An. 5. Enc. Energ. Meio Rural 2004
Uma análise histórica da evolução da eficiência do programa "consumidor de baixa renda de energia elétrica" no interior do Estado de São Paulo
José Antonio Siqueira DiasI; Maurício Lopes TavaresII
IFaculdade de Engenharia Elétrica de de Computação da UNICAMP DEMIC/FEEC/UNICAMP - Caixa Postal 6101 - Campinas, SP 13081-970 email: siqueira@demic.fee.unicamp.br
IIEscola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz- ESALQ/USP - Ex-Mestrando do Departamento de Economia, Administração e Sociologia Av. Pádua Dias, 11 - Piracicaba - SP CEP 13418-900 email: mautavar@uol.com.br
RESUMO
É apresentada uma análise histórica da adequação dos critérios utilizados para selecionar os beneficiados do programa "Consumidor de Baixa Renda de Energia Elétrica" no interior do Estado de São Paulo. O estudo é baseado em dados estatísticos levantados junto a uma das maiores distribuidoras de energia elétrica da região, a Companhia Paulista de Força e Luz - CPFL. Discute-se, também, o conceito de "família de baixa renda", com base em estudos feitos pelo IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e pela FIPE - Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, fazendo um confronto entre os dados esperados para o número de famílias de baixa renda com o número de famílias que efetivamente recebem o benefício.
Palavras Chave: Consumidor de Baixa Renda, Universalização do Atendimento de Energia Elétrica, Tarifa Social de Energia Elétrica, Regulamentação do Setor Elétrico.
ABSTRACT
An analysis of the criteria used to select the beneficiaries of the federally-funded social program "Consumidor de Baixa Renda de Energia Elétrica" (Low Income Households Consumers of Electrical Energy) in the State of São Paulo is presented. The study is based on statistical data obtained from the database of Companhia Paulista de Força e Luz - CPFL, one of the most important electrical energy distributor in the mentioned region. The concept of "low income household" is also discussed, based on studies presented by IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística and by FIPE - Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, comparing the expected number of low income households with the actual number of consumers who receive the subsidy.
1. Introdução
O setor de Energia Elétrica brasileiro tem passado, nos últimos anos, por uma série de dificuldades, tanto devido a problemas na geração (causados pelo racionamento forçado pelo baixo nível dos reservatórios), como devido a problemas de distorção tarifária, gerados a partir de interpretações equivocadas dos Programas de "Consumidor de Baixa Renda".
O Programa Consumidor de Baixa Renda e sua influência no setor de Energia Elétrica tem recebido, recentemente, grande atenção não apenas do Poder Público, mas também do setor acadêmico, onde temos cada vez mais especialistas das área de engenharia, economia e sociologia estudando a implantação, adequação e os efeitos causados pela sua aplicação no sistema de energia elétrica (TAVARES, 2004)[1]. Devido à interdisciplinaridade do objeto de estudo, é esperado que conceitos de origem totalmente diversa, como "ligações monofásicas" e "Linha de Pobreza" tornem a análise do programa difícil e delicada, ao englobar espectro tão amplo do conhecimento. Neste trabalho, os fatores multidisciplinares e aspectos essenciais para a compreensão desse programa social são apresentados conjuntamente, discutindo o conceito de "Consumidor de Baixa Renda" e apresentando uma série de dados estatísticos referentes ao interior do Estado de São Paulo. O objetivo é realizar uma análise global da situação do "Programa Baixa Renda" no interior do Estado de São Paulo e identificar seus possíveis erros de aplicação, para poder analisar como estes erros podem afetar não apenas a eficiência do próprio programa social, mas também o setor elétrico, aumentando o preço público.
2. O que é o "Programa Consumidor de Baixa Renda"
A implementação do programa "Baixa Renda" teve como objetivo principal proporcionar aos consumidores pobres o acesso à energia elétrica, serviço público de caráter essencial. Entretanto, desde 1995, com a publicação da Portaria de No. 437/95 do DNAEE, onde foi estabelecido que cada concessionária de energia elétrica seria responsável por propor um programa "Baixa Renda" na sua área de concessão (para posterior homologação pela DNAEE), uma série de critérios divergentes foram utilizados para definir quem é efetivamente consumidor de baixa renda.
