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An. 6. Enc. Energ. Meio Rural 2006

 

Eletricidade por digestão anaeróbia da vinhaça de cana-de-açúcar. Contornos técnicos, econômicos e ambientais de uma opção

 

 

Erik Eduardo Rego; Francisco del Moral Hernández

PIPGE / IEE - USP

 

 


RESUMO

Inicialmente este trabalho apresenta a crescente importância da biomassa na matriz energética brasileira e mundial, principalmente devido a maior consciência ambiental quanto à necessidade de uso de fontes chamadas renováveis, como também pelas crises de petróleo e gás dos últimos anos. No caso brasileiro, o uso da biomassa mistura-se com o uso da cana-de-açúcar. Os estudos nessa área normalmente são voltados para a produção do álcool combustível, ou para a utilização da queima do bagaço em caldeiras. Este trabalho, entretanto, volta-se para um outro resíduo do processo de produção de açúcar e álcool, a vinhaça, rejeito do processo agroindustrial. O uso da vinhaça na ferti-irrigação não é nenhuma novidade, mas aqui se conjectura sobre a viabilidade técnica, ambiental e econômica da produção de biogás a partir da digestão anaeróbia da vinhaça, para fins de queima deste gás para a produção de energia elétrica. Assim, o trabalho apresenta o processo de produção de biogás em um reator anaeróbio de fluxo ascendente (Reator UASB), demonstrando aspectos de viabilidade no projeto (alertando para precauções quanto à agressão ao ambiente, escolhido um volume de controle que englobe os resíduos e permita uma análise termodinâmica e econômica do processo). Contribuindo com a análise, apresenta-se um estudo de caso de uma planta piloto no interior do Estado de Pernambuco, em que já há a produção de biogás através desse processo. Por fim, é feita a avaliação econômica de alternativa, que apresenta resultados díspares: é um ou outro dependendo da legislação ambiental regional quanto à acomodação do efluente final, mais severa em um Estado e menos em outro. Implantado no Estado de São Paulo ou sob um mínimo de rigor de proteção ambiental, o projeto demonstra ser inviável no cálculo econômico. A combinação dos fatores de análise (econômico, técnico, ambiental) se mostra necessária para a visão de conjunto e evidencia as possibilidades parciais dos particularismos.

Palavras chave: vinhaça, biogás, biodigestão, açude, UASB.


ABSTRACT

In its first part this article brings up the growing importance of biomass in Brazilian and within the world energy scenario, especially due to the higher environmental consciousness related to the use of renewable energy sources. It also discusses about biomass sustainability and its myths. The Brazilian case shows that the usage of Biomass is mixed to the use of sugar cane. The studies in this area are essentially directed to the production of ethanol and the burn of the solid waste production in steam generators. This article focuses on a specific liquid effluent product: the vinnasse. The use of vinasse in agriculture as liquid fertilizer is not new. This article studies the technical, economical and environmental viability of the biogas production obtained from the anaerobic digestion of vinasse in order to generate electricity. The reactor under analysis is the UASB (Upflow Anaerobic Sludge Blanket ) and a case study of a experimental process linked to alcohol production is used as a base to put side by side some points of view. Finally this article discusses how environmental regulations related to the effluent disposal (and their differences between two States in Brazil) were really trade-offs issues in the decision making from the economical perspective. The combinations of the analysis (technical, economical and environmental) contributes for the global dimension of the alternative.


 

 

1. Introdução e contornos da conjuntura.

A "sobra" de energia elétrica decorrente do racionamento de 2001/2002 está se esgotando, novos investimentos no sistema elétrico elétrica não têm sido feitos e a economia apresenta sinais de recuperação. Alguns especialistas começam a admitir que o ano de 2010 será crítico para o atendimento de uma demanda crescente.

