An. 5. Enc. Energ. Meio Rural 2004
Álcool combustível derivado da cana-de-açúcar e o desenvolvimento sustentável
Rodrigo Marcelo Leme
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Planejamento de Sistemas Energéticos da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp
RESUMO
O uso do álcool combustível derivado da cana-de-açúcar no Brasil teve grande impulso durante as décadas de 1970 e 1980, com o Programa Nacional do Álcool (Proalcool). Seguiu-se a esse período uma década de incertezas, durante a qual a queda nos resultados alcançados pelo Proalcool foi visível. Hoje, parecem surgir novas e boas perspectivas para o álcool combustível em função dos mercados externos emergentes e de uma possível retomada no mercado interno. Nesse artigo aborda-se a evolução do uso do álcool combustível no Brasil, destacando-se a importância e o legado do Proalcool, e discute-se suas perspectivas futuras.
Palavras-chave: álcool combustível, desenvolvimento sustentável, política energética.
ABSTRACT
The use of the sugarcane bioethanol in Brazil was strongly boosted during the 1970's and 1980's, with the advent of the National Alcohol Programme (Proalcool). Following this period a decade of uncertainties came up, when the decline in the Program results were noticeable. Nowadays, it seems that new and good perspectives arise, due to the emergent external and internal markets. In this paper the evolution of the sugarcane bioethanol use in Brazil is addressed, stressing the importance and legacy of the Proalcool. The future perspectives of the alcohol are also discussed.
Key words: bioethanol, sustainable development, energy policy.
1 - Introdução
Dos usos finais da energia, o transporte é dos mais importantes. E nesse segmento uma das fontes de energia mais significativas é a gasolina, combustível fóssil que, como outros de sua classe, causa problemas ambientais seríssimos. É reconhecido que a busca de alternativas aos combustíveis fósseis, dentre eles a gasolina, envolve esforços de pesquisa em todo o mundo. Nesse sentido, há no Brasil um exemplo talvez dos mais bem sucedidos: o uso do álcool combustível derivado de cana-de-açúcar como substituto da gasolina. O Brasil é pioneiro na produção e uso em larga escala de álcool combustível, sendo um dos líderes mundiais nessa área.
Depois de um período de incertezas, ao longo da década de 1990, o interesse pelo álcool combustível no Brasil parece ter se fortalecido em virtude das novas perspectivas de mercado. Internamente, houve o lançamento dos veículos bicombustível (flex fuel). Externamente, cresce o interesse em substituir oxigenantes da gasolina altamente poluentes, como o MTBE e o chumbo tetraetila, pelo álcool; cresce também o interesse em substituir parte da gasolina por álcool, em virtude das vantagens econômicas que isso poderia propiciar em cenários de alta nos preços do petróleo e por causa da elevada tributação que sofrem os combustíveis fósseis em alguns países. Também contribui para esse movimento, a mobilização internacional em torno das mudanças climáticas e o desenvolvimento de projetos de MDL, no âmbito do Protocolo de Quioto.
Segundo UNICA (UNICA, 2004) diversos são os países com interesse em iniciativas que envolvem o uso do álcool combustível: União Européia, Índia, China, Japão, Canadá, Estados Unidos, entre outros. As exportação brasileiros desse produto tem crescido substancialmente nos últimos anos. Internamente o consumo nos últimos anos também aumentou. Assim, a exploração desses mercados emergentes, internos e externos, interessa economicamente à indústria sucroalcooleira e pode colocar o álcool como mais um importante produto da cesta de exportações brasileiras.
De fato, o álcool combustível apresenta vantagens ambientais. Desconsiderando-se o uso de catalisadores, o álcool trata-se de um combustível mais limpo do que seu substituto, a gasolina, pois possui menores fatores de emissão para poluentes de efeito local. Além disso, é proveniente de uma fonte renovável, a cana-de-açúcar, resultando em emissões líquidas de gases precursores do efeito estufa potencialmente nulas por seu conteúdo de carbono ser reciclado.