Muitas concessionárias desenvolveram critérios cuja premissa básica era que o consumidor efetivamente apresentasse características sócio-econômicas que inequivocamente o classificassem como "família de baixa renda", para que pudesse ser beneficiado com o subsídio do programa. Entre os critérios de cunho sócio-econômico utilizados, podemos citar as restrições quanto ao padrão e à localização da moradia, à quantidade de bens que consomem energia elétrica na residência, à renda familiar, etc. Como filtro auxiliar na identificação do consumidor de baixa renda, a grande maioria das concessionárias também incluiu critérios adicionais para a unidade consumidora, como a necessidade de ligação monofásica e um consumo máximo mensal de energia elétrica.
3. O que é uma família de Baixa Renda?
O emprego de critérios eficientes para determinar quais são as famílias pobres, que efetivamente mereçam ser subsidiadas pelos demais consumidores, é questão chave para uma boa compreensão do Programa Baixa Renda.
A "obrigação da universalização dos serviços", que tem origem na existência de grupos de consumidores com insuficiência de renda para arcar com as tarifas plenas desse serviço, foi o que levou a agência reguladora a implementar o programa Baixa Renda, proporcionando o oferecimento de tarifas subsidiadas para estes indivíduos.
A obrigação de universalização do serviço de fornecimento de energia elétrica é uma meta imposta às concessionárias para levar esse serviço público ao maior número de usuários possível (sejam eles de alta ou baixa renda). Em uma situação ideal, as próprias concessionárias buscariam, dado o pressuposto de que procuram ampliar seus mercados e lucros, atender o maior número possível de consumidores. Isso ocorre e ocorreu. Porém, visando ampliar mercados e lucros, as empresas tendem, em um primeiro momento, a atender os usuários de maior renda, para depois atingir os de renda média e marginalmente ir agregando consumidores de baixa renda, à medida em que os custos para atendê-los sejam minimizados. Isso é feito, normalmente, através da construção de pequenas extensões das redes construídas anteriormente para servir os consumidores e alta e média renda. Isso, entretanto, representa um investimento de custo elevado e de retorno financeiro demorado.
Para contornar essa característica da operação de mercado, impõe-se para as concessionárias a obrigação de estender as linhas de distribuição (universalização do acesso físico) a todos os potenciais consumidores, segundo cronogramas definidos pelo Poder Público. Porém de nada adianta que a linha de distribuição chegue às residências baixa renda, se essas famílias não dispõem de recursos para pagar pelo consumo da energia elétrica. Para permitir a universalização de fato, foi criada a sub-classe residencial baixa renda, que contaria com descontos tarifários adequados, de forma a tornar acessível a elas o consumo desse serviço e os ganhos que ele representa para sociedade.
A abordagem dos programas de combate à pobreza deve, portanto, partir de uma definição de quem é o público alvo prioritário, sendo necessários, para isso, estudos para determinar qual parte da população vive abaixo das chamadas Linha de Indigência e Linha de Pobreza. Dessa forma, a identificação do público alvo do programa Baixa Renda é difícil, haja vista que a pobreza é um fenômeno complexo, para o qual não existe uma definição inequívoca e o estabelecimento de um limite para as Linhas de Pobreza e da Indigência não é tarefa simples (ROCHA, 1997) [2], (ROCHA, 2001) [3].
As famílias que estão abaixo da Linha de Indigência não são consumidores de energia elétrica, uma vez que estão preocupadas apenas em obter uma cesta mínima de alimentação para sua sobrevivência. Portanto, para implementação do Programa, definiu-se o público alvo como sendo toda unidade consumidora de energia elétrica que seja habitada por família que esteja abaixo da Linha de Pobreza.
Um programa social é considerado eficiente quando é capaz de identificar claramente o seu público alvo e incluir o maior número possível de reais beneficiários, ao mesmo tempo em que exclui o maior número possível de indivíduos que não deveriam ser beneficiários. Esta abordagem, também chamada de "targetting", que é amplamente recomendada por vários organismos internacionais como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, faz com que o dinheiro empregado no programa seja eficientemente dirigido ao público que mais dele necessita, ou seja, a parcela pobre da população.
