An. 5. Enc. Energ. Meio Rural 2004
MDL como instrumento para o desenvolvimento sustentável?
Kamyla Borges da CunhaI; Arnaldo Cesar Silva WalterII; Fabiana Karla de Oliveira VarellaIII; Cleci Schalemberger StrebIV
IMestranda do Curso de Pós-Graduação em Planejamento de Sistemas Energéticos Faculdade de Engenharia Mecânica - Universidade Estadual de Campinas kamyla@fem.unicamp.br
IIProf. Dr. do Curso de Pós-Graduação em Planejamento de Sistemas Energéticos Faculdade de Engenharia Mecânica - Universidade Estadual de Campinas
IIIMestranda do Curso de Planejamento de Sistemas Energéticos Faculdade de Engenharia Mecânica - Universidade Estadual de Campinas
IVDoutoranda do Curso de Planejamento de Sistemas Energéticos Faculdade de Engenharia Mecânica - Universidade Estadual de Campinas
RESUMO
As mudanças climáticas, decorrentes do agravamento do efeito estufa, com causas relacionadas também à atividade humana, principalmente ao uso de combustíveis fósseis, têm-se apresentado como desafio aos dirigentes dos países e às organizações internacionais à busca de alternativas para enfrentar o problema. A instituição de um regime legal internacional, possível graças à assinatura e à implementação da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima e seu Protocolo de Quioto tem possibilitado vislumbrar-se alguns instrumentos, como o MDL. No presente trabalho, objetiva-se analisar os aspectos sociais e econômicos responsáveis pelo arrefecimento das mudanças climáticas, bem como os instrumentos, criados pelo homem, para enfrentar o problema, em especial, os Mecanismos de Desenvolvimento Limpo. Com isso, procura-se demonstrar, de forma sistemática, a conexão e a interdependência existentes entre esse instrumento e a busca do desenvolvimento sustentável.
Palavras chave: Mecanismos de desenvolvimento limpo, mudanças climáticas, Protocolo de Quioto e desenvolvimento sustentável.
ABSTRACT
The intensification of the greenhouse effect, caused mainly by the anthropogenic activities, such as the intensive use of fossil fuels, reveals itself as a challenge to governments and international organizations. The institution of an international legal framework, resulted from the implementation of the United Nations Framework Convention on Climate Change and the Kyoto Protocol, is allowing the development of some mitigation instruments, such as the clean development mechanism (CDM). The article's purpose is to assess the social and economic aspects that are leading to the climate change process and to analyze the instruments foreseen in the international legal system to face this global concern, in special, the CDM as a tool to achieve sustainable development practices. In this way, the authors aims to demonstrate the connection and interdependence between those instruments and the sustainable development.
1 Introdução
Caracterizadas pelo agravamento do efeito estufa e conseqüente aquecimento global, as mudanças climáticas têm-se tornado importante preocupação em todo mundo. Suas causas, diretamente relacionadas à atividade humana, principalmente ao uso de combustíveis fósseis, têm desafiado os dirigentes dos países e as organizações internacionais a encontrar caminhos para enfrentar o problema. Como previsto pela comunidade científica mundial, diversos fenômenos climáticos podem ocorrer caso se mantenham os padrões atuais de emissões de gases precursores do efeito estufa. Entre estes, secas em várias regiões do mundo, aumento do nível do mar e intensificação de eventos climáticos extremos.
A instituição de um regime legal internacional, possível graças à assinatura e à implementação da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima e seu Protocolo de Quioto, tem possibilitado vislumbrar-se alguns instrumentos, como o MDL.
No presente trabalho, objetiva-se analisar os aspectos sociais e econômicos responsáveis pelo agravamento das mudanças climáticas, bem como os instrumentos, criados pelo homem, para enfrentar o problema, em especial, os Mecanismos de Desenvolvimento Limpo (MDL). Com isso, procura-se demonstrar, de forma sistemática, a conexão e a interdependência existentes entre esse instrumento e a busca do desenvolvimento sustentável.
