnológicas similares, e cujo desempenho esteja entre os primeiros 20% de sua categoria.
Além do aspecto ambiental da adicionalidade, há que se abordar os aspectos financeiros a ela associados. Eles dizem respeito à verificação da viabilidade econômica do projeto na ausência do incentivo financeiro representado pelo MDL, em outras palavras, procuram responder à questão: teria o projeto acontecido na ausência dos benefícios financeiros do MDL? Com isso pretende-se verificar o real incentivo que o MDL confere ao projeto sob análise. De acordo com algumas interpretações, projetos que teriam acontecido de qualquer maneira não seriam elegíveis ao MDL.
Dada a dificuldade prática de se estabelecer metodologias de linha base suficientemente coerentes e claras quanto ao cumprimento da adicionalidade nesse sentido, experimentada nos primeiros projetos submetidos ao Conselho Executivo, este órgão tem continuamente lançado notas de esclarecimento, apontando formas e abordagens a serem utilizadas pelos proponentes dos projetos na justificação da adicionalidade de suas propostas. Merece destaque o esclarecimento feito no anexo 1 do relatório oriundo da 10ª reunião do Conselho Executivo, realizada em agosto de 2003, o qual estabelece os seguintes exemplos de ferramentas que podem ser usadas para demonstrar que o projeto candidato é adicional:
(1) Fluxograma ou série de questões que levam ao estreitamento das potenciais opções de linha de base para o projeto; e/ou
(2) Análise qualitativa ou quantitativa de diferentes opções potenciais e a indicação de porque as opções diferentes daquela do projeto são mais viáveis; e/ou
(3) Análise qualitativa ou quantitativa de uma ou mais barreiras enfrentadas pelo projeto proposto; e/ou
(4) Indicação de que o projeto não é considerado uma prática comum (por exemplo que ocorre menos de x% em casos similares) na área de implementação do projeto ou que o projeto não faz parte de exigências legais.
4 - Projetos brasileiros de MDL a partir da cogeração com bagaço de cana
Há dois projetos brasileiros de MDL apresentados junto ao Comitê Executivo da CQNUMC na categoria de cogeração com bagaço de cana. São eles o projeto "Vale do Rosário Bagasse Cogeneration", apresentado pela Cia. Açucareira Vale do Rosário com a consultora Econergy Brasil, e o projeto "Catanduva Sugarcane Mill Biomass Power Plant Expansion", apresentado pelo Grupo Virgolino de Oliveira com a consultora Ecoinvest. O projeto Vale do Rosário foi aprovado pelo Comitê Executivo e o projeto Catanduva, até a data de conclusão deste artigo, não fora aprovado, tendo recebido comentários para revisão, da qual nova análise depende (CDM, 2004).
Ambos os projetos tem como objetivo o aumento da capacidade de cogeração a partir da modernização, ampliação e eficientização de seus sistemas. No caso Vale do Rosário a proposta de incremento de capacidade é de 36 MW para 101 MW, com ampliação de 50 MW de capacidade na produção de excedentes. No caso Catanduva a ampliação é de 9 MW para 25 MW, com produção de 19,5 MW de excedentes. Na Tabela 2 apresenta-se os principais aspectos referentes à adicionalidade dos dois projetos, obtidos de seus PDDs (ECOINVEST, 2002; ECONERGY, 2003).
Como se observa da Tabela 2, ambos os projetos, para atestar sua adicionalidade, baseiam-se nas análises do cenário econômico e do setor de energia elétrica no Brasil, identificando as barreiras ao investimento em cogeração e as políticas públicas recentemente adotadas para o setor. Ressalta-se o destaque que os dois projetos dão: (1) ao Programa Prioritário de Termelétricas e às intenções de governo de expandir o uso do gás natural na geração de eletricidade; (2) às incertezas nos cenários de investimentos no setor de geração de energia elétrica, especialmente quando se fala de fontes renováveis alternativas; (3) à baixa atratividade econômica e aos altos riscos que o setor privado percebe nos projetos que envolvem fontes renováveis alternativas; e, (4) às incertezas regulatórias e econômicas vigentes no Brasil.
É importante notar que os dois projetos foram preparados no período de 2001/2002, logo após o racionamento de eletricidade de 2001, quando havia grande incentivo à instalação de termelétricas a gás natural e muita incerteza quanto ao futuro do setor de eletricidade no país. Além disso, também nesse período, em 2002, foi aprovada a Lei 10.438, que instituiu o PROINFA, um importante programa de incentivos às fontes renováveis de energia elétrica, mas que só foi levada adiante em 2004.