Uma usina hidrelétrica leva, em média, pouco mais de quatro anos para ser construída e são reconhecidos os grandes impactos sócio-ambientais dos empreendimentos hidrelétricos de grande porte. Particularmente, o uso da biomassa para gerar eletricidade aparece como oportunidade neste cenário. Trata-se de geração descentralizada e próxima a alguns centros de carga, com grande potencial de aproveitamento de resíduos de processos como combustível. Há interesse ambiental no tema desde que se pergunte e se reflita para que esta energia esta sendo gerada e como utilizá-la. O aproveitamento de um resíduo "volumoso" do processo produtivo para geração de energia para o próprio processo parece interessante. Torna-se mais interessante se o excedente de eletricidade for colocado à disposição do sistema interligado, e mais interessante se há tratamento adequado dos resíduos. A bio-eletricidade está muito associada, no Brasil, à queima de bagaço de cana-de-açúcar em caldeiras de alta pressão, gerando energia suficiente para o processo produtivo das usinas e excedentes para o sistema interligado. O objetivo deste trabalho é avaliar o potencial eletro-energético de um outro resíduo do processo de produção de açúcar e álcool: a vinhaça.

 

2. A biomassa como fonte de energia

2.1 - Comentários sobre sua sustentabilidade.

Embora grande parte da biomassa seja de difícil contabilização, devido ao uso não comercial, estima-se que, atualmente, ela represente cerca de 14% de todo o consumo mundial de energia primária (óleo, carvão, gás, combustíveis renováveis e eletricidade) (ANEEL, 2005). Esse índice é superior ao do carvão mineral e similar ao do gás natural e ao da eletricidade. Nos países em desenvolvimento, essa parcela aumenta para 34%, chegando a 60% na África.

No Brasil, o cultivo e o beneficiamento da cana são realizados em grandes e contínuas extensões. Com relação à matriz energética, segundo dados do MME (2005), em 2004 apenas o bagaço de cana-de-açúcar representou 17,7% do uso energético industrial brasileiro, sendo superado apenas pela eletricidade com 20,5%. Quase o dobro do coque de carvão vegetal (9,4%), gás natural (9,2%), carvão vegetal (8,0%), entre outros. A maior parte da energia proveniente de biomassa é utilizada na produção do etanol - combustível líquido. Não obstante o potencial de utilização de terras para fins de geração energética, existe polêmica quanto ao uso múltiplo da terra que, neste caso, evoca duas opções: ao utilizarmos a terra para "plantar energia" estaremos deixando de utilizá-la para produzir alimentos. A disponibilidade de terras agrícolas esta relacionada com uma tripla pressão - produção de alimentos para atendimento externo, interno e para fins energéticos (NOGUEIRA et al, 2000:126-128).

A discussão da sustentabilidade do uso da biomassa para fins energéticos faz-se necessária. As escolhas devem levar em conta aspectos de proteção ao meio ambiente e condições para o desenvolvimento humano. Para citar alguns aspectos: o uso de recursos naturais como a água, sustentabilidade da produção agrícola, impactos sócio-econômicos da substituição de culturas, impacto sobre a qualidade do ar em zonas rurais, poluição doméstica na cocção e aquecimento, impacto no solo agricultável, impacto na biodiversidade e nível de qualidade dos empregos gerados (salários e saúde ocupacional em relação aos pré - existentes nas culturas tradicionais). Os aspectos listados evidenciam certa complexidade para compor critérios gerais de sustentabilidade a serem aplicados ao uso de biomassa em grandes programas de substituição de fontes de energia. Geralmente estes programas estão associados a monoculturas e estas, por sua vez, associadas ao uso de fertilizantes e pesticidas e insalubridade do trabalho assalariado. Estes eventos colocam sempre em alerta a noção de sustentabilidade e colocam que as escolhas devem ser analisadas em mais que uma perspectiva: devem inevitavelmente contribuir para a redução da pobreza principalmente em países em desenvolvimento e paralelamente trabalhar para "limpar" as matrizes energéticas locais e globais. A escolha dos usos das biomassas1 (biomassa moderna, biomassa tradicional melhorada e biomassa tradicional para fins energéticos) deve endereçar os aspectos mencionados. Não se deve crer, no entanto, na inexistência de conflitos e contradições entre usos e propósitos.

