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An. 5. Enc. Energ. Meio Rural 2004

 

As cooperativas de eletrificação rural no novo cenário do setor elétrico

 

 

Marcelo Aparecido PelegriniI; Fernando Selles RibeiroII; Henrique Alves PazziniIII

IPesquisador do Centro de Estudos em Regulação e Qualidade de Energia do Departamento de Engenharia de Energia e Automação Elétricas da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (ENERQ-USP). Professor Doutor da Universidade Cidade de São Paulo (UNICID).Departamento de Engenharia de Energia e Automação Elétricas, Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, Avenida Professor Luciano Gualberto, travessa 3, 157 - Sala A2-35, Cidade Universitária - São Paulo - SP - 05508-900, (011) 3091-5277 / 3091-5279 / 3091-5404, macpel@pea.usp.br
IIProfessor Titular da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e da Faculdade de Engenharia de Guaratinguetá - UNESP. Pesquisador do Grupo de Energia do Departamento de Engenharia de Energia e Automação Elétricas da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (GEPEA-USP). Atualmente é o Coordenador do programa"Luz para Todos" no estado de São Paulo.Departamento de Engenharia de Energia e Automação Elétricas, Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, Avenida Professor Luciano Gualberto, travessa 3, 157 - Sala A2-35, Cidade Universitária - São Paulo - SP - 05508-900, (011) 3091-5277 / 3091-5279 / 3091-5404, fribeiro@pea.usp.br
IIIPesquisador do Grupo de Energia do Departamento de Engenharia de Energia e Automação Elétricas da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (GEPEA-USP). Professor Doutor da Escola de Engenharia da Universidade Presbiteriana Mackenzie e das Faculdades Integradas de São Paulo (FISP).Departamento de Engenharia de Energia e Automação Elétricas, Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, Avenida Professor Luciano Gualberto, travessa 3, 157 - Sala A2-35, Cidade Universitária - São Paulo - SP - 05508-900, (011) 3091-5277 / 3091-5279 / 3091-5404, pazzini@pea.usp.br

 

 


RESUMO

As cooperativas de eletrificação rural são agentes que sempre estiveram à margem do setor elétrico e que agora devem se regularizar, adaptando-se aos condicionantes do serviço público de energia elétrica decorrentes da Lei de Concessões de 1995. Este artigo faz a avaliação do aparato de regulação das atividades das cooperativas de eletrificação rural brasileiras. O foco da avaliação é o cidadão rural, o cidadão que consome energia elétrica, e o cidadão que está ainda excluído do acesso ao serviço de eletricidade. A interpretação do problema e o estudo do processo de regularização levaram à constatação da existência de uma situação de impasse. Verifica-se que a atitude do órgão regulador perante a tarefa que a lei lhe impõe cria um paradoxo em que as cooperativas são deixadas fora do alcance da regulação, com prejuízo maior para o cidadão que mora em sua área de atuação. O trabalho oferece uma proposta de alternativa de saída para esse impasse institucional, baseada na busca do equilíbrio entre os agentes.


ABSTRACT

The rural electric cooperatives are agents who have always been on the edge of the electric sector. Now, they must be regularized to the new rules of the electric energy public service established by the 1995 Concessions Law. This work provides an evaluation of the Brazilian rural electric cooperatives regulation apparatus and the regularization public policy applied in São Paulo. The evaluation focus is the rural citizen, the electric energy consumer and the citizens who have been excluded from this public service. The interpretation of the problem and the study of the regularization process has led to the evidence that the situation reached an impasse. The thesis is that the attitude of regulatory agencies create a paradox where the cooperatives are not covered by the regulation policies with damage to citizens in these areas. Particularly, given that the Brazilian citizens have won the right of electricity access, the citizen who lives in the cooperative area have no protection by State to do this right effective. This work offers an academic proposal to break this institutional impasse, based on the search of the agents' equilibrium.


 

 

1. A REGULAÇÃO DAS COOPERATIVAS: DO CÓDIGO DE ÁGUAS À CONSTITUIÇÃO DE 1988.

As cooperativas de eletrificação rural floresceram junto com o fortalecimento do Estado brasileiro. As cooperativas eram um elo entre a engrenagem estatal, técnica no discurso e política no comando, e a fina flor da dominação econômica local, marcada pela iniciativa privada agrícola.