2 Mudança do Clima
A vida no planeta Terra, tal qual a conhecemos, tornou-se possível apenas em função dos mecanismos de regulação do clima, como o efeito estufa, ou seja, a retenção da radiação solar provocada por certos gases, notadamente o dióxido de carbono, ozônio, metano, óxido nitroso, e halocarbonos (FBMC, 2002).Contudo, as emissões crescentes desses gases, principalmente do dióxido de carbono, têm contribuído para a intensificação do efeito estufa, provocando mudanças no clima.
Recentes pesquisas realizadas por especialistas no mundo inteiro, em coro unânime, apontam como principal fator do agravamento das alterações climáticas a atividade humana. Com efeito, desde a explosão da Revolução Industrial, mudanças drásticas no modo de vida humano impingiram crescentes pressões sobre o ambiente natural, modificando desde a lida com a terra até a formas de obtenção de energia.
2.1 Revolução industrial e incremento do consumo de combustíveis fósseis
A evolução humana vincula-se diretamente à sua relação com as formas de obtenção de energia. Do domínio do fogo até a descoberta do potencial combustível do hidrogênio, todas as fontes de energia estão na matriz das inovações tecnológicas, sociais e econômicas (CONTI, 1986). Até meados do século XVIII, essa dependência dava-se na base de relações naturais e pouco mecanizadas. O cotidiano das pessoas era marcado pelas fases da natureza: dia e a noite, as estações do ano, a época de colheita e a do plantio. Até então, a principal forma de obtenção de energia dependia diretamente do sol. A interação com a natureza permitia a manutenção dos fluxos naturais de energia e matéria. O que a natureza provinha, ela mesma reciclava e novamente disponibilizava a seus habitantes. Com a Revolução Agrícola, o homem ainda se via como parte de um ciclo natural, do qual era impossível desvincular-se.
Contudo, transformação radical no modo de vida humano estava por vir. O desenvolvimento da máquina a vapor e o início da utilização em escala do carvão mineral inauguraram a Revolução Industrial e, com ela, a "era dos combustíveis fósseis". A Revolução Industrial, ao impor na sociedade ocidental uma modificação radical das relações sociais, econômicas e políticas, incitou, no homem, uma outra visão sobre a natureza, retirando-lhe a idéia de parte do mundo natural. O homem industrial saiu do meio agrícola e inchou as cidades, esqueceu-se dos ciclos naturais da Terra (dia-noite, estações do ano) e criou sua própria rotina, modificando sua relação com a natureza. Ele já não era mais parte dela, mas a ela precisava conhecer e dominar.
Neste contexto, o carvão mineral e, posteriormente também o petróleo e seus derivados, passaram a representar, cada vez mais, a principal forma de obtenção de energia. BROWN et. al. (1999) estimam que, em 1997, utiliza-se, por dia, mais de 72 milhões de barris de petróleo. Além disso, a necessidade de fazer frente às inovações tecnológicas, impingiu, na sociedade, o consumo crescente de bens e serviços, notadamente artificiais. "A mais recente evolução história do homem desenvolveu-se em sentido inverso ao movimento da vida, quando inventou a fotossíntese. A vida deixou de "viver dos seus recursos" e passou a fazer sua reciclagem e renovação à medida que eram consumidos; com a revolução industrial, o homem passou de uma economia fundada na reciclagem (a economia agrícola) para uma economia baseada nos recursos não-renováveis" (CONTI, 1986).
Num mundo cada vez mais mecanizado, a natureza foi perdendo sua função de principal provedora das necessidades humanas. Mesmo a noção de necessidades foi tomando formas diversas, mais ligadas à idéia de consumo de bens materiais descartáveis (ASSIS, 1999). Por detrás dessa nova realidade, movimentava-se, a todo vapor, uma nova forma de capitalismo. O capitalismo industrial, mais do que de inovações tecnológicas, alimentava-se da crescente exclusão social, criando uma sociedade injusta e dividida.