Espera-se, então, que se possa dar novo impulso ao uso em larga escala do álcool combustível, de forma que sejam aproveitadas suas vantagens ambientais e que, ao mesmo tempo, esse movimento não impeça a reflexão crítica sobre todas as possibilidades de desenvolvimento que isso poderia propiciar. Por isso vale recuperar brevemente a evolução do uso do álcool combustível no Brasil e provocar a discussão sobre modelos de desenvolvimento alternativos dessa indústria.
2 - Evolução do uso do álcool combustível no Brasil
2.1 - Fase do álcool-motor, de 1931 até 1975
O cultivo da cana-de-açúcar, introduzido no Brasil no início do século XVII, sempre foi parte importante de sua economia. Tal fato conferiu a esse setor produtivo, desde a colonização, considerável influência nas decisões políticas do país. Foi assim que em 1931, atendendo aos interessess da indústria sucroalcooleira, o governo de Getúlio Vargas instituiu a obrigatoriedade da adição de álcool anidro à gasolina consumida no terrítório nacional, à proporção de 5% em volume. O álcool era conhecido então como álcool-motor. O interesse da indústria sucroalcooleira devia-se às oscilações de oferta e preço do açúcar no mercado internacional.
Nessa primeira fase, que vai até 1975, o uso do álcool esteve restrito à mistura (do álcool anidro) com gasolina, em pequenas porcentagens, que variaram entre 4%, 6%, até 10%. A produção, apesar das oscilações ano a ano, subiu consistentemente ao longo desse período, passando de 33 mil m3 em 1946 para pouco mais de 600 mil m3 em 1975 (LEITE, 1997; MOREIRA e GOLDEMBERG, 1999).
2.2 - Primeira fase do Proalcool, de 1975 a 1979
Depois de 1975 houve significativa evolução dos níveis de produção e consumo de álcool combustível no Brasil. Isso aconteceu em virtude do estabelecimento, pelo governo Geisel, em novembro de 1975, do Programa Nacional do Álcool, o Proalcool.
Nesses primeiros anos do programa, o objetivo foi expandir o uso do álcool combustível através do aumento da mistura álcool anidro e gasolina. Estabeleceu-se a meta de aumentar a produção de álcool anidro de 500 milhões de litros, em 1975, para 3 bilhões de litros, em 1980, pelo aumento da proporção da mistura, de 5% em volume de álcool, para 20%. Para isso, o governo brasileiro interveio fortemente através da distribuição de incentivos para a instalação de destilarias de álcool anexas às usinas de açúcar, baseadas portanto na capacidade produtiva existente no setor sucroalcooleiro.
Essa primeira fase foi marcada pela difícil relação entre o governo e as multinacionais do segmento automotivo, instaladas no país, e pela resistência do setor do petróleo. Apesar de tudo, em 1979, quando do início da segunda fase do Proalcool, a meta de produção já havia sido ultrapassada, foram 3,34 bilhões de litros, e a proporção da mistura, alcançado 17% (LEITE, 1997).
2.3 - Segunda fase do Proalcool, de 1979 a 1985
Simultaneamente à segunda crise de preços do petróleo, em 1979, iniciou-se a segunda fase do Proalcool. Ela foi marcada pela intensificação do programa através de continuada intervenção do governo. Nesse período, a resistência inicial da indústria automobilística foi amainada e a ênfase passou a ser a utilização, além do álcool anidro misturado à gasolina, também do álcool hidratado puro, como combustível, através de uma nova frota de veículos, movidos exclusivamente a álcool, que começava a ganhar as ruas. A expansão da produção passou a ser feita com base na instalação de destilarias autônomas, separadas das usinas de açúcar, e na expansão das áreas de cultivo de cana-de-açúcar.
Nesse período a produção e a participação das destilarias anexas e autônomas evoluiu rapidamente, tanto em termos quantitavos, quanto de capacidade produtiva. A produção nacional, que era de 3,3 bilhões de litros em 1979, passou para 11,8 bilhões em 1985 (LEITE 1997; MOREIRA e GOLDEMBERG, 1999).