2.2 - Processo de Produção de Álcool

A vinhaça é o principal resíduo liquido produzido por destilarias de aguardente e de álcool (autônomas ou anexas às usinas de açúcar) quando se efetua a separação do etanol do mosto fermentado. A vinhaça é "uma suspensão aquosa de sólidos orgânicos e minerais, contendo os componentes do vinho não arrastados na etapa de destilação, além de quantidades residuais de açúcar, álcool e componentes voláteis mais pesados".(ALMANÇA, 1994:23).

A figura 1 procura evidenciar alguns fluxos de matéria e energia no processo e 3 origens distintas de vinhaça no processo: vinhaça de mosto de caldo (A); vinhaça de mosto de melaço (B); vinhaça de mosto misto (C).

Segundo VAN HAANDEL (2003), "no processo tradicional de produção de álcool, 13 toneladas de cana-de-açúcar são necessárias para cada m3 de álcool produzido". Embora dependente da qualidade do solo, o referido autor afirma que "entre 1/6 e 1/5 ha de área plantada são requisitados para uma plantação de 13 ton de cana".

A produção de vinhaça varia em função dos diferentes processos empregados na fabricação do álcool. Segundo CORTEZ et al (1992:13), para cada litro de álcool são produzidos 10 a 15 litros de vinhaça, já SZMRECSANYI (1994:73) defende que, na produção de 1 litro de álcool gera-se uma quantidade de vinhaça superior a 10 litros. LUDOVICE (1996:10) apresenta outro balanço, no qual 13 litros de vinhaça são gerados para a mesma quantidade de álcool.

O levantamento feito por VAN HAANDEL (2003) nas destilarias do Nordeste brasileiro demonstra uma produção de até 20 m3 de vinhoto bruto e 3,6 toneladas de bagaço de cana (com teor de umidade 50%) por m3 de álcool. As usinas utilizam aproximadamente duas toneladas deste bagaço para geração própria de energia, na forma de geração de calor para as caldeiras. Porém, estas ainda requerem outros 240kWh de energia do sistema para produzir 1m3 de álcool, conforme indica o fluxo a seguir:

 

Figura 2

 

No processo de produção de álcool, apenas 43% do potencial energético da cana-de-açúcar é aproveitado, o bagaço da cana retém outros 50% do potencial energética da cana, restando à vinhaça complementar o potencial energético da cana, com 7%, conforme mostra a figura 2b:

2.3 - Biogás

De acordo com CASTAÑÓN (2002:06), atribui-se o nome de biogás à mistura gasosa (combustível), resultante da fermentação anaeróbica da matéria orgânica. A mistura é essencialmente constituída por metano (CH4) e por dióxido de carbono (CO2), estando o seu poder calorífico diretamente relacionado com a quantidade de metano existente na mistura gasosa. O grau de pureza do biogás está associado, portanto, a uma maior ou menor presença de CH4 na mistura gasosa.

Os processos de fermentação anaeróbia que produzem metano foram, desde sempre, utilizados pelo homem para o tratamento dos esgotos, nos sistemas conhecidos por "fossas sépticas". Estas serviam para tratar os esgotos domésticos de pequenas comunidades e os resíduos da indústria agro-alimentar ou agro-pecuária. Com o passar dos tempos, estes sistemas simplificados de tratamento evoluíram nos países desenvolvidos, quando começaram a ser utilizados os chamados "digestores" para efetuar a estabilização das lamas resultantes da sedimentação primária e do tratamento biológico aeróbio dos esgotos. Atualmente, existem duas situações preponderantes de aproveitamento do biogás. O primeiro caso consiste na queima direta (aquecedores, esquentadores, fogões, caldeiras). O segundo caso diz respeito à conversão de biogás em eletricidade. Isto significa que o biogás permite a produção de energia elétrica e térmica.

Com relação à segunda situação, CASTAÑÓN (2002) afirma que, a matéria orgânica "sob a ação de microorganismos em condições anaeróbias, ocorra fermentação com a formação de uma mistura de gases, chamado biogás por sua origem biológica (entre eles o metano, gás combustível, podendo substituir elementos como o querosene, óleo e outros inflamáveis)".