As transformações sociais, econômicas, políticas e ambientais consolidadas com a Revolução Industrial, acabaram por deflagrar, na atualidade, uma sociedade injusta, excludente e insustentável. Sob o paradigma do crescimento, a sociedade contemporânea esqueceu-se de que faz parte de ciclos e leis naturais, dos quais jamais poderá escapar, por mais que a tecnologia avance. Contudo, a natureza já começa a responder à amnésia humana, dando sinais concretos de desequilíbrio. A emergência de problemas ambientais globais, como o buraco na camada de ozônio, o lixo nuclear, a escassez de água potável, a desertificação, e, principalmente, o efeito estufa, têm desafiado a comunidade científica, as sociedades e, principalmente, os governantes.
Com efeito, pela primeira vez na história da humanidade, surge uma ameaça concreta à vida. O aquecimento global, ao desafiar a capacidade adaptativa do homem (e de todas os seres vivos) ao clima, está a impor uma imediata reflexão sobre o modo de vida contemporâneo. As evidências do aquecimento global mostram-se irrefutáveis. A temperatura global aumentou em média 0,2 a 0,6ºC no século XX, sendo essa elevação mais intensa nos continentes do que nos oceanos. No Hemisfério Norte, a década de 90 foi a mais quente nos últimos 1000 anos. Ainda no Hemisfério Norte, a precipitação de chuvas aumentou em torno de 5 a 10%, no século XX, enquanto decresceu em outras regiões, como no Mediterrâneo e na África. Ao mesmo tempo, o nível médio dos mares elevou-se de 10 a 20 cm (IPCC, 2001).
Como já mencionado, embora o clima mundial tenha sempre apresentado variações naturais, grande parte dos cientistas acredita que o aumento das concentrações dos gases precursores de efeito estufa deve-se à atividade humana, notadamente o uso intensivo de combustíveis fósseis para obtenção de energia. GOLDEMBERG (2001) estima que a contribuição global para o "efeito estufa" da produção de energia e de seu uso é de 57%. DUNN (2001) atesta que, "desde 1751, aurora da Revolução Industrial e da queima em grande escala de combustíveis fósseis baseados no carbono, mais de 270 bilhões de toneladas de carbono foram adicionadas ao reservatório atmosférico, através da queima de combustíveis fósseis". Hoje, as emissões anuais de carbono totalizam pouco mais de 6,3 bilhões de toneladas. A agricultura, o desmatamento e a mudança nos padrões de uso da terra também contribuem para o aumento das emissões dos gases precursores de efeito estufa, mas em menor escala.
O aquecimento da Terra pode alterar o equilíbrio nas temperaturas e precipitações, causando variações climáticas, como mudanças globais da umidade, aumento do nível do mar, ocorrência e intensificação de eventos climáticos extremos, como secas em algumas regiões (IPCC, 1997). A mudança das condições climáticas poderá ocorrer mais rapidamente do que a capacidade de adaptação de muitos ecossistemas, acarretando distúrbios no equilíbrio, e, conseqüentemente, até a extinção de espécies vegetais e animais. Também poderá exacerbar os períodos de seca, particularmente nas áreas mais áridas do planeta. A elevação do nível do mar poderá atingir a estrutura das cidades litorâneas, provocando problemas de ocupação do solo e de suprimento de água doce. No campo, as mudanças climáticas poderão acarretar o aumento de produtividade em algumas regiões e tipos de plantações, e, por outro lado, o aumento de pragas e aridez em outras regiões (IPCC, 1997). Os problemas que poderão advir caso essas previsões se concretizem indicam um quadro econômico-social assustador. Em primeiro lugar, estima-se que as regiões mais atingidas poderão ser os países pobres, já imensamente afetados pela miséria, fome e desigualdade. Ademais, os custos de remediação, mitigação e adaptação às mudanças climáticas são incalculáveis (ASSUNÇÃO e ZHANG, 2002).