Portanto, visando otimizar e tornar o programa social o mais eficiente possível, este deveria ser aplicado apenas ao seu público alvo, pois quanto mais efetivo for o mecanismo de inclusão de reais beneficiários e exclusão de falsos beneficiários, maior é a eficiência do programa para atender ao público alvo. Para definir o público alvo serão utilizados os parâmetros das Linhas de Pobreza e de Indigência calculados a partir da base de dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE (ROCHA,1997)[4]. Esse estudo é uma referência na área, e é amplamente utilizado por todos os autores que se interessam tanto em analisar o fenômeno da pobreza como também em propor novos programas sociais que reduzam a pobreza.
De acordo com os dados do IBGE levantados pela autora, em setembro de 1998, os salários per capita para a região urbana de São Paulo que definiam os limites das Linhas de Indigência (LI) e da Linha de Pobreza (LP), eram respectivamente LI = R$ 39,47 e LP = R$ 82,59. Isso implicava, como vemos no relatório da FIPE (FIPE, 2001) [5], que 11,04% das famílias consumidoras de energia elétrica na região urbana de São Paulo estavam abaixo da LP, sendo, portanto, consumidores de baixa renda de energia elétrica.
A metodologia utilizada para o cálculo da LP pela autora caracterizava-se por, numa primeira etapa, calcular o custo da cesta mínima de alimentos que fornece os requisitos nutricionais recomendados pela Food and Agricultural Organization (FAO, 1985) [6], e numa segunda etapa, calcular os gastos familiares com os bens não-alimentares. Para isso usou os dados do levantamento realizado pelo IBGE relativos ao padrão de consumo das famílias que possuíssem renda suficiente para outros gastos além dos com a cesta alimentar, porém que estivessem na faixa de menor distribuição de renda. Desta forma, a Linha de Pobreza fica definida pela soma do valor das duas cestas, ou seja, da cesta alimentar e da cesta de bens não alimentares.
Através de alguns cálculos e aproximações simples, realizados usando a base dados publicados na Síntese de Indicadores Sociais pelo IBGE (IBGE,2003) [7] referentes ao ano de 2002, pode-se ter uma idéia da validade atual dos índices calculados autora. Evidentemente esses cálculos não possuem o rigor e correção da metodologia aplicada pela autora, porém servem como uma estimativa de atualização do limite da LI e da LP. A forma que será utilizada é através do cálculo de qual o número de famílias que possuem renda per capita entre R$ 56,99 e R$ 119,25, ou seja, os R$ 39,47 / R$ 56,99 per capita utilizados pela autora em 1998, corrigidos pelo IPCA do período (Janeiro/1998 a dezembro/2001). Evidentemente este cálculo não reflete com precisão os valores da LI e da LP em 2002, pois sabidamente o IPCA engloba em seu conteúdo uma série de produtos que não fazem parte do universo de consumo do baixa renda.
Da base de dados da Síntese de Indicadores Sociais 2002, vemos que cerca de 19,5% da das famílias da região urbana de São Paulo recebem algo entre R$ 75,50 e R$ 151,00,00 per capita (½ a 1 salário mínimo da época). Assumindo uma relação linear para a função distribuição de pessoas que recebem entre R$ 75,50 e R$ 151,00 (isso equivale a dizer que das 19,5% famílias que recebem entre um e dois salários mínimos, 9,75% tem salário per capita de R$75,50 a R$ 113,25 e os outros 9,75% recebem de R$ 113,25 a R$ 151,00), conclui-se que cerca de 11,30% das famílias recebem um salário entre R$ 75,50 e R$ 119,25 e deveriam ser classificadas como de baixa renda.