Considerado como subproduto da biodigestão, e conseqüentemente do biodigestor, o biogás é uma mistura de gases. Sua composição aproximada é mostrada na tabela 1. A pureza do biogás é avaliada pela presença do metano. Quanto maior o percentual de metano, mais puro é considerado o biogás. A alta concentração de metano no biogás o caracteriza como ótimo gás para geração de energia térmica, sendo o seu poder calorífico inferior (PCI) cerca de 5.500 Kcal/m3 quando a proporção em metano é aproximadamente de 60%. Por fim, o citado autor afirma que, "o poder calorífico, no processo de comparação com outros combustíveis, não é um bom indicador porque não leva em conta a eficiência de combustão que se deve considerar para cada caso."Combinada a eficiência usualmente alcançável com os poderes caloríficos, tem-se a fração realmente aproveitável e uma comparação adequada aos diversos combustíveis, bem como a equivalência do biogás (1 m3) a outras fontes caloríficas. Equivalências energéticas: 1 m3 de biogás = 5.500 Kcal, é equivalente a:

 

 

 

 

3. Processo de digestão Anaeróbia

O processo anaeróbio, segundo GASPAR (2003:17) consiste na "degradação biológica de substâncias orgânicas complexas na ausência de oxigênio livre. (..) No processo de digestão anaeróbia a matéria orgânica é degradada biologicamente, tendo como um dos produtos finais o metano que é fonte alternativa de energia." É um processo fermentativo realizado por inúmeras espécies de bactérias na ausência de oxigênio (ALMANÇA, 1994:28).

Há diversas modalidades de reatores que podem ser utilizados para esse processo de digestão, entretanto, este trabalho irá estudar o modelo mais recorrente, o reator anaeróbio de fluxo ascendente (Reator UASB). Ainda segundo GASPAR (2003:30), "o reator UASB (Upflow Anaerobic Sludge Blanket), (..) É uma unidade de fluxo ascendente que possibilita o transporte das águas residuárias através de uma região que apresenta elevada concentração de microorganismos. Esse reator (...) possui na parte superior um dispositivo destinado a favorecer a separação das fases sólida, líquida e gasosa, com os gases sendo direcionados para o topo e os sólidos e líquidos direcionados para as partes inferiores do reator." Pette & Versprille apud GASPAR (2003:31) descrevem o princípio de funcionamento desse reator: "a água residuária entra pelo fundo do reator por uma série de tubos de alimentação e, imediatamente, em contato com a zona de lodo, sofre a degradação dos seus componentes biodegradáveis que são convertidos em biogás".

Este sistema procura vencer os dois grandes obstáculos observados no histórico de tentativas de digestão da vinhaça "[o sistema] permite que uma película de lodo microbiano, que tem o movimento ascendente devido a bolhas de gás, seja capaz de liberar o gás ao incidir em defletores, e voltar à parte inferior do reator, aumentando gradativamente a capacidade do reator em operar com elevadas cargas orgânicas e baixos tempos de retenção hidráulica".2 (ALMANÇA, 1994:36).

O biogás coletado é enviado a um gasômetro pressurizado no qual a pressão é mantida a 1,15 bar, por um diafragma. Como segurança e para evitar vazamentos, eventuais quantidades de gás não utilizados são automaticamente enviados a um "flare" para queima. O efluente tratado é enviado por meio de canaletas para lagoas ou tanques de armazenamento para posteriormente poder ser utilizado como biofertilizante líquido.

3.1 - Tratamento da Vinhaça

O vinhoto bruto (antes de qualquer tratamento) apresenta alto teor de nutrientes N, P e K, o que desperta interesse para aproveitamento como fertilizante no próprio canavial. Segundo MEDEIROS et al (2003), quando aplicada adequadamente, cerca de 150 m3/ha, a vinhaça equivale a uma adubação de 61 kg/ha de Nitrogênio, 40kg/ha de Fósforo, 343 kg/ha de Potássio, 108 kg/ha de Cálcio e 80 kg/ha de Enxofre. O vinhoto apresenta características que devem ser alteradas antes de seu uso na irrigação: temperatura elevada; alta concentração de material orgânico; alto teor de sólidos em suspensão; pH baixo. Os itens (i) e (iii) podem ser resolvidos quando o vinhoto é mantido em um açude3, pois os sólidos sedimentáveis irão se depositar no fundo do açude e a temperatura se reduz pela troca de calor com o meio ambiente. Já a acidez do produto pode ser neutralizada com a adição de um alcalinizante.