2.2 Consciência Sobre as Questões Ambientais
As constantes descobertas científicas sobre os efeitos do aquecimento global na sociedade humana e na natureza, em particular, e todos os demais sinais de esgotamento do equilíbrio da Terra, em geral, têm fomentado a tomada de uma nova consciência e um novo paradigma para a sociedade.
O marco inicial a formalizar o início da preocupação com as questões ambientais, foi, sem dúvida, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, ocorrida na cidade de Estocolmo em 1972. Para SOARES (2001), a Declaração de Estocolmo, resultado daquela Conferência, exerceu o papel de verdadeiro guia e parâmetro na definição dos princípios mínimos que devem nortear as ações domésticas de cada país no enfrentamento dos problemas ambientais. Com efeito, essa Declaração revelou-se o primeiro texto internacional que se propunha a delinear instrumentos capazes de modificar o comportamento humano em relação ao ambiente. Os princípios nela previstos, tais como a cooperação internacional, reparação e prevenção, tiveram o mérito de incutir uma nova abordagem no trato com as questões ambientais. No entanto, o ambiente ainda era visto de forma fragmentada. Essa visão só veio a mudar-se 20 anos depois, com a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, ocorrida na cidade do Rio de Janeiro (ECO/92).
Acolhendo a idéia de desenvolvimento sustentável, criada pela Comissão Bruntland, a Declaração do Rio de Janeiro, documento resultante da Conferência, representou um avanço notável. Se antes o ambiente era visto como algo exterior à atividade humana, agora já havia o reconhecimento da intrínseca relação existente entre a atividade econômica mundial, o sistema capitalista de produção e a deterioração ambiental (SOARES, 2001). A inserção do tema "meio ambiente" nos foros econômicos, a partir da ECO/92, tornou-se obrigatória. Prova disso foi a aprovação, também na Conferência Internacional ocorrida no Rio de Janeiro, em 1992, da Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas (CQMC).
2.3 Convenção Quadro sobre Mudanças Climáticas e Protocolo de Quioto
Resultado de vários encontros governamentais, de ONGs e organismos internacionais (como a Organização Mundial do Clima), a Convenção Quadro sobre Mudanças Climáticas (CQMC) entrou em vigor com a adesão de mais de 150 Estados. Esta Convenção trouxe como fundamento a idéia de que a atmosfera é patrimônio da humanidade e, por isso, seu equilíbrio deve ser preservado por todos (BRICEÑO e SANCHO, 1995). Neste sentido, a CQMC instituiu um regime jurídico internacional que visa à estabilização das concentrações de gases precursores de efeito estufa na atmosfera de forma a impedir uma interferência antrópica perigosa no sistema climático (FBMC, 2002).
O objetivo final da CQMC é alcançar a estabilização das concentrações de gases precursores de efeito estufa na atmosfera num nível que impeça uma interferência antrópica perigosa no sistema climático. Esse objetivo, por sua vez, visa a um outro fim, qual seja, permitir a adaptação dos ecossistemas e o desenvolvimento sustentável (SÃO PAULO, 1997). No contexto da Convenção, a inserção do desenvolvimento sustentável como objetivo principal indica que a proteção do sistema climático deve ser realizada mediante políticas e medidas com abordagem integrada, sob vários aspectos: em benefício das futuras gerações, nas ações de efeitos sócio-econômicos e nos programas de desenvolvimento (FRANGETTO e GAZANI, 2002).