A primeira menção que um texto legal específico do setor elétrico faz às cooperativas de eletrificação rural é o Art. 154, inciso III do Decreto 41.019/57, que regulamenta o Código de Águas, como agentes atuantes no processo de expansão dos sistemas elétricos. A menção a suas atividades, porém, viria com o Decreto 1.033, de 22/05/62, que é o primeiro marco regulatório específico para as cooperativas de eletrificação rural. Este Decreto veio realizar uma ação comum no Direito: transformar uma situação de fato em uma situação de direito, trazendo para a regulamentação do setor elétrico um agente existente, a cooperativa de eletrificação rural.

A finalidade do Decreto era permitir que as cooperativas existentes se registrassem no Ministério de Minas e Energia sob uma das duas condições (Art. 1º), permitir o requerimento para produzir energia elétrica (Art. 4º) e, mais importante, que ficassem sujeitas aos direitos e deveres impostos em lei para as duas categorias jurídicas (Art. 5º). Este Decreto traz a origem de uma contradição que perdura até hoje: a prestação de um serviço público por um agente de uso exclusivo.

Num momento em que o setor elétrico se consolidava, rumando de um modelo privado para um estatal, parece conveniente que a expansão na área rural se desse por intermédio de cooperativas. Ainda mais dentro de um contexto de incentivos internacionais e experiências bem sucedidas.

Em 1968 é emitido é o Decreto 62.655, que veio substituir o Decreto 1.033/62, definindo e limitando a atuação das cooperativas de eletrificação rural. Qual a sua motivação? Tudo leva a crer que, com a expansão do sistema de eletrificação rural por cooperativas, surgiam já os primeiros conflitos entre estes e as concessionárias. As empresas distribuidoras reclamavam de um agente que se implantava e, de certa maneira, competia por um mercado que no futuro poderia ser rentável. O Decreto possuía a intenção de delimitar, de modo mais preciso, a atuação das cooperativas. Para tanto, logo em seu Art. 1º, define com bastante precisão (até espantosa), o que é eletrificação rural:

"Art. 1º - É considerada eletrificação rural a execução de serviços de transmissão e distribuição de energia elétrica destinada a consumidores localizados em áreas fora dos perímetros urbanos e suburbanos das sedes municipais e aglomerados populacionais com mais de 2.500 habitantes, e que se dediquem a atividades ligadas diretamente à exploração agropecuária, ou a consumidores localizados naquelas arcas, dedicando-se a quaisquer tipos de atividades porém com carga ligada de até 45 kVA."

As cooperativas são tratadas no Art. 2º, de modo oblíquo, através do instrumento da permissão.

De certa forma, o conjunto formado por estes decretos define o campo de atuação das cooperativas, tutelado pelo poder público e pelas concessionárias. A intenção seria o fomento a cooperativas que, à medida que tivessem o mercado expandido, fossem absorvidas pelas concessionárias.

Os marcos normativos citados se prestaram à formação de cooperativas segundo duas visões.

Na primeira, implantada no Nordeste, as cooperativas eram criadas pelas concessionárias. Geralmente a rede de média tensão pertence às concessionárias, e as cooperativas detêm a propriedade e são responsáveis pelas redes de baixa tensão, pela medição e pelo relacionamento com o consumidor/cooperado. É um modelo que ainda vigora em concessionárias daquela região.

Na segunda visão, foram criadas cooperativas que possuíam a propriedade e a gestão de toda a rede, de média e baixa tensão. Este é o modelo que foi implantado no Sudeste e no Sul.

As cooperativas implantadas logo desenvolveram um mercado que passou a se expandir. O crescimento natural, tanto do campo como das cidades, propiciou oportunidades para que elas atendessem consumidores que o Decreto 62.655/68 não permitia.

O órgão fiscalizador era o DNAEE, autarquia federal que não possuía estrutura para efetuar esse trabalho. Na prática, eram as concessionárias distribuidoras que poderiam "executar" esse papel.

Ai vem uma nova contradição. A despeito de até terem, em raras vezes, a intenção de frear a expansão das cooperativas, elas não o fizeram, pois, como estatais, em sua maioria, não poderiam se opor a uma política incentivada pelo seu próprio controlador. Na prática, as cooperativas se expandiam conforme o mercado exigia, fazendo dos dispositivos legais letra quase morta.