2.4 - Queda nos resultados, de 1985 a 1989
Esse último período do program foi marcado por profundas mudanças no cenário político nacional, com a transição para a democracia, e pela profunda crise econômica que se abateu sobre o país, que acumulava pesada dívida externa e altas taxas de inflação. Na época, a credibilidade do programa perante a população estava em alta, a venda de veículos novos a álcool ultrapassava em muito a venda de veículos novos a gasolina. Em 1985, quase 96% dos novos veículos vendidos eram movidos a álcool.
Contudo, a queda dos preços do petróleo, a partir de 1986, e consequentemente da gasolina, diminuiu bastante a competitividade do produto. A colocação do álcool hidratado no mercado a preços muito inferiores aos da gasolina passou a exigir subsídios cada vez mais elevados. Além disso, o desabastecimento de álcool ocorrido na safra 1989/90, que decorreu da ausência de política coerente nos anos precedentes, atingiu o mercado consumidor, gerando desconfianças. Mesmo os esforços do governo para superar a crise, abaixando o teor de álcool adicionado à gasolina de 22% para 18%, e depois 13%, e introduzindo o uso da mistura MEG (33% de metanol, 60% de etanol e 7% de gasolina), não foram suficientes.
A tendência de queda dos resultados do programa eram evidentes. O Proalcool, como programa de incentivos e benefícios aos produtores e consumidores perdia força. Permaneciam a regulação dos preços pelo governo e a norma que estabelecia a adição de álcool anidro à gasolina na proporção de 22% (OLIVEIRA, 1991; LEITE, 1997; ROSILLO-CALLE e CORTEZ, 1998).
2.5 - Incertezas na década de 1990-2000
A década de 1990 foi marcada pela prioridade dos governos em estabilizar a economia brasileira, e várias foram as tentativas nesse sentido. Não houve política energética governamental bem definida e o uso do álcool combustível no Brasil esteve incerto.
Nessa época os preços dos combustíveis ainda eram regulados pelo governo e os subsídios cruzados entre álcool, gasolina e diesel geravam grandes desequilíbrios econômicos. Os preços da gasolina e do diesel eram sobretaxados para que a Petrobras pudesse pagar aos produtores de álcool o valor fixado pelo governo, garantindo a modicidade dos preços de venda desse combustível ao consumidor. Para agravar a situação, os preços do açúcar estiveram altos, o preço do petróleo baixo e o déficit de oferta de álcool foi frequente, fazendo recorrente a necessidade de importação de cerca de 1 bilhão de litros de álcool por ano, ao longo dessa década. O déficit na conta de diferenças da Petrobras, conhecida como conta-álcool, atingia valores cada vez mais preocupantes.
Ao longo desse período, o consumo e a produção e de álcool hidratado cairam ano a ano, refletindo a queda dos preços do petróleo e a diminuiçao da frota de veículos a álcool (em 1997, menos de 1% das vendas foi de veículos a álcool). Contrariamente, houve tendência de aumento do consumo e da produção de álcool anidro, em virtude do aumento do consumo de gasolina e da proporção da mistura álcool-gasolina. O resultado foi aumento do consumo total de álcool, que simultaneamente à estagnação da produção total por volta 12 bilhões de litros ao ano, exigiu constantes importações de etanol e metanol nesse período.
3 - Razões e importância do Proalcool
Reconhecidamente, a principal razão do Proalcool foi o aumento dos preços do petróleo no mercado internacional, em 1973 e 1979, que demandaram ações eficazes por parte do governo na substituição do petróleo e de seus derivados na matriz energética nacional. À época das crises, os especialistas previam que os preços do petróleo iriam continuar a crescer nos anos seguintes e o Brasil, que passava por um período de notável crescimento econômico, tinha grande dependência externa de petróleo.