Devemos lembrar que as famílias com renda per capita entre R$ 56,99 e R$ 75,50 foram excluídas nesta primeira parte do cálculo. Para incluí-las vamos assumir o mesmo tipo de relação linear para a função distribuição de pessoas que ganham entre R$ 0,00 e R$ 75,50 (½ salário mínimo), que representam apenas 8,8% dos domicílios na região de São Paulo. De forma análoga ao feito anteriormente, pode-se calcular que o número de famílias que recebem um salário per capita entre R$ 56,99 e R$ 75,50 é de 1,8%. Dessa forma, pode-se dizer que ainda existem mais cerca de 1,8% de famílias que são de baixa renda e consomem energia elétrica, levando o número total de famílias de baixa renda consumidoras de energia na região urbana de São Paulo, de acordo com a aproximação bastante simplificada aqui apresentada, para 13,1% (11,3% + 1,8%).
Apenas para mais uma verificação, foram usados os dados apresentados em relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos (Pochmann, 2002) [8], relativos ao município de São Paulo, onde foi determinado que 19,7% dos chefes de domicílio na cidade de São Paulo estão abaixo da Linha de Pobreza. Levando-se em conta que uma parcela dessas 19,7% famílias estão abaixo da linha de indigência e não são consumidoras de energia elétrica, é razoável também admitir que cerca de 11% a 13% das famílias estão acima da LI e abaixo da LP.
Logo, os dados calculados por ROCHA (1997)[4] e apresentados pela FIPE (2001) [5] são coerentes com os dados mais atuais do IBGE e devem ser utilizados para definir o limite máximo esperado de famílias de baixa renda em São Paulo. Não se pode usar o nosso número (13,1%), pois a metodologia empregada no cálculo que foi feito não é rigorosa, servindo apenas como uma avaliação de primeira ordem.
Este número é fundamental para se entender as bases sobre as quais o programa foi concebido e avaliar os riscos de uma má implementação, já que existe uma relação direta entre a definição correta do público alvo e a eficiência do programa social. Uma vez definida esta linha de corte, se o programa social "Baixa Renda" em São Paulo estiver incluindo parcela de população muito maior do que cerca de 11% da região urbana de São Paulo, ele será ineficiente. Os resultados da eventual ineficiência são nefastos para a sociedade, pois os recursos utilizados no programa não teriam como destino o público alvo e impediriam tanto a expansão dos benefícios a outros segmentos menos favorecidos da sociedade, como também a expansão física de redes para fornecimento de energia para setores essenciais, como, por exemplo, o setor rural.
4. Os critérios do Baixa Renda utilizados pela CPFL no interior do Estado de São Paulo até abril de 2004.
Para verificar a eficiência e a correção da aplicação do programa nesta região, apresenta-se, a seguir, uma análise dos critérios historicamente empregados pela CPFL e faz-se uma comparação com dados estatísticos obtidos das unidades consumidoras de energia elétrica na mesma região. De acordo com a resolução 196 da ANEEL, de 07/06/2000, os critérios utilizados na época pela CPFL para que um consumidor fosse classificado como de baixa renda são:
1 - Possuir ligação monofásica;
2 - Possuir carga instalada de no máximo 6.200W;
3 - Consumir no máximo 220 kWh/mês.
Realizamos um levantamento estatístico nas unidades consumidoras de energia elétrica na região de atuação da CPFL e em uma importante cidade do interior paulista, Ribeirão Preto, para identificar os possíveis erros de aplicação dos três critérios anteriormente apresentados, e utilizados pela CPFL a partir de 2002.
4.1 Critério da "Ligação Monofásica".
A ligação monofásica é a ligação padrão da CPFL, e só não é utilizada quando a unidade consumidora possui carga instalada total maior do que 12.000W. Devido a estas características, somente uma pequena parcela da população (uma parcela de alto poder aquisitivo) é quem possui ligações diferentes da monofásica.
Logo, o critério "Ligação Monofásica" deve, em princípio, ser um filtro de boa qualidade para o "targetting" do Baixa Renda, ajudando a CPFL a identificar claramente o seu público alvo, incluindo o maior número possível de reais beneficiários ao mesmo tempo em que exclui o maior número possível de indivíduos que não deveriam ser beneficiários.
Através de dados colhidos junto à CPFL, levantaou-se a distribuição percentual de unidades consumidoras residenciais em função do tipo de ligação. Na Fig. 1 são apresentados dados coletados, referentes a abril de 2004, para: (a) região total de cobertura da companhia, (b) para a região de Ribeirão Preto.