Quanto à ferramenta utilizada para demonstrar a adicionalidade, tanto o projeto Vale do Rosário quanto o projeto Catanduva optaram por uma série de questões por meio das quais procuraram demonstrar que os projetos não aconteceriam na ausência dos incentivos do MDL, seja porque não há exigência legal ou políticas públicas para tanto, ou porque tais projetos não são economicamente atrativos quando comparados a outras alternativas na área, ou ainda pela existência de barreiras a esse tipo de projetos e, finalmente, pelo fato de que a cogeração com bagaço de cana-de-açúcar não faz parte da prática comum.
Quando da preparação dos PDDs, o PROINFA ainda estava em fase de aprovação e muita incerteza havia quanto à sua efetivação. Hoje o cenário é diferente e a primeira chamada de projetos para o Programa mostrou que há grande interesse nas condições por ele oferecidas. Uma questão que se poderia colocar diz respeito à influência do PROINFA na adicionalidade de possíveis candidatos ao MDL, como é o caso da cogeração com bagaço de cana, que consta dentre as fontes incentivadas pelo Programa.
Criado em 26 de abril de 2002, pela Lei Nº10.438, e revisado pela Lei Nº10.762, de 11 de novembro de 2003, o PROINFA tem o objetivo de diversificar a matriz energética brasileira, garantindo ao setor elétrico maior confiabilidade e segurança de abastecimento e melhor desempenho ambiental. O Programa, coordenado pelo Ministério de Minas e Energia (MME), estabelece a contratação de 3.300 MW de energia no Sistema Interligado Nacional, produzidos por fontes eólica, biomassa e pequenas centrais hidrelétricas, sendo 1.100 MW de cada fonte. A compra da eletricidade produzida ficará a cargo da Eletrobrás, através de contratos de compra de energia de longo prazo. Ela assegurará ao empreendedor uma receita mínima de 70% da energia contratada durante o período de financiamento e proteção integral quanto aos riscos de exposição do mercado de curto prazo. Os contratos terão duração de 20 anos e envolverão projetos selecionados que devem entrar em operação até dezembro de 2006. O PROINFA contará, ainda, com o suporte do BNDES, que criou um programa de apoio a investimentos em fontes alternativas renováveis de energia elétrica.
Assim, o PROINFA poderia afetar os cenários de referência usados na justificação da adicionalidade dos projetos, uma vez que se apresenta como instrumento de incentivo econômico às fontes renováveis alternativas, incluindo a cogeração com bagaço de cana.
Três ponderações devem ser feitas, contudo:
(1) A existência de políticas e programas de incentivo aos tipos de projetos candidatos ao MDL não elimina necessariamente a possibilidade de que eles sejam elegíveis. O projeto ainda poderá ser qualificado no MDL se conseguir-se demonstrar que, mesmo com a existência da política ou programa, ainda há barreiras ao investimento no tipo de projeto sob análise, ou que ele não representa prática normal, ou ainda que há outras alternativas economicamente mais viáveis.
(2) A cogeração com bagaço de cana foi a única das três fontes amparadas pelo PROINFA que não atingiu os 1.100 MW previstos pelo Programa na primeira chamada de projetos. O resultado foi de 995,2 MW. Isso talvez possa indicar que os incentivos oferecidos pelo programa não foram suficientemente altos para atrair tantos investidores em cogeração com bagaço quanto no caso das outras fontes.
(3) O potencial de expansão da geração de excedentes a partir da cogeração com bagaço de cana está muito além da capacidade prevista pelo PROINFA. Os estudos aqui apresentados (Seção 2) apontam para valores de até 6.000 MW, enquanto o PROINFA prevê a contratação de apenas 1.100 MW, num primeiro momento.
Por essas razões espera-se que o PROINFA não tenha influência negativa na adicionalidade dos projetos de cogeração com bagaço de cana-de-açúcar.
Quanto aos aspectos ambientais da adicionalidade, ou seja, à definição da linha de base dos projetos apresentados parece não haver dúvidas de que há, de fato, vantagens ambientais em se utilizar o bagaço de cana-de-açúcar como combustível para a produção de eletricidade, do ponto de vista de redução das emissões de gases precursores do efeito estufa.
A geração de eletricidade no Brasil é fortemente baseada em grandes centrais hidrelétricas (~75%), seguidas pelas centrais termelétricas a combustíveis fósseis (~17%), como pode ser observado na Tabela 3 (ANEEL, 2004). As centrais a biomassa juntamente com outras fontes renováveis alternativas somam aproximadamente apenas 4,5% da capacidade instalada. Se a comparação é feita em termos de energia consumida é possível que tais números inclinem-se ainda mais para a geração hidrelétrica, seguida da geração termelétrica a combustíveis fósseis.