Contudo, outros fatores convergiram para o estabelecimento do Proalcool ao longo da década de 1970 (OLIVEIRA, 2002): (1) a crise por que passava a indústria sucroalcooleira, em virtude da sobreoferta de açúcar, e conseqüente queda dos preços, no mercado internacional. Os grupos ligados a essa indústria intensificaram o lobby por políticas agressivas a favor do álcool combustível para que ele pudesse atuar no equilíbrio econômico do setor em tempos de crise no mercado do açúcar; (2) o interesse estratégico dos militares, que governavam o país na época, em desenvolver suprimentos seguros e auto-suficientes de combustíveis como fator de segurança nacional; (3) o avanço, nos centros nacionais, das pesquisas sobre produção e uso de álcool combustível; (4) a boa aceitação do programa pela população, amedrontada pela crise de preços dos derivados de petróleo.
Destaque importante deve ser dado à forte influência exercida pelo setor sucroalcooleiro no estabelecimnto da política do álcool combustível, aliás, fato sentido desde 1931. Durante o Proalcool isso foi acentudado, e a interferência do mercado internacional de açúcar no suprimento interno de álcool passou a ser percebido mais fortemente. Sempre que havia baixa no preço do açúcar, o setor fortalecia o lobby pelo aumento do escoamento da produção de cana no mercado interno através do álcool, e vice-versa.
O Proalcool caracterizou-se por intensa intervenção estatal na economia, o que foi feito através da mistura de políticas distributivas e regulatórias, como por exemplo, subsídios ao setor agroindustrial, na expansão de destilarias e de novas áreas de cultivo; obrigatoriedade da adição de álcool a gasolina, estabelecida por lei; incentivos à produção de carros a álcool, através de tecnologia nacional; medidas de proteção contra o álcool importado; incentivo ao consumo de álcool, através de controle preços, subsídios e incentivos fiscais; incentivo à pesquisa e desenvolvimento nos campos relacionados à produção e ao uso do álcool combustível (OLIVEIRA, 2002).
Quanto à importância do Programa, não resta dúvida de que foi o grande responsável pela inserção do álcool combustível na matriz energética brasileira, mesmo apesar de seu enfraquecimento a partir de 1989 e do período de incertezas da década seguinte. A Figura 1 apresenta os dados de consumo de álcool anidro, hidratado e de gasolina, desde o início do Proalcool. Como se observa, durante o Proalcool houve forte aumento da inserção desse combustível na matriz, com oferta majoritária através de produção nacional. A manutenção dessa situação, contudo, apresenta duas realidades distintas.
O álcool anidro, adicionado compulsoriamente à gasolina, tem seu consumo ainda hoje garantido por lei, mantendo sua inserção na matriz pelo acompanhamento do consumo de gasolina, como mostra a Figura 2. Já o álcool hidratado dependeu muito fortemente das políticas de incentivo do Proalcool e sofre grande influência do preço da gasolina, tendo seu consumo drasticamente reduzido ao longo da década de 1990, como mostra a Figura 3.
Outro legado dos mais importantes deixado pelo Proalcool foi a capacitação tecnológica da indústria e dos centros de pesquisa nacionais na produção e uso do álcool combustível. Hoje, o Brasil é um dos líderes mundiais em tecnologia de açúcar e álcool. O sucesso do Proalcool, nesse sentido, fica evidente pela evolução da eficiência da produção: em 1977 produzia-se 2663 L(álcool)/ha(cultivado) e hoje esse número está em torno de 6350 L/ha. Em 1974 eram produzidos 60,6 L(álcool)/ton(cana) e hoje pode-se chegar a 89 L/ton. Esses números provocaram significativa redução dos custos de produção do álcool, desde 1975. Eles refletem, sem dúvida, o aumento da produtividade agrícola, o aumento da produtividade das destilarias, o melhoramento genético da cana e o aperfeiçoamento das técnicas produtivas e gerenciais do setor, em virtude da capacitação tecnológica promovida pelo Proalcool no país (GOLDEMBERG, 1996; LEITE, 1997; MOREIRA e GOLDEMBERG, 1999).