Como pode-se ver, a maioria esmagadora dos consumidores possui ligação monofásica, já que apenas a população de maior poder aquisitivo é que necessita de uma ligação diferente da monofásica. Já que somente uma pequena parte especial do universo de consumidores é que possui ligação diferente da monofásica, o critério "Ligação Monofásica" é um ótimo filtro para identificar o público alvo prioritário do programa.
Como o número de residências que possui ligação monofásica é cerca de seis vezes maior do que o número esperado de residências de baixa renda (11% do total), o emprego do critério é útil para eliminar do programa os consumidores que certamente não são de baixa renda, sem excluir os reais consumidores que devem ser beneficiados com o subsídio.
A comparação apresentada na Fig. 2 entre os valores médios das contas de energia elétrica em função do tipo de ligação, para a região total da CPFL e para a região de Ribeirão Preto, evidencia que somente a população de maior poder aquisitivo é quem possui uma ligação diferente da monofásica.
4.2 Critério da "Carga Máxima Instalada de 6.200W".
Na Fig. 3 apresenta-se a distribuição percentual do número de unidades consumidoras em função da carga instalada na região de Ribeirão Preto (janeiro 2002). O número de residências com carga instalada menor do que 6.200W é quase três vezes maior que o número esperado de residências de baixa renda (11%), e mostra que o critério é muito útil para eliminar do programa os consumidores que não são de baixa renda, sem excluir os consumidores que devem ser beneficiados com o subsídio.
4.3 Critério do "Consumo mensal máximo de 220 kWh".
O critério de consumo mensal de até 220 kWh é amplo demais, e faz com que todos os consumidores pequenos, médios e até mesmo a maior parte das unidades de consumo muito elevado sejam potencialmente incluídos no conjunto de consumidores baixa renda. Na região de atuação da CPFL, 90,2% do total de residências com ligação monofásica apresentam consumo mensal menor do que 220 kWh, o que comprova nossa tese. Porém, querer usar este critério como critério único para definição do consumidor de baixa renda, implicaria em classificar mais de 90% das unidades consumidoras monofásicas da CPFL na sub-classe baixa renda, o que é, sem sombra de dúvida, uma clara e perigosa distorção dos objetivos do programa.
Historicamente esse critério (associado à necessidade de ligação monofásica) já foi utilizado no período da Nova República, levando às distorções acima referidas. Isso ocorreu dentro de um contexto de políticas populistas impostas às concessionárias, que na época eram estatais, como forma de controle da inflação. Ao manter as tarifas de energia elétrica artificialmente baratas, obtinha-se uma depreciação nos índices de inflação ao consumidor, provocando, porém, a descapitalização do setor elétrico, que vendia energia elétrica a um preço inferior ao custo de produção (ABREU, 1999) [9]. Esse achatamento tarifário levou à virtual falência de diversas empresas do setor, que tiveram que contar com aportes financeiros do Poder Público e interromperam os investimentos na expansão do sistema, o que veio deflagrar a crise de racionamento de 2001, quando as condições hidrológicas ficaram desfavoráveis. Recentemente temos visto iniciativas da mesma natureza, por parte de entidades do terceiro setor e de outras instituições, com o intuito de impor judicialmente ao setor elétrico o retorno a essa regra, como forma de beneficiar o consumidor médio com os descontos do Programa Baixa Renda. Ironicamente, essas iniciativas tendem a prejudicar o próprio consumidor de baixa renda, ao impor ao setor elétrico um desequilíbrio financeiro, como o verificado na década de 1980, e que certamente redundará em um aumento tarifário geral. A tarifa média mais elevada atingirá especialmente as famílias de baixa renda, que serão obrigadas a dividir os descontos a que teriam direito com as famílias de renda média, praticamente anulando os efeitos dos descontos concedidos.
Se essas iniciativas forem acolhidas e o critério único de consumo se tornar realidade, o Programa Baixa Renda será incapaz de identificar minimamente o seu público alvo, pois irá incluir um número gritante de de indivíduos que não deveriam ser beneficiários. Este erro de "targettinçf levará o sistema ao caos, gerando um desperdício formidável e fazendo com que o dinheiro empregado no programa não seja eficientemente dirigido ao público que mais dele necessita e praticamente impedindo a expansão do sistema para novos consumidores.