Essa conivência estava longe de ser desinteressada. O mercado rural nunca foi interessante para as distribuidoras e, mesmo com programas próprios de eletrificação rural, bancados pelo Estado, a expansão das cooperativas era conveniente, enquanto não abordassem mercados mais rentáveis. Na década de 80, começaram a refluir os incentivos às cooperativas. O modelo não foi suficientemente capaz de eletrificar toda a zona rural, o Estado passou a viver com uma crise de investimentos e as concessionárias passaram a implantar diretamente seus próprios programas de eletrificação rural, mesmo porque politicamente era mais vantajoso.

 

2. A LEI 9.074/95

O status jurídico das concessões antes de 1995 era bastante confuso. Existiam contratos de concessão em vigor, outros expirados e até áreas sem concessão. Como todos agentes eram estatais, não havia preocupação em realizar este ordenamento. Entretanto, o processo de privatização das empresas exigia um status jurídico adequado. Em 1995 foi editada uma Medida Provisória (MP), estabelecendo regras para o reagrupamento e prorrogação das concessões existentes.

Nas discussões a respeito da MP, surgiu a questão das cooperativas. Como a MP tratava de questões referentes à concessão de áreas para as empresas distribuidoras, foi incorporado um artigo que definiu as regras para se compatibilizar as áreas de atuação das concessionárias e das cooperativas, bem como regularizar as cooperativas como permissionárias de distribuição de energia elétrica.

O artigo, não constante do texto original, foi fruto da atuação parlamentar da bancada cooperativista. A intenção inicial era simplesmente promover a extinção das cooperativas e a encampação de suas instalações pelas concessionárias. Para evitar essa situação, o embate político produziu o seguinte texto legal, convertido em artigo da Lei 9.074, resultante da MP convertida:

"Art. 23. Na prorrogação das atuais concessões para distribuição de energia elétrica, o poder concedente diligenciará no sentido de compatibilizar as áreas concedidas às empresas distribuidoras com as áreas de atuação de cooperativas de eletrificação rural, examinando suas situações de fato como prestadoras de serviço público, visando enquadrar as cooperativas como permissionárias de serviço público de energia elétrica.

Parágrafo único. Constatado, em processo administrativo, que a cooperativa exerce, em situação de fato ou com base em permissão anteriormente outorgada, atividade de comercialização de energia elétrica a público indistinto, localizado em sua área de atuação, é facultado ao poder concedente promover a regularização da permissão."

Tornou-se possível transformar uma área da cooperativa, uma situação de prestação de serviço público de fato, em uma situação de direito, como permissionária de energia elétrica. Movimento semelhante ao que, em 1962, havia acontecido por conta do Decreto 1.033. É claro que, agora, sob novo ordenamento jurídico, sob regras novas, adaptadas ao contexto atual.

 

3. A RESOLUÇÃO 333/99

Em dezembro de 1999, a Aneel emitiu a Resolução 333/99, disciplinando o processo de regularização das cooperativas previsto na lei 9.074. Além desse ponto, a resolução abrangeu a definição dos instrumentos da autorização e da permissão na distribuição de energia elétrica.

Assim, a resolução definiu que, a partir da análise da documentação a ser enviada pela cooperativa, e de diligências realizadas pelo poder concedente, ela poderia ser regularizada de duas maneiras:

- Como autorizada para implantação de instalações de uso privativo, onde a cooperativa continuaria com quase o mesmo status e procedimentos atuais, ou seja, com tarifas e serviços não-regulados. Esse enquadramento vale para aquelas que não atendem a público indistinto, sendo predominantemente rurais. Não é permitida a comercialização de energia elétrica, mas apenas o rateio dos custos com a compra de energia e a operação e manutenção do sistema. Também não há exclusividade de atendimento, podendo a concessionária atender consumidores na área da cooperativa. Em princípio, mantém-se os descontos na compra de energia.

- Como permissionária de serviço público: a cooperativa deve assinar um contrato de permissão, onde se submete às normas do poder concedente, sendo garantido o equilíbrio econômico-financeiro da permissão. O instrumento é semelhante ao da concessão, tendo um grau de precariedade maior, em relação aos procedimentos de extinção ou cassação da permissão. Serão enquadradas as cooperativas que atendem a público indistinto. Em princípio, uma permissionária deveria competir no mercado livre, porém as permissionárias não possuem um mercado que lhes dê escala para isso, sendo previsto a existência de mecanismos compensatórios.