Se por um lado essas características o elegem para uso na ferti-irrigação da industria canavieira, por outro lado, representam um enorme potencial de impacto ambiental. Segundo FREIRE & CORTES (2000), a demanda bioquímica de oxigênio (DBO) da vinhaça é da ordem de 12.000 a 20.000 mg/L. Essa agressividade se deve ao fato dela ser rica em matéria orgânica coloidal, roubando, conseqüentemente, todo ou quase todo oxigênio disponível na água para sua oxidação e transformação em compostos e inócuos.

Corroborando com essa preocupação, estudos realizados ao longo de 12km do rio Piracicaba, na safra 53/54, segundo LIMA (1995) citado por FREIRE e CORTEZ (2000), chegaram aos seguintes resultados:

Antes da safra: DBO = 1,0 a 2,5 mg/L

Dois meses de safra: DBO = 25 mg/L

Quatro meses de safra: DBO = 400 mg/L

Quanto ao potencial energético, segundo VAN HAANDEL (2003), para quantificá-lo deve-se avaliar a quantidade de material orgânico, expressa em massa de DQO (demanda química de oxigênio) presente na mistura. VAN HANNDEL encontrou aproximadamente 500kg de DQO por m3 de álcool produzido, independente das proporções entre a vazão de álcool e a vazão de vinhoto.

Pelo processo de digestão anaeróbica do vinhoto há uma conversão deste material orgânico em gases metano e dióxido de carbono que, juntos, formam o biogás:

Pela equação acima, estequiometricamente a cada unidade de metano tem-se quatro unidades de oxigênio. Adotando-se uma eficiência de remoção do material orgânico de 80%, que tem sido alcançada com segurança, a cada m3 de álcool há uma remoção de 400kg DQO, o que equivale a uma produção de 100 kg de CH4 (4:1). Considerando-se que o poder calorífico inferior (PCI) do metano é de 12.000 kcal/ kg, 1kg de CH4 é equivalente a 50.400kJ (kWs) ou 14 kWh. Para os 100 kg de metano considerados na produção de 1m3 de álcool, o potencial energético é de 1.400 kWh/ mm3 de álcool. Entretanto, supondo-se que a eficiência de um grupo gerador ciclo Otto, que irá queimar este biogás, é de 35%, no máximo, tem-se uma relação de 490 kWh por m3 de álcool (1.400 kWh * 35%).

 

Figura 3

 

4. Estudo de Caso

O estudo aqui apresentado apresenta duas variações, na primeira variação a produção de biogás ocorrerá apenas durante o período de safra, com a utilização de toda a vinhaça nesse período, já na segunda variação, será considerado a utilização de um açude de armazenamento da vinhaça, para sua utilização ao longo do ano.

4.1 - Biodigestão da vinhaça durante o período de safra.

O processo é realizado durante o período da safra, uma vez que a legislação ambiental do Estado de São Paulo não permite que a vinhaça seja estocada, há apenas a construção de um pequeno tanque de resfriamento de 20 m3. A usina, com operação prevista de 3.960 horas/ ano, atingirá a potência instalada máxima de 3.775 kW, disponibilizando anualmente ao sistema 11.899.800 kWh, correspondendo em média a 3.005 kWh/h.

A transformação da energia contida no biogás em energia elétrica será feita pela queima (explosão) do biogás em motor de combustão interna operando em ciclo Otto, potência mecânica contínua 792 kW, aspiração turbo-alimentada, velocidade 1800 rpm, relação de compressão 14:1, acoplado a alternador síncrono.