Este problema já foi exaustivamente analisado e as conclusões são todas no sentido de concordar que o critério único de consumo mensal máximo de 220 kWh para selecionar o consumidor de baixa renda está completamente equivocado. Até mesmo porque "algumas residências de altíssimo padrão econômico que, por possuírem outras fontes geradoras de energia, tais como geradores fotovoltaicos, a Diesel, ou mesmo a gás natural, apresentam um consumo de energia menor do que 220 kWh/mês, ou mesmo zero. Poderiam estes consumidores ser classificados como de baixa renda?" (ALTAFIM, 2002) [10].
O Tribunal de Contas da União também realizou um extenso estudo, onde conclui que o consumo não possui nenhum tipo de correlação com a renda familiar e que usando o método do consumo, muitos domicílios de média e alta renda, tais como flats e apartamentos pequenos não são excluídos do conjunto de beneficiados. Segundo o ministro relator do processo, "Está evidente a inadequação do critério" (AGUIAR, 2002) [11]. O custo financeiro para a implementação da tarifa social é de cerca de R$ 1 bilhão por ano (estimativa para 2004), e os critérios atuais permitem que pessoas que não precisam dos subsídios sejam beneficiadas, em detrimento de outras que necessitam.
Fica evidente, a partir das análises até aqui apresentadas, que era necessário definir critérios adicionais, de cunho sócio-econômico. Esta medida veio com a publicação das Resoluções 485/2002, 495/2003, 694/2003 da ANEEL, alteradas posteriormente pela Resolução Normativa No. 44, de 26/02/2004, que discutimos e analisamos a seguir.
5. Uma solução mais eficiente para a identificação do público alvo do Programa Baixa Renda.
De acordo com as novas resoluções 246/2002, 485/2002 e 694/2003 da ANEEL, é obrigatório que sejam incluídas no programa Baixa Renda todas as unidades residenciais consumidoras que:
a) Possuam ligação monofásica e que a média de consumo mensal, calculado com base na média dos últimos 12 meses, seja inferior a 80 kWh e que não apresente, nesse período, mais de um consumo superior a 120 kWh mensal.
b) Possuam ligação monofásica e que a média de consumo mensal, calculado com base na média dos últimos 12 meses esteja entre 80 e 220 kWh, calculado com base na média dos últimos 12 meses, e que esteja apta a receber os benefícios do programa Bolsa Família do Governo Federal;
c) Família que não detenha a comprovação de estar cadastrada em nenhum dos programas federais de auxílio às famílias de baixa renda mas que possua renda familiar per capita máxima de R$ 100,00.
Na Fig. 4 são apresentados gráficos da distribuição do número de consumidores monofásicos na região total de atuação da CPFL e na região de Ribeirão Preto, em função do consumo mensal, dividida em três parcelas: menor do que 80kWh, entre 80kWh e 220 kWh e acima de 220 kWh.
A análise dos gráficos apresentados na Fig. 4 é muito importante para discutir-se a adequação dos critérios atuais para classificar os consumidores como de "Baixa Renda", ou seja, se o número de consumidores de Baixa Renda ainda ultrapassa de forma significativa o percentual de 11% das residências da região. Se isto for verdade, significa que o critério é ainda muito "frouxo", deixando que um número grande de famílias que não estão abaixo da linha de pobreza venham a se beneficiar do programa.
Deve-se lembrar que todas as famílias que consomem até 80 kWh por mês são automaticamente faturadas como baixa renda, independente de serem ou não cadastradas em qualquer programa social ou da renda familiar per capita. Como o número de famílias que estão automaticamente faturadas como de baixa renda (por ter consumo menor do que 80kWh mensal) é de 21,29% para a totalidade da CPFL e de 19,47% para Ribeirão Preto, pode-se considerar razoavelmente aceitável o critério, já que ele inclui apenas cerca de 7 a 10% a mais de famílias do que deveria na classificação Baixa Renda.