Para a permissionária, é necessário a definição de uma área de atuação para fins de regularização, para a qual a cooperativa possui as prerrogativas e a obrigação de prestar o serviço de distribuição de modo exclusivo. A resolução prevê o estabelecimento de uma poligonal envolvente, em comum acordo com a(s) concessionária(s) onde a cooperativa atua. Ou seja, significa "recortar" um pedaço da área de concessão da concessionária e defini-la como área de permissão da cooperativa.

A Resolução 333/99 representou o que se imaginava como marco legal definitivo para a regularização das cooperativas. Assim iniciou-se o processo de conhecimento e formalização de sua inserção no novo modelo do setor.

Também foi, a partir daí, que realmente ficou claro para a agência as dificuldades do processo.

 

4. O PROCESSO DE REGULARIZAÇÃO

Só após a Resolução 333/99 ser emitida, iniciou-se, na prática, o processo de regularização das cooperativas de eletrificação rural.

A Abradee, no início de 2001, entrou com ação junto à Justiça Federal pedindo a anulação da Resolução 333/99. A argumentação da ação era contra os instrumentos instituídos pela resolução, notadamente contra o instrumento da autorização. A ação da Abradee teve como resultado imediato a expedição de uma liminar sustando o processo de regularização em seus atos finais, isto é, a Aneel poderia prosseguir com os trâmites administrativos, mas não expedir os atos finais.

A Aneel pediu a cassação da liminar, em junho de 2001, que não foi concedida.

Com a ação judicial proposta pela Abradee havia se criado um impasse: apesar da Aneel estar prosseguindo com o processo, analisando a documentação e propondo alternativas para a negociação das áreas, o ato final não podia ser expedido e as concessionárias se negavam a continuar com a negociação. No segundo semestre de 2001 foi realizado um processo de mediação, que resultou na Resolução 012/02. As principais modificações em relação à Resolução 333/99 foram:

-Trata-se somente do processo de regularização das cooperativas, remetendo para outra ocasião a regulamentação dos instrumentos da permissão e autorização de modo geral.

- Para as cooperativas permissionárias: abertura de novos prazos para envio de documentos; manutenção dos procedimentos de negociação e definição de áreas de atuação; detalhamento de alguns pontos em que havia dúvidas de interpretação; previsão de novo regulamento estabelecendo as condições de compra e venda de energia.

- Para as cooperativas autorizadas: restrição na atuação (a autorizada só pode atender consumidores rurais e no caso de industriais, somente até 112,5 kVA) e enquadramento; impossibilidade de atendimento às áreas urbanas; expansões condicionadas à aprovação da concessionária ou da Aneel.

As mudanças foram extremamente positivas. No status anterior, o uso do instrumento de autorização indistintamente poderia criar grandes confusões em uma área em que o monopólio natural é claro, que é o serviço de fio de transporte e distribuição de energia. Poder-se-iam criar situações em que, numa determinada rede, alguns trechos fossem operados e mantidos por particulares, enquanto outros trechos seriam de responsabilidade da concessionária.

Na atual configuração, inexiste a figura do consumidor autorizado e, no caso das cooperativas autorizadas, o seu raio de ação fica restrito ao que era originalmente, ou seja, os termos do Decreto 62.655/68. Eventuais expansões que extrapolem os limites ditados por aquele decreto só com a concordância da concessionária local. Assim, busca-se evitar que no futuro as autorizadas venham a atender público indistinto e tenha-se a repetição dos problemas encontrados hoje.

Com a publicação da Resolução 012/02 e revogação da Resolução 333/99, a Abradee retirou a ação judicial e pôde-se então retomar o andamento do processo de regularização.

 

5. AS COOPERATIVAS NA SOMBRA

No fim de 2002 era de se esperar que em poucos meses as cooperativas se regularizariam. Porém, isso não ocorreu. Até meados de 2003, apenas duas cooperativas haviam sido regularizadas como autorizadas. Permanecia um impasse importante: a regulação econômica das cooperativas.