Para atender o fornecimento de energia, serão implantados cinco motores geradores com rendimento 35%, interligados entre si e operando com fator de disponibilidade 0,9. Potência ativa nominal de 755 kW, cada, rendimento co-seno φ 1 e 0,8 de respectivamente 96,5% e 95,5% e capacidade de regulagem deste co-seno em conformidade com a rede. Cada grupo motor-gerador será montado em container no qual também se encontra todo equipamento necessário à partida, controle, proteção e sincronismo.

Adicionalmente, serão implantados:

Transformador elevador: 1 (um) 4.000 kVA, 60Hz, trifásico, 380 V / 13.800V;

Linha de interconexão com a rede da Concessionária;

Painéis, disjuntores, relés de proteção e controle na alta e baixa tensão;

Sistema de sincronismo, medição e despacho.

A usina disponibilizará sua energia através da subestação elevadora 380 V/ 13.800 V e de uma linha em 13.800 V, em alumínio, circuito simples, com aproximadamente 10 Km de extensão, conectando-se esta à linha da concessionária de distribuição.

O orçamento previsto para este projeto é de R$ 5.725 mil, sendo que apenas o grupo gerador representa 57% do investimento. A avaliação de viabilidade do projeto considerou as mesmas premissas de financiamento do BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, concedida aos projetos selecionados pelo PROINFA - Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia.

Considerando-se uma taxa de oportunidade do capital próprio, ou taxa interna de retorno de 15,0% ao ano, o custo de comercialização da energia que viabilize o projeto é de R$ 155 / MWh.

Comparando-se com o valor que o PROINFA estaria disposto a pagar pela energia advinda de projetos a biogás, R$ 166,31/ MWh, segundo Audiência Pública de julho de 2003, o projeto seria viável econômico-financeiramente. Mesmo sendo viável no âmbito do PROINFA, ele não pode ser contratado pela ELETROBRÁS - Centrais Elétricas Brasileiras S.A., pois a Portaria MME nº 45, de 30 de março de 2004, restringiu o PROINFA ao biogás de aterro, pagando-lhe R$ 169,08/ MWh, eliminando a possibilidade de participação do biogás da vinhaça de cana-de-açúcar.

4.2 - Biodigestão da vinhaça ao longo do ano

A simulação a ser apresentada neste item considera a utilização de um açude de decantação de 300 mil m3, ao invés de um tanque de 20 mil m3. O armazenamento da vinhaça em grandes açudes é uma realidade comum nas usinas do interior do Estado de Pernambuco. Com um açude de armazenamento, a produção de biogás pode ser normalizada durante todo o ano, o que traz os seguintes benefícios:

Menor investimento em grupos geradores;

Diminuição da temperatura da vinhaça de aproximadamente 55ºC para 35ºC, o que melhora a ação das bactérias.

Considerando-se as mesmas premissas do item anterior, e as duas vantagens acima, o custo de comercialização da energia que viabilize o projeto passa de R$ 155 / MWh para R$ 117 / MWh. Esta diferença retrata o custo ambiental pelo armazenamento da vinhaça, esses R$ 38 / MWh representam um volume anual de aproximadamente R$ 450 mil.

Entretanto, na prática, o que se verifica é uma inviabilidade de construção de um açude de 300 mil m3 nas usinas localizadas no Estado de São Paulo, em decorrência da aplicação e existência de uma legislação ambiental mais rigorosa do que a encontrada no Estado de Pernambuco.

 

5. Conclusões

O risco de alteração no suprimento de gás natural boliviano, devido à instabilidade política daquele país, a escalada de preços internacional do petróleo, e a crise eletro-energética brasileira dos anos 2001/02 devido ao baixo deplecionamento dos reservatórios são fatores mais do que suficientes para se pensar a biomassa como alternativa fundamental para o atendimento das necessidades energéticas brasileiras. Mais do que isso, como a alta nos preços do petróleo afeta os Estados Unidos, União Européia e a Ásia mais do que o próprio Brasil, e, recentemente a crise entre a Rússia e a Ucrânia quanto aos gasodutos que abastecem a Europa, elevam a biomassa como uma alternativa de interesse para a matriz energética mundial.