A CQMC, por tratar-se de uma convenção do tipo "quadro", impingiu a necessidade de constantes complementações por meio de outros documentos jurídicos internacionais, elaborados estritamente dentro de seus limites. Neste sentido, o mais importante texto jurídico internacional, criado no âmbito da CQMC, foi o Protocolo de Quioto. Este tratado foi o primeiro instrumento jurídico a efetivamente prever medidas de redução das emissões de gases causadores do efeito estufa. Assim, os Estados-partes desenvolvidos, discriminados no Anexo B do Protocolo, comprometeram-se a diminuir a emissão dos seis principais gases causadores do efeito estufa (CO2, CH4, N2O, HFCs, PFCs, SF6) em 5% em relação aos níveis de 1990 no período de compromisso de 2008 a 2012.
Essa obrigação assumida no Protocolo rendeu sérias discussões e a dissidência do principal responsável pelas emissões - os EUA. Para este país e outros Estados, que até hoje se negam a ratificar o Protocolo, a meta quantitativa estabelecida no texto internacional mostra-se inaplicável e, por ser geral a todos os países insertos no Anexo B, ignora a realidade e o contexto de cada um dos Estados. Outra crítica tecida por aquele país diz respeito ao fato de que o Protocolo excluiu do compromisso de redução países como Brasil, China e Índia, cujas emissões, a médio e longo prazo, tendem a superar as de muitos países desenvolvidos. Este questionamento liga-se à crítica ao sistema de avaliação histórica das emissões, base do princípio da responsabilidade comum, mas diferenciada (FRENCH, 1998). A negativa de ratificação do Protocolo por parte dos EUA (e outros países, como Austrália) impediu, até o momento, que o tratado entre em vigor. Isso porque, para que possa plenamente viger, o Protocolo precisa ter a ratificação de pelo menos 55 Partes da CQMC, cujas emissões somadas devem contabilizar, no mínimo, 55% das emissões totais de carbono emitidas em 1990 (artigo 25). A esperança de que o texto internacional possa entrar em vigor o quanto antes reside na promessa da Rússia em ratificá-lo.
Não obstante enfrentar obstáculos políticos, o Protocolo ainda representa um marco no trato das questões climáticas, principalmente porque previu, mais que metas bem definidas de redução de emissões, mecanismos de implementação, como o mercado de carbono, as joint implementations e o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo. Os dois primeiros destinam-se apenas aos países desenvolvidos e o último tem como escopo a participação dos países em desenvolvimento no enfrentamento da mudança do clima.
2.4 Mecanismo de Desenvolvimento Limpo
Previsto no artigo 12 do Protocolo de Quioto, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) eleva-se como principal instrumento de participação dos países em desenvolvimento no trato da questão das mudanças climáticas. Por meio dele, países incluídos no Anexo B do Protocolo, ou empresas nesses sediadas, podem investir em projetos de redução ou retenção (seqüestro) de emissões de carbono em países em desenvolvimento. Seu propósito, assim, é "prestar assistência financeira às Partes do não Anexo I da CQMC para que viabilizem o desenvolvimento sustentável através da implementação de projetos e atividades e, por outro lado, prestar assistência às Partes do Anexo B do Protocolo para que cumpram seus compromissos quantificados de limitação e redução de emissões de gases precursores do efeito estufa" (LOPES, 2002). Isso porquê, a partir dos projetos desenvolvidos, poder-se-á emitir reduções certificadas de emissão (RCE), que poderão ser usados pelos países desenvolvidos seja para contabilizar as quantidades de redução assumidas, seja para comercializar tais créditos com outros países, ou até mesmo em Bolsas de Valores.
Essas transações de RCE fazem parte de um novo mercado, chamado mercado de carbono. Contudo, esse mercado ainda não se encontra plenamente em operação, pois ainda não se tornou possível a entrada em vigor do Protocolo de Quioto e os instrumentos nele insertos, inclusive os Mecanismos de Desenvolvimento Limpo (ROCHA, 2003).
2.5 Sistema jurídico da CQMC: modelo de mercado
Longe de representar uma nova proposta de enfrentamento do problema, toda a sistemática jurídica criada pela CQMC denota a escolha de instrumentos oriundos do sistema capitalista. A idéia de comércio de certificados de redução de carbono, claramente, mostra a permanência de uma visão de mercado. Dessa forma, o controle das emissões de gases precursores do efeito estufa foi colocado nas mãos da dinâmica dos jogos de mercado.