As cooperativas de eletrificação rural, que antes de se regularizar são apenas cooperativas, mantém-se equilibradas economicamente através de um desconto de 50%1 na compra de energia e demanda e com a isenção de pagamento de multas por ultrapassagem de demanda. O desconto é histórico, já tendo sido maior, e necessário, pois, apesar de ser constituído por público indistinto, o mercado das cooperativas possui uma parcela significativa de consumidores pertencentes à classe rural, além de ser pequeno em relação ao das concessionárias. Por esse motivo, além de atender a público pobre, não tem escala em suas atividades, possuindo um custo maior por MWh vendido ou por consumidor atendido do que uma concessionária. Mesmo com o desconto, algumas cooperativas têm preços superiores aos das concessionárias, gerando grande insatisfação entre os cooperados.

Esse mecanismo de desconto não foi, em muitos casos, suficiente para produzir preços adequados aos consumidores, e nem levou em consideração os diferentes estágios de desenvolvimento do mercado das cooperativas de eletrificação rural. Foi uma política cômoda, que se impôs ao longo do tempo e, no momento da regularização, tem que ser revista. Mas o que colocar no lugar?

Numa concessão de serviços públicos, dois princípios básicos devem ser seguidos:

A regulação procura equilibrar esses dois conceitos, através da fixação de tarifas aos usuários do serviço de energia elétrica que preserve tanto o lado da concessionária quanto o do consumidor.

No caso das cooperativas, se impostas as mesmas condições da concessionária (compra de energia sem desconto e encargos setoriais), corre-se o risco de duas coisas: ou a tarifa será muito alta ou não haverá equilíbrio econômico-financeiro. A conta não fecha, e a solução é apenas uma: subsídio.

Nas concessionárias de distribuição, a classe de consumo rural já dispõe de descontos nas suas tarifas. O desconto oferecido hoje às cooperativas já é uma forma de subsídio, pago pelos consumidores da concessionária onde a cooperativa está conectada.

Na Resolução 333/99 a Aneel definiu a necessidade de mecanismos compensatórios para as cooperativas, impondo a si um prazo para definição desses mecanismos. A Resolução 012/02 condicionou a definição dos mecanismos compensatórios a uma autorização legal, que veio com a Lei 10.438/02. Entretanto, isso não ocorreu.

 

6. UM IMPASSE INSTITUCIONAL

Durante o ano de 2003, ficou explícito um conflito dentro da Aneel. A área de regulação econômica entende que o subsídio para as cooperativas deve ser explicitado em forma de lei, e formatado para que todos os consumidores do setor arquem com este encargo. Até a promulgação da lei, não é possível definir a tarifa de suprimento das cooperativas e, em conseqüência, não é possível emitir os atos de regularização. Já os condutores do processo de regularização entendem que é urgente e necessária a imediata conclusão da regularização das cooperativas, sem a qual há o risco de se perder parte do processo e acirrar conflitos.

As cooperativas só admitem ser regularizadas se o órgão regulador definir as tarifas de suprimento.

A partir dessas constatações, fica clara a existência de um impasse institucional: o órgão regulador possuía duas visões diferentes sobre a conclusão do processo, vivendo uma crise de identidade.

 

7. O BRASIL REGULADO, O BRASIL NÃO-REGULADO

A incorporação das cooperativas de eletrificação rural ao setor elétrico é uma política pública discutida desde 1995. Nesse período, o processo viveu várias crises, tendo superado quase todas. Hoje, vive-se outro impasse. No entanto, os avanços obtidos até o momento tornam particularmente grave o atual, pelas conseqüências que o atraso traz.

Em São Paulo, após um grande esforço da CSPE/Aneel, cooperativas e concessionárias, foi lograda a demarcação dos limites da concessionária. Esta demarcação tem servido de base para que a agência decida disputas por consumidores, fato bastante freqüente.

A demarcação, sem valor legal, tem valor de fato, pois foi informada à cooperativa e às concessionárias, foi anexada ao processo administrativo e é utilizada na resolução de conflitos.

A demarcação cria a área da cooperativa. Quem demarcou o limite foi o regulador. Logo, quem criou a área da cooperativa foi a ação do regulador.

A cooperativa foi reconhecida como cooperativa de eletrificação rural e não como permissionária ou autorizada. Ela não é permissionária, ela é só cooperativa.