Poder-se-ia questionar a efetividade da instalação de centrais a biomassa para redução da emissão de gases precursores do efeito estufa numa situação em que, na linha de base, a maioria absoluta da geração provém de hidrelétricas, que têm emissões desse tipo de GEE desprezíveis. Contudo, deve-se ponderar que a adicionalidade, e portanto a construção da linha de base, deve levar em consideração, no caso de projetos que envolvem fontes renováveis de energia elétrica, não o deslocamento da energia de base mas, da energia que realmente seria deslocada pela instalação da fonte renovável. Nesse sentido, Kartha et alli. (2004) apresentam o método da margem combinada, em que procura-se verificar a influência do projeto tanto na margem de operação - ou seja, na operação das centrais geradoras existentes - quanto na margem de expansão - ou seja, na construção de novas centrais geradoras. A margem combinada resultaria da média entre as margens de operação e de expansão.
No caso brasileiro espera-se que, tanto na margem de operação quanto na de expansão, a cogeração com bagaço de cana desloque principalmente centrais termelétricas a combustíveis fósseis, em especial a gás natural. No caso da margem de operação justifica-se tal fato porque a eletricidade de base na matriz elétrica brasileira é majoritariamente hidráulica e, portanto, esta parcela não seria deslocada pelas centrais de cogeração, devendo ser desconsiderada para o cômputo da margem de operação. Na margem de operação apareceriam com maior peso as centrais termelétricas a gás natural, operadas por despacho além da base. No caso da margem de expansão, a influência das centrais termelétricas a gás natural é ainda maior, por conta da exaustão do potencial hidráulico na área de influência do projeto e das intenções governamentais de introdução do gás natural na produção de eletricidade.
O projeto Vale do Rosário adota como metodologia de linha de base a margem combinada do sistema interligado Sul/Sudeste/Centro-Oeste, resultando numa taxa de emissão de GEE de 604 kgCO2eq/MWh. Já o projeto Catanduva optou por outra metodologia, escolhendo uma tecnologia economicamente atrativa, alternativa à cogeração, adotando como linha de base as emissões provenientes de uma central termelétrica a gás natural, operando em ciclo combinado, com 99,5% de queima do combustível e 50% de eficiência, o que resultou numa taxa de emissão de GEE de 402 kgCO2eq/MWh.
Percebe-se daí a influência que a escolha da metodologia tem sobre a determinação da linha de base. É verdade que a análise da adicionalidade e da linha de base deve ser feita projeto a projeto, mas, nesse caso, tratam-se de situações que empregam tecnologias similares e em que o tipo de eletricidade deslocada será praticamente a mesma. Não obstante tais fatos, a linha de base resultou significativamente diferente, 604 kgCO2eq/MWh vis-à-vis 402 kgCO2eq/MWh. Assim, apesar de ambos apresentarem qualitativamente o mesmo resultado final positivo, pelo deslocamento de centrais termelétricas a gás natural, diferem quantitativamente quanto ao montante de redução de emissões de GEE relativas a cada MWh deslocado.
5 - Conclusões
Como parte dos esforços globais em torno da questão das mudanças climáticas, o Protocolo de Quioto foi estabelecido. Dentro dele o MDL constitui um importante mecanismo de flexibilização para os países Anexo 1, de forma que possam atingir suas metas de redução de GEE através de investimentos em projetos nos países não-Anexo 1, os quais promovam o Desenvolvimento Sustentável e resultem em redução de emissões de GEE adicionais a um cenário de referência.
Etapa fundamental para um projeto ser qualificado no MDL é a comprovação de sua adicionalidade. Esta etapa deve ser bem conduzida para que não haja empecilhos na validação do projeto. Para tanto, as diretrizes e esclarecimentos da CQNUMC devem ser respeitadas durante a produção do PDD, que deve conter todas as informações relevantes ao projeto, bem como a metodologia escolhida para demonstração de sua adicionalidade.
Dentre as inúmeras possibilidades de projetos de MDL, a cogeração a partir do bagaço de cana-de-açúcar desponta como importante oportunidade para o Brasil. Dois projetos brasileiros de cogeração com bagaço de cana foram apresentados junto ao CQNUMC. Um deles teve sua metodologia aprovada e o outro depende de revisão. No que diz respeito à adicionalidade desses projetos, pode-se concluir que, ainda que haja grande influência da geração hidrelétrica na matriz brasileira, há vantagens em se adotar a cogeração de eletricidade com bagaço de cana em virtude do deslocamento, na margem, de combustíveis fósseis, especialmente o gás natural. A determinação do montante de redução de emissões, contudo, é fortemente influenciado pela metodologia e pela linha de base escolhidas, podendo levar a diferenças significativas.
Finalmente, o advento do PROINFA não deve interferir negativamente na adicionalidade dos projetos de cogeração com bagaço de cana, por duas razões principais: ainda há barreiras para a implementação desse tido de projeto no país e a percepção sobre eles é de alto risco e pouca atratividade econômica. Além disso, há um enorme potencial de expansão do setor, se comparado à capacidade prevista pelo PROINFA, potencial que depende de instrumentos adequados de incentivo para ser concretizado. Nesse sentido o MDL pode se mostrar de considerável relevância.
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