Com o mercado de carbono, cria-se uma espécie de "permissão para poluir", mesmo que dentro dos limites traçados pela CQMC e pelo Protocolo de Quioto. Assim, no intuito de preservar o seu sistema produtivo interno, os países desenvolvidos podem lançar mão dessas "licenças". A contrapartida - promoção de ações sustentáveis nos países em desenvolvimento e também internamente - ganha relevância meramente instrumental e secundária. Nas palavras de HENDERSON (1996), "os mercados são meros sistemas abertos com recursos abundantes que podem ser usados individual ou competitivamente, enquanto que os bens comuns são sistemas fechados onde os recursos, tais como o ar, os oceanos, as órbitas dos satélites e o espectro eletromagnético da Terra, são usados indivisivelmente. Não obstante, os manuais econômicos só reconhecem esses bens comuns como administrados racionalmente se foram possuídos por alguém como "propriedade comum". Desse modo, os economistas contam com a posse privada e com esquemas de direitos de propriedade, e fazem lobbies por regulamentos, impostos e subsídios baseados no mercado, ou "licenças para poluir" comercializáveis. Mas as questões de mercado versus bens comuns e seus regulamentos autorizadores ainda dizem respeito á responsabilidade e ao acesso democrático a ativos públicos e serviços essenciais."
Com efeito, o MDL surge, num tal contexto, como um instrumento, proporcionado aos países desenvolvidos, para atingirem suas metas de redução sem onerar seu modo de produção. Ao contrário do que efetivamente haveria de se vislumbrar, o sistema jurídico criado pela CQMC prescinde da reflexão direta e fundamental sobre o próprio modelo de produção existente. Pode-se dizer, assim, que não houve mudança do paradigma de crescimento, mas sua confirmação.
Por mais que esse sistema preveja o fomento a atividades de desenvolvimento sustentável nos países em desenvolvimento, a questão crucial de toda problemática do efeito estufa não foi enfrentada. Sabe-se que o mercado é regrado por normas econômicas, baseadas fundamentalmente na otimização dos benefícios e minimização dos custos. Sob um tal aspecto, o mercado de carbono corre o sério risco de transformar-se em mais um espaço onde se privilegiará a aquisição de Reduções Certificadas de Emissões (RCEs) mais baratas, o que nem sempre significará RCEs qualitativamente mais relevantes, isto é, em termos de cumprimento efetivo do objetivo de alcance do desenvolvimento sustentável. Para MOTTA et. al. (2002), a análise econômica dos projetos, baseada no ponto de vista do investidor e da lucratividade, tenderá a ser privilegiada em detrimento dos aspectos qualitativos, tais como o incremento de bem-estar social da comunidade atingida. Para esses autores, o tema do seqüestro/redução das emissões de carbono hoje versus amanhã somente entrará nas decisões dos investidores se afetar a dinâmica de otimização ou for imposta externamente pela regulamentação do Protocolo.
Se por um lado, o mercado representa a possibilidade de assimilação, pelas forças produtivas, das novas regras do jogo, permitindo o alcance de imediatos resultados concretos, por outro, coloca em risco a idoneidade dos objetivos elencados na CQMC, notadamente a consecução do desenvolvimento sustentável.
3 MDL e Desenvolvimento Sustentável
Da leitura sistemática da Convenção Quadro sobre Mudanças Climáticas e do Protocolo de Quioto, percebe-se que o objetivo principal a ser alcançado, além da estabilização da mudança do clima, é a consecução do desenvolvimento sustentável. Neste contexto, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, ao prever a transferência de investimentos e tecnologia de países desenvolvidos para países em desenvolvimento abre a perspectiva de concretização daquele objetivo. Não é à toa que para um projeto ser elegível deve necessariamente demonstrar sua conformação ao critério do desenvolvimento sustentável.