Porém, como a grande maioria dos consumidores (54,55% para a área total da CPFL e 69,66% para a região de Ribeirão Preto) estão situados na faixa de consumo entre 80 e 220 kWh/mês, o conjunto de critérios atualmente empregados só será realmente eficaz se os outros condicionantes (ligação monofásica, cadastro no Programa Bolsa Família ou salário per capita mensal de até R$ 100,00) forem capazes de impedir, quase que na totalidade, que esta parcela enorme de consumidores seja incluída no Programa Baixa Renda.
Os dados coletados, referentes ao número de consumidores efetivamente faturados como de baixa renda em abril de 2004, indicam que de certa forma os critérios adicionais estão cumprindo seu papel. O número de consumidores de baixa renda na região de Ribeirão Preto é 102.957 famílias, ou seja, 26,13% do total residencial monofásico, enquanto que na região total da Companhia Paulista de Força e Luz - CPFL este número é de 502.585 famílias, implicando que 27,82% do total de consumidores monofásicos da CPFL estão sendo beneficiadas com o subsídio do programa social.
Esses percentuais, entretanto, ainda são bem maiores do que o percentual de 11% estimado para a região urbana de São Paulo, já que certamente não temos mais de 27% das famílias no interior do Estado de São Paulo situadas abaixo da Linha de Pobreza. Isso indica que o "targetting" ainda é falho, e outros critérios devem ser adicionados para melhorar a eficiência do programa. Sem embargo, o modelo vigente é indiscutivelmente o primeiro passo na direção de se obter uma solução realmente eficaz para a identificação do público alvo do Programa Baixa Renda. É claro que a questão ainda não está totalmente resolvida e, como recomendado pelo Tribunal de Contas da União, devem ser estudados novos critérios, pois embora todas as famílias de baixa renda devam estar sendo cobertas pelo programa, um número muito alto de famílias que não são de baixa renda continuam, indevidamente, a receber o subsídio.
6. Conclusões
O programa "Consumidor de Baixa Renda" caracterizou-se, desde a sua implantação, por não dispor de critérios adequados para a real identificação do consumidor de baixa renda, permitindo que, além da parcela de famílias de baixa renda, um número alarmante de famílias que não estavam abaixo da Linha da Pobreza também recebessem os benefícios. A falta de adequação dos critérios era tal que o número de consumidores que não eram efetivamente de baixa renda e recebiam o benefício era maior do que o número de consumidores reais de baixa renda. Hoje, se o critério único de consumo mensal menor do que 220 kWh fosse aplicado na região de Ribeirão Preto, concluiríamos, que mais de 89% das famílias da região estariam abaixo da Linha de Pobreza e seriam beneficiadas com as tarifas especiais do programa social.
A aplicação dos novos critérios, portanto, eliminou de forma significativa esses erros grosseiros e o erro de "targetting", responsável por fazer com que mais de meio bilhão de reais por ano não fossem dirigidos ao público que mais necessitava destes recursos, foi razoavelmente eliminado. A aplicação dos critérios atuais tornou o programa mais eficiente sob o ponto de vista do cumprimento do seu papel social e, pela primeira vez na sua história é possível identificar de forma um pouco mais adequada o seu público alvo.
O erro de "targetting", entretanto, ainda persiste, e verifica-se hoje os primeiros passos na direção da implantação de uma nova fase que visa otimizar ainda mais o programa. Uma das distorções percebidas pelo Tribunal de Contas da União é que o enquadramento automático de todos os consumidores monofásicos que apresentem consumo mensal menor do que 80 kWh é inadequado. Consumidores de alto poder aquisitivo que, por exemplo: ou viajam muito; ou possuem flats/apartamentos em mais de uma cidade; ou que estejam viajando em férias; ou ainda que possuam recursos modernos, como aquecimento solar e, devido a essas circunstâncias, apresentam consumo menor do que 80 kWh/mês, recebem o benefício da tarifa social e são tratados como se estivessem abaixo da Linha de Pobreza.