Quanto à substituição de importação de petróleo o programa obteve resultados satisfatórios. A contabilidade dos resultados na balança de pagamentos brasileira envolvem a gasolina importada evitada, substituida pelo álcool, o excedente de gasolina nacional, compulsoriamente produzida nas refinarias brasileiras e que passou a ser exportada, e a importação e exportação de álcool que se fazia necessária para equilibrar oferta e demanda. Segundo, Goldemberg et al. (2003), a substituição da gasolina pelo álcool resultou em economias de cerca de US$52,1 bilhões (dólar de Jan 2003), de 1975 até 2002. Rosillo-Calle e Cortez (1997), apresentam os seguintes números: até 1997 foram investidos US$11,3 bilhões no programa, resultando em economia de US$28,7 bilhões.
Os subsídios cruzados, que foram importantíssimos no período do Proalcool, atualmente já não existem mais, nem para o álcool anidro, nem para o hidratado. Apesar disso, e em virtude dos ganhos de produtividade e diminuição dos custos de produção, o álcool combustível é competitivo com a gasolina, especialmente se considerarmos a tendência de elevação gradual dos preços médios do petróleo no mercado internacional e as oportunidades de redução adicional do custo de produção do álcool (GOLDEMBERG et al., 2003).
4 - Perspectivas do álcool combustível e o Desenvolvimento Sustentável
Na entrada do novo milênio parece haver boas perspectivas para o álcool combustível. O reaquecimento do mercado interno através dos carros bicombustível, além da mistura do álcool anidro na gasolina, e a emergência de mercados externos significativos são as razões mais importantes.
No mercado externo, fatores que se destacam são as incertezas quanto ao preço do petróleo em períodos de instabilidade econômica e política mundial; a tendência de substituição em diversos países dos oxigenantes MTBE e chumbo tetraetila, muito poluentes, pelo álcool; a alta tributação que alguns países imputam à gasolina; e, também, a crescente preocupação mundial a respeito da questão ambiental, que ao longo do período em que vigorou o Proalcool não ocupou papel de tamanho destaque. Os esforços para a inserção de fontes renováveis de energia na matriz energética mundial, especialmente em virtude da intensificação do efeito estufa, têm sido cada vez maiores. O Protocolo de Quioto é o principal exemplo disso.
Outro aspecto importante, de longo prazo, diz respeito ao fantasma do esgotamento das reservas de petróleo, que sempre ronda o cenário energético mundial. Se as projeções obtidas são sempre motivo de controvérsia, não há dúvida que o petróleo, um dia, vai tornar-se escasso. Isso beneficia sobremaneira o uso de fontes renováveis de energia, como é o caso do álcool.
Diante desse quadro, o Brasil está em situação privilegiada. Além das características de que dispõe naturalmente, como clima apropriado e disponibilidade de amplas áreas apropriadas ao plantio, e da longa tradição no cultivo e processamento da cana-de-açúcar, o país desenvolveu vantagens competitivas que o colocam como um dos líderes mundiais nesse segmento de negócios, incluindo a liderança tecnológica na cadeia produtiva da cana-de-açúcar. Espera-se, assim, que o país possa tomar a dianteira na corrida pela conquista dos novos mercados de álcool combustível, que emergem na cena mundial.
Para que sejam atendidas as expectativas dessa nova fase no uso do álcool combustível, é fundamental que sejam estabelecidas novas políticas. O fortalecimento do mercado interno deve fazer parte delas, por exemplo, através da expansão da adição de álcool anidro à gasolina; do incentivo à adoção de veículos de frota movidos a álcool; da ampliação das possibilidades de utilização do álcool em outras aplicações; da ampliação da penetração dos novos veículos bicombustível (flex fuel). No futuro, o desenvolvimento de tecnologia para uso do álcool combustível como fonte de hidrogênio para as células a combustível também é oportunidade que deve ser desenvolvida.