Mas como aferir esse critério? Como determinar o que seja sustentabilidade de um projeto de MDL? Esta indagação perpassa pela análise do conceito de desenvolvimento sustentável e chega a outra questão, em que medida os projetos de MDL respeitam o critério do desenvolvimento sustentável e as dificuldades aí implicadas.
3.1 Indicadores de sustentabilidade para projetos de MDL
A idéia de desenvolvimento sustentável foi inicialmente aventada no Relatório feito pela Comissão Bruntland, criada pela ONU com o escopo de traçar a situação do ambiente no mundo e os instrumentos de enfrentamento do problema. Esse Relatório, denominado no Brasil "Nosso Futuro Comum" (1988), conceitua desenvolvimento sustentável como aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades.
O conteúdo dessa definição, no entanto, tem sido objeto de várias discussões. Enquanto não aceito universalmente um conceito prático de desenvolvimento sustentável, há um crescente consenso de que este deve incorporar três elementos - econômico, social e ambiental - de uma forma equilibrada (JEPMA e MUNASINGHE, 1998). A análise econômica da sustentabilidade baseia-se no conceito de otimização dos proveitos econômicos, levando-se em conta a prevenção ou controle de possíveis impactos no ambiente e a manutenção dos recursos naturais para as futuras gerações. A análise social pressupõe a manutenção da flexibilidade/diversidade social e cultural da sociedade por meio da participação democrática e eqüitativa de seus membros. A análise ambiental focaliza o equilíbrio biológico e físico dos sistemas vivos, e sua dinâmica (JEPMA e MUNASINGHE, 1998). Há de se ter em vista que toda e qualquer análise do desenvolvimento sustentável precisa fundamentalmente concentrar-se na interação de cada um desses aspectos, reconhecendo sua interdependência.
Neste sentido, foram propostos alguns indicadores de sustentabilidade que poderiam ser usados na análise de projeto de MDL, tais como capacidade de diminuição da pobreza, criação de empregos, suporte a serviços básicos como educação e saúde, possibilidade de obtenção de investimentos e renda por parte dos países envolvidos e realização de medidas de prevenção de impactos ambientais ou manutenção do equilíbrio ambiental da área afetada pelo projeto (PEMBINA INSTITUTE, 2002). HALSNAES (2002), detalhando alguns dos requisitos de aferição do objetivo do desenvolvimento sustentável, sugere o seguinte modelo:
No entanto, a definição do critério de sustentabilidade, no âmbito dos Mecanismos de Desenvolvimento Limpo, esbarra em barreiras práticas. Cabe ao país onde o projeto de MDL será implementado, a tarefa de definir esses critérios. Essa definição, assim, deverá ser feita consoante políticas e diretrizes traçadas por este país. Contudo, em muitos casos, tais diretrizes e políticas não se coadunam ou mesmo ignoram qualquer elemento de sustentabilidade.
Como já explicitado, existe o problema da competitividade dos projetos num futuro mercado de carbono. No atual sistema capitalista de mercado, os investidores (sejam eles Estados ou empresas) interessados em adotar um projeto de MDL num país em desenvolvimento, terão em vista os custos dos investimentos, optando por aqueles que oferecerem maior quantidade de certificados pelo menor custo. Por seu lado, os preços dos RCEs podem apresentar, no futuro mercado de carbono, uma variação muito grande, haja vista a diferença de custos na obtenção das reduções de emissão de carbono e da implementação dos projetos de MDL. Neste sentido, como expressam MOTTA et al. (2002), se o preço do carbono descer a nível muito baixo, o mercado de MDL irá rejeitar projetos mais sustentáveis, comumente mais onerosos, em termos de investimento.