É a situação atual. O ato oficioso do regulador cria uma situação de haver áreas de serviço público de eletricidade não reguladas. Cria-se um monopólio desregulado, onde um agente privado presta serviço público sem nenhuma norma que o regule, com a anuência do órgão regulador.

Formalmente, é uma situação provisória, esperando que aconteça uma suposta regularização rápida das cooperativas. No entanto, a persistência do atual impasse traz vantagens à cooperativa. Todavia, não interessa ao consumidor, nem à concessionária, nem ao órgão regulador.

Tampouco interessa ao cidadão que ainda não tem luz.

Hoje a futura permissionária com área demarcada vive uma situação bastante cômoda. Pode explorar um serviço de forma monopolista, sem nenhuma contrapartida e sem a ameaça da concessionária.

Não se afirma que as cooperativas de eletrificação rural vão praticar abusos. No entanto, é um risco muito grande para o serviço público a persistência desse quadro.

Situação ainda mais crítica vive o cidadão rural sem luz. Na concessionária, está em curso o processo de universalização, pelo qual cada futuro consumidor terá acesso à eletricidade sem custos. Isso não vale para a cooperativa, na situação de hoje. O cidadão sem luz ainda tem que arcar com os custos de sua ligação e não tem perspectivas de prazo para ser atendido, pois a Resolução Aneel 223/03 exclui as áreas das cooperativas ainda não regularizadas do processo de universalização.

Situações assim podem criar tensão para as próprias cooperativas e conflitos, com conseqüente insatisfação dos consumidores e sobrecarga para o órgão regulador.

A persistência do impasse cria dois Brasis diferentes. O Brasil regulado, onde existe, depois de anos, até perspectiva de acesso universal ao serviço, e o Brasil que corre o risco de ficar no escuro.

A superação do impasse, com a imediata regularização das cooperativas de eletrificação rural, interessa, agora mais do que nunca, ao cidadão rural.

 

8. PROPOSTA DE AÇÃO

Qualquer proposta ter como objetivo central à regulamentação das cooperativas no menor tempo possível. Deve-se também buscar o equilíbrio, tanto entre os agentes, quanto dentro da agência.

Dado que o impasse é na questão da fixação do subsídio nas tarifas de suprimento, a sua superação consiste em fazer essa fixação, com alguns condicionantes.

Há três formas possíveis de se dar um subsídio, considerando quem acaba pagando por ele:

  1. Aquele que é pago pelo contribuinte: nesse caso os recursos vêm do Tesouro Nacional. Consideramos essa forma, além de impraticável, injusta. É impraticável porque o Estado tem feito um grande esforço de ajuste fiscal. Requerer subsídios do Tesouro para as cooperativas não é razoável. É injusta porque o setor elétrico gera recursos suficientes até para subsidiar indústrias de alumínio. Porque não para as cooperativas de eletrificação rural como, aliás, já é feito hoje?
  2. Aquele que é pago por todos os consumidores de energia: nesse caso, cada consumidor paga uma parcela que vai para os encargos setoriais, contas ou fundos. Pode-se criar uma nova contribuição ou deslocar recursos das já existentes. Para isso, é necessária uma lei autorizativa.
  3. Aquele que é pago pelos consumidores de uma concessionária específica: nesse caso, algumas classes de consumidores pagam a mais, para subsidiar outras classes. Isto é o que ocorre hoje nas concessionárias a que as cooperativas de eletrificação rural estão conectadas.

O primeiro passo para uma solução é definir o tipo de subsídio. Embora se considere que o mais justo seja o segundo tipo, repartindo-se o ônus com todos os consumidores, como a regulação econômica deseja, o momento exige que se use o terceiro tipo, com a seguinte argumentação:

- Os dispositivos legais existentes são suficientes para exercer imediatamente essa opção.

- As pequenas concessionárias, equiparadas às permissionárias na Lei 10.438 e no Decreto 4.541/02, tiveram sua regulamentação baseada nesse modelo.

- É o que está sendo utilizado atualmente. Persistir com ele gera uma situação neutra, sem grandes modificações na estrutura existente. Provavelmente irá gerar protestos das concessionárias, que têm a expectativa de se "livrar" desse consumidor que hoje dá prejuízo.

Decidido o tipo de subsídio, deve-se definir o montante. O Decreto 4.541/02 exige que os descontos na tarifa de suprimento devem levar em conta as condições do mercado atendido e sua fixação de modo decrescente, para estimular a eficiência.