Para eliminar as distorções atuais e visando aprimorar o modelo atual de concessão de benefícios, o Tribunal de Contas da União recomendou ao Ministério de Minas e Energia que aprofunde os estudos das concessões, relacionando consumo domiciliar de energia elétrica com renda domiciliar per capita e variáveis sócio-econômicas, e que faça gestões junto ao IBGE sobre a possibilidade de incluir na próxima Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNDA) uma questão sobre o consumo domiciliar mensal de energia em KWh. O Ministério também deve utilizar critérios adicionais que reduzam as características da aplicação de critérios da lei, em termos da ineficiência no uso dos recursos.
Estes novos estudos, que deverão ser concluídos provavelmente após a próxima Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios - PNDA do IBGE, deverão dar início a essa nova nova fase a que nos referíamos do Programa de Baixa Renda, onde se espera que os critérios sejam capazes de identificar claramente o seu público alvo e incluir o maior número possível de reais beneficiários, ao mesmo tempo em que exclui o maior número possível de indivíduos que não deveriam ser beneficiários.
Os dados estatísticos colhidos e analisados indicam que, na região da CPFL, temos cerca de 28% dos consumidores recebendo o benefício do programa baixa renda, quando o número esperado era algo em torno de apenas 11%. Admitindo-se que esta mesma relação seja válida para todo o território nacional, chegamos à preocupante conclusão que dos R$ 1 bilhão previstos para serem gastos em 2004 com o programa baixa renda, cerca de R$ 600 milhões serão desperdiçados com consumidores que não necessitam do subsídio.
A definição de novos critérios se faz necessária para que estes R$ 600 milhões anuais possam vir a ser investidos na expansão e modernização do setor elétrico para evitar problemas futuros com o fornecimento de energia elétrica e permitir uma retomada de crescimento no setor, promovendo uma real universalização do serviço e levando energia a vários setores que dela tanto necessitam, como o setor rural.
Agradecimentos
Gostaríamos de agradecer à Companhia Paulista de Força e Luz - CPFL por permitir o acesso aos os seus bancos de dados e por fornecer informações de consumo e mercado a respeito da sua área de atuação no interior do Estado de São Paulo, elementos fundamentais para a realização deste trabalho.
Referências
[1] TAVARES, M. LOPES, "Análise e evolução da tarifa social de energia elétrica no Brasil", dissertação de mestrado apresentada no Departamento de Economia, Administração e Sociologia da ESALQ/USP, Piracicaba, Abril 2004.
[2]ROCHA, SONIA, "The use of Poverty Lines in Brazil", Fourth Meeting of the Expert Group on Poverty Statistics, IBGE / Comisióm Econômica para América Latina y el Caribe, Rio de Janeiro, 15-17 de outubro de 2001.
[3] ROCHA, SONIA, "On statistical mapping of poverty: social reality, concepts and measurement", Expert Group on Poverty Statistics, Santiago, Maio de 1997.
[4] ROCHA, SONIA, "Do consumo observado à linha de pobreza", Pesquisa e planejamento econômico, Volume 27, pp. 315-352, No. 2, agosto 1997.
[5] FUNDAÇÃO INSTITUO DE PESQUISAS ECONÔMICAS, Projeto "Metodologia para Definição de Domicílios de Baixa Renda", Resumo executivo "Focalização dos Beneficiários do Programa Baixa Renda - Regiões Metropolitanas e Regiões Urbanas Não-Metropolitanas", 2001.
[6] FAO/WHO/UNU Report of Joint Expert Consultation, World Health Organization, "Energy and protein requirements", Technical Report Series 724, Geneva 1985.
[7] IGBE, "Síntese de Indicadores Sociais 2002", Estudos e Pesquisas - Informação Demográfica e Socioeconômica, No. 11 - IBGE, Rio de Janeiro, 2003.
[8] POCHMANN, MARCIO, "Pobreza e violência no município de São Paulo", Relatório Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, São Paulo 2002.
[9] ABREU, Y. V. "A reestruturação do setor elétrico brasileiro: questões e perspectivas", Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo - USP, São Paulo, 1999.
[10] ALTAFIM, RUY A. C., em "Parecer Técnico em Processo Baixa Renda", Departamento de Engenharia Elétrica da Escola de Engenharia de São Carlos da USP, EESC/USP, São Carlos, 2001.
[11] TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, "TC-014.698/2002-7 Plenário".