3.2 Efetividade ou retórica?
A indefinição do conceito de desenvolvimento sustentável e seu significado prático para os fins do MDL, conforme explicitado no item anterior, têm suscitado dúvidas quanto a verdadeira capacidade desses mecanismos de atingirem, tal qual previsto nos textos legais internacionais, o objetivo de promoção do desenvolvimento sustentável. Em verdade, o desafio de fazer do MDL um efetivo instrumento de promoção do desenvolvimento sustentável esbarra em questões muito mais complexas, a começar pelo modelo no qual se baseia. Como já explicitado, o MDL, por fazer parte de um sistema criado para funcionar segundo regras de mercado, herdou todos os aspectos deste, inclusive suas reconhecidas falhas.
A criação de mercados para externalidades ambientais partiu de uma concepção econômica neoclássica, sustentada pelos paradigmas da dependência estrita às forças unicamente do Estado e do mercado e da dependência da ajuda externa dos países desenvolvidos (Cavalcanti, 2003).
Ainda segundo Cavalcanti (2003), o MDL, ao prever o investimento dos países desenvolvidos como fonte de promoção do desenvolvimento sustentável nos países em desenvolvimento, sacramenta a dependência destes em relação àqueles, como únicos provedores e promotores da qualidade de vida. Ao mesmo tempo, por deixar as regras do jogo unicamente nas mãos do Estado (por meio da regulação jurídica internacional) e do mercado, o MDL prescindiu da capacidade das comunidades atingidas pelos projetos de se auto-organizar e definir suas próprias prioridades.
O MDL retrata a legitimação de um modelo reconhecidamente falho, posto que incapaz de relevar o potencial local e regional, seja ambiental, seja econômico, seja social, de auto-gestão sustentável das comunidades existentes nos países em desenvolvimento. Pode-se ousar em dizer a palavra "assistencialismo".
Outra questão que se levanta, diz respeito ao paradigma ideológico existente por detrás da sistemática jurídica criada para enfrentar o problema das mudanças climáticas. Conforme anteriormente explicitado, o aumento exponencial das emissões de gases precursores de efeito estufa decorre principalmente do modelo de produção industrial em larga escala, altamente energo-intensivo. Por seu lado, a força motriz que sustenta esse modelo é, em maior medida, a exacerbação do consumo, como fim em si mesmo. Em outras palavras, a própria dinâmica capitalista pressupõe, na sua essência, a continuidade do crescimento, por um lado, a legitimação de valores sociais e individuais egoísticos. Dessa forma, o fulcro da problemática das mudanças climáticas, assim como de toda questão ambiental, econômica e social, volta-se, na sua essência, para uma reavaliação dos valores que fundamentam o atual sistema de produção econômica.
4 CONCLUSÃO
A efetiva ameaça da manutenção da qualidade das condições de vida na Terra, estampada na incapacidade do homem de lidar com as mudanças climáticas, está a explicitar, como que em um aviso, a necessidade de reavaliação profunda dos valores praticados pela sociedade humana.
Por mais que se criem mecanismos jurídicos e econômicos para enfrentar o problema, sem essa necessária reflexão, provavelmente as mudanças, se acontecerem, serão em ritmo mais lento que o necessário para sustentabilidade planetária.
Da mesma forma, a possibilidade de implementação do desenvolvimento sustentável nos países em desenvolvimento por meio dos Mecanismos de Desenvolvimento Limpo, perpassa pela mesma avaliação de valores humanos e do modo de produção atual. A promoção da sustentabilidade pelo MDL será efetiva apenas se se começar a cotejar a realidade das comunidades locais envolvidas, seus múltiplos aspectos e o potencial de seus habitantes de compreender e fomentar seus valores mais intrínsecos.
Por outro lado, a instituição do mercado de carbono e a possibilidade de os países desenvolvidos valerem-se dos RCEs oriundos do MDL para cumprirem suas metas de redução somente alçarão os objetivos previstos na CQMC e no Protocolo de Quioto acaso haja a contrapartida de reavaliação de seus respectivos sistemas produtivos e de suas reais necessidades.
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