A definição do desconto exige o conhecimento profundo de toda a estrutura de mercado e de custos de todas as cooperativas permissionárias, considerando sua atuação num ambiente regulado. É forçoso reconhecer que isto não é possível imediatamente, pois os dados não estão completos.

O que se propõe é a fixação de um percentual de desconto inicial, provisório e estimado, baseado nos dados disponíveis, para cada cooperativa. Nas cooperativas onde os dados fossem insuficientes poder-se-ia manter o desconto atual. Para aumentar a agilidade, pode-se optar por manter o atual desconto para todas as cooperativas.

Esse desconto vigoraria durante um período de transição da ordem de dois a três anos. Durante esse período cada permissionária iria se adaptar tecnicamente e contabilmente às normas do setor, sujeitando-se a fiscalizações. Ao mesmo tempo, participariam do processo de universalização.

Passado o período de transição, poderia ser definida a estrutura tarifária definitiva da permissionária, os descontos nas tarifas de suprimento e seu cronograma de redução. O procedimento de fixação de tarifas poderia ser semelhante ao atual das concessionárias, usando o modelo de empresa de referência. Simplificações poderiam ser propostas, de modo a diminuir o ônus da regulação.

Esta solução poderia requerer alguma modificação no Decreto 4.541/02, exigindo a participação do MME. Essa participação deveria existir e seria bem-vinda. O período de transição e o processo de universalização iria demandar um aporte de recursos nas permissionárias. Uma participação do MME permitiria uma negociação do financiamento desses recursos via BNDES ou Eletrobrás (RGR). A participação do MME também reduziria a resistência das cooperativas.

Esta proposta prevê que haja uma transição na absorção das cooperativas permissionárias pelo setor, prevê poder à Aneel para interferir diretamente e "enquadrá-las" no modelo de serviço público, e, também, que no período de transição, outras soluções sejam negociadas.

A proposta, com algumas modificações, está sendo implementada atualmente pela Aneel. Optou-se por realizar a regularização mantendo a atual situação econômico-financeira das cooperativas a serem regularizada como permissionárias. As tarifas praticadas serão semelhantes às atuais tarifas das concessionárias vizinhas. O ajuste se dará nas tarifas de compra de energia, que podem sofrer desconto maior ou menor do que é hoje, a depender de cada caso. Esta solução deve ser implementada no prazo estabelecido pelo Governo Federal, que fixa a data de 31 de setembro de 2004 para regularização de todas as cooperativas de eletrificação rural no Brasil.

 

9. CONCLUSÃO

A principal conclusão deste trabalho é que o cidadão rural da área das cooperativas está sendo vítima de um absurdo criado pela atitude da Agência Nacional de Energia Elétrica. A Constituição confere ao Estado as prerrogativas do serviço público de eletricidade. A Lei de Concessões determina que a cooperativa, para ser permissionária, depende de uma iniciativa regulamentadora da Aneel, que a protela. Então a cooperativa está atualmente livre da classificação de permissionária, e livre do alcance da sanção que a Lei reserva a concessionárias, permissionárias e autorizados do serviço de eletricidade.

Situação paradoxal em que a área demarcada está fora da ação da regulação pública. Livre justamente no tempo em que mais se ouve falar de regulação e suas pesadas multas, meio pelo qual o Estado exerce a coerção necessária para o equilíbrio entre os agentes econômicos do setor.

Há perspectiva real de que este paradoxo seja superado em prazo bastante curto. Caso isto ocorra, pode-se prognosticar que os instrumentos criados para a regularização das cooperativas de eletrificação rural têm condições de colocar em ordem o setor e definir claramente as obrigações dos prestadores de serviço público.

Hoje, o governo declara que vai fazer a universalização do atendimento. É sua prioridade números 1, 2 e 3. Nesse contexto, a situação das cooperativas de eletrificação rural será inevitavelmente revista, por força do atendimento do direito de cada um de se ter acesso ao serviço de energia elétrica.

Incorporar o cidadão da área da cooperativa ao serviço público é também uma ação de universalização.

 

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1 Exceto no Rio Grande do Sul. Nesse estado, existem três faixas de desconto tarifário, de 62%, 70% e 80%.