Um aspecto de suma importância para concretização desse novo cenário de expansão é a busca por maior eficiência e reduções adicionais dos custos de produção do álcool. A continuidade das pesquisas nas áreas de produção agrícola, melhoramento genético e processamento da cana são importantes. Outras alternativas que possibilitam redução de custos são a oportunidade de utilização e comercialização dos subprodutos e resíduos da produção e processamento da cana. Alguns exemplos disso são a cogeração de energia, a produção de ração animal a partir de resíduos do processamento da cana e o uso da vinhaça como fertilizante. Particularmente, a cogeração de energia parece ser uma alternativa bastante promissora nesse sentido. Estima-se que haja potencial da ordem de 6 GW, com tecnologia comercialmente disponível, número bastante significativo. Enfim, todas essas são maneiras de se melhorar a eficiência econômica das instalações de processamento da cana, reduzindo seus custos gerais, inclusive os de produção de álcool.
No entanto, apesar de toda a publicidade a favor do uso do álcool combustível como alternativa de Desenvolvimento Sustentável, do ponto de vista do suprimento energético, cabem reflexões a esse respeito. O cultivo e o processamento de cana para produção de álcool combustível, assim como em outras atividades industriais, incorre em interferências importantes no ambiente, resultando em prejuízos tanto do ponto de vista ambiental, quanto social. Na verdade a indústria sucroalcooleira, tal como se apresenta, é parte de um contexto maior, em que o modelo de desenvolvimento econômico impõe uma estrutura de organização produtiva que privilegia a produção em larga escala e o rápido retorno econômico, em detrimento de outros fatores mais essenciais para a sustentabilidade.
Dos importantes impactos negativos, na fase agrícola podem-se citar: degradação do solo, contaminação do ambiente com o uso de agroquímicos, queimada pré-colheita, concentração fundiária, expulsão de pequenos agricultores do campo e geração de subempregos; no transporte da cana para as usinas utiliza-se como combustível o óleo diesel, de origem fóssil, altamente poluente, e do qual temos dependência externa; da fase industrial do álcool outros impactos resultam, quais sejam, uso e consumo de água, geração de resíduos sólidos e efluentes líquidos, emissões atmosféricas. Enfim, todos esses são aspectos da realidade da cadeia produtiva do álcool, aos quais deve ser dado o tratamento adequado durante o debate sobre a adoção de políticas e programas de incentivo ao setor (BORRERO, PEREIRA e MIRANDA, 2003).
Evidentemente houve melhorias significativas na cadeia de impactos negativos em virtude da modernização dos processos industrial e agrícola, e até mudanças na percepção sobre a questão ambiental por parte do setor sucroalcooleiro, mas talvez ainda haja muito em que se avançar. Por isso, a aparente euforia a respeito dos benefícios econômicos em virtude da expansão desse mercado, sustentada pelas vantagens ambientais associados à substituição da gasolina, em detrimento dos outros aspectos já citados, não deve ofuscar a necessidade de uma discussão ampliada, até os limites do que se espera como modelo de desenvolvimento para o país. E, certamente, isso também é valido para a análise de outros setores da economia.
O caminho da análise custo-benefício socioambiental é bastante tentador e é normalmente por onde seguem as discussões sobre a escolha de alternativas tecnológicas, como é o caso do álcool. Porém, esse é um caminho certamente bastante perigoso pois dificilmente as análises feitas são capazes de lidar com a complexidade dos problemas reais, do ambiente natural e da dinâmica social. Dessa forma, é muito provável que inúmeras relações da complexa teia que constitui o ambiente sejam deixadas de lado. Não deve causar espanto, portanto, se os problemas fundamentais persistirem, tal como antes.
Na verdade, a escolha de uma ou outra tecnologia, política ou programa parece ser uma questão muito mais ampla do que uma mera contabilidade de custos e benefícios econômico-ambientais. Tal análise é importante, mas não deve ser confundida com a escolha de um novo modelo de desenvolvimento, ou, de Desenvolvimento Sustentável. O próprio debate sobre Desenvolvimento Sustentável precisa ser melhor qualificado quando é tratado dentro dessa questão. Talvez, haja excelentes oportunidades de se propor políticas que redirecionem os investimentos de forma a incluir uma maior parcela da sociedade nessa atividade, gerando condições para que ela se desenvolva. O diálogo com todos os atores sociais envolvidos é fundamental, incluindo organizações da sociedade civil, movimentos sociais e a academia. Ele não pode ficar restrito a um grupo de técnicos que pretensamente serão capazes de compreender todas as dinâmicas envolvidas em suas decisões.
Nesse sentido, um bom começo talvez seja discutir exaustivamente o que entendemos por Desenvolvimento Sustentável. Apesar desse debate ser intenso, ainda está limitado a pequenos grupos, envolvendo pouco a sociedade, e parece estar distante de conclusão. Há diversas correntes que usam o termo indiscriminadamente, para identificar sua conduta em relação ao meio ambiente. Muitos entendem que o Desenvolvimento Sustentável é um objetivo a ser alcançado, porém poucos sabem como fazê-lo. Na tentativa, apropriam-se do termo, de forma autoritária, para designar sua própria compreensão do caminho a ser seguido, resultando em que Desenvolvimento Sustentável significa uma série de visões diferentes, e às vezes até antagônicas.
É preciso que a adoção do álcool como alternativa ao Desenvolvimento Sustentável não se constitua numa das situações em que isso acontece. Não será possível produzir álcool em pequenas unidades produtivas, agroecológicas, que empreguem mais pessoas e interfiram menos no ambiente natural? Tal pergunta precisa ser estudada e debatida. Sabe-se que há usinas que já produzem açúcar orgânico, uma técnica sabidamente menos degradadora do ambiente. Não será possível produzir também álcool orgânico? Pois, se afinal o objetivo é o Desenvolvimento Sustentável, essa idéia parece fazer bastante sentido. Que dizer sobre as tensões no campo, em virtude da ausência de uma política consistente de reforma agrária. Não seria essa uma oportunidade de ação?
É assim que precisa ser dado um passo a frente. O argumento usado para a rejeição desse tipo de idéias é o mesmo de sempre: os alto custos de produção inviabilizariam o negócio. Pois se isso é verdade deve-se definir políticas sérias de incentivo, pagar o preço pela qualidade socioambiental, investir em pesquisa. O prêmio seria colhido por toda a sociedade, atual e futura. Os desafios num mundo de mercados mundializados certamente são enormes, mas isso não pode ser motivo para que outras alternativas não sejam discutidas. Ela deveria ser trazida à tona na discussão, promovendo-se o debate, estimulando-se a criação de idéias e fortalecendo uma alternativa realmente mais sustentável de combustível.
6 - Conclusões
O Proalcool foi fundamental na introdução do álcool combustível na matriz energética brasileira e no desenvolvimento e capacitação da tecnologia nacionais, criando condições para que hoje o Brasil seja referência mundial nesse setor. No entanto, o Proalcool foi uma política contemporânea a seu tempo e não teve como objetivo promover outras ações que não incentivar a produção e o consumo do álcool.
Hoje, com o novo impulso que se espera dar a esse combustível talvez haja possibilidade de uma nova concepção de política energética, mais ampla e inclusiva, que observe em sua formulação outros fatores que não somente incentivos à indústria sucroalcooleira existente e ao seu modelo de organização. Assim, apesar dos benefícios que o aumento da exportação do álcool de cana-de-açúcar traria para a economia brasileira e das tão citadas vantagens ambientais atribuídas a substituição da gasolina pelo álcool, é preciso que se amplie o escopo da análise de forma que outros aspectos importantes sejam considerados e ele se torne uma real alternativa de Desenvolvimento Sustentável.
7 - Referências Bibliográficas
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