No caso brasileiro, em que a cana-de-açúcar é o principal expoente da biomassa, sua utilização não pode se restringir a produção de álcool e queima do bagaço. Dentro de um conceito de "fazenda de energia", todos os subprodutos da cana devem ser aproveitados, como a palha da cana e a vinhaça, residuária do processo de produção de açúcar e álcool.

Posto isso, esse trabalho analisou a viabilidade técnica e econômica da utilização da vinhaça para produção de biogás, para geração de energia elétrica. Através da digestão anaeróbia em um reator Fluxo Ascendente (UASB), pode-se concluir que há a viabilidade técnica para a geração de eletricidade a partir do biogás da vinhaça.

Confirmada a viabilidade tecnológica, o passo seguinte é a avaliação econômico-financeira do projeto, cujo resultado é extremamente influenciado pelo tratamento ambiental da própria vinhaça. Considerando-se uma situação de crime ambiental, com o despejo da vinhaça em um açude, sem qualquer preparo prévio, a tarifa de comercialização que viabiliza o projeto é em torno de R$ 117 / MWh. Considerando-se que no 1º Leilão de Energia de Novos Empreendimentos, de 16 de dezembro de 2005, em que o ICB - Índice Custo Benefício da geração termelétrica chegou a R$ 139,0 / MWh, pode-se concluir que o projeto seria economicamente viável nessas condições.

Entretanto, embora se constate essa prática de armazenamento da vinhaça no Estado de Pernambuco, a legislação e sua aplicação no Estado de São Paulo são bem mais severas, impedindo essa situação de crime ambiental. Desta forma, a vinhaça deverá ser totalmente utilizada no processo de biodigestão durante os meses de safra, sem qualquer armazenamento em açude, o que elevariam os custos de investimentos, sendo necessária uma tarifa de comercialização de energia em torno de R$ 155 / MWh. Assim sendo, pode-se concluir pela inviabilidade econômica do projeto, uma vez que não se pode admitir a estocagem da vinhaça, já que as conseqüências, mesmo sob a ótica keynesiana, não são mensuráveis financeiramente. Não há preço que pague os impactos ambientais de um tratamento imprudente da vinhaça.

Por fim, pode-se constatar que seu maior apelo é ambiental, pois representa uma alternativa de tratamento de rejeito agrícola, que causa mau cheiro e apresenta um pH muito ácido para ser utilizado diretamente na ferti-irrigação. Infelizmente, a questão ambiental não foi considerada pelo MME quando da contratação dos projetos do PROINFA, o qual, em seu início aceitava qualquer forma de biogás, mas restringiu a tecnologia ao biogás de aterro, a um mês dos interessados se apresentarem à ELETROBRÁS, sendo perdida, assim, uma grande "janela de oportunidade" para o biogás da vinhaça de cana-de-açúcar.

 

6. Bibliografia

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[19] PIACENTE, Fabrício José & PIACENTE, Erik Augusto. Desenvolvimento sustentável na agroindústria canavieira: uma discussão sobre resíduos.

[20] THOMAZ Júnior, Antonio. "Por trás dos canaviais os "nós" da cana.A relação capital x trabalho e o movimento sindical dos trabalhadores na agroindústria canavieira paulista". São Paulo Annnablume /FAPESP 2002

[21] VAN HAANDEL, Adrianus. "Valorização de subprodutos gerados nas destilarias de álcool", 2003.

 

 

1 Categorização descrita em KAREKEZI, LATA & COELHO (2004): Biomassa tradicional para fins energéticos (utilização em combustão direta); biomassa tradicional melhorada (melhoria nos processos de combustão) e biomassa moderna para fins energéticos (se refere à conversão de biomassa em combustíveis líquidos e gasosos). Ver op.cit à pág 3.
2 Tempo de retenção hidráulica (TRH) é o período no qual a matéria orgânica a ser digerida permanece no digestor.
3 Deve-se enfatizar que a acomodação da vinhaça no açude deve atender aos requisitos de disposição de efluentes. Problemas associados à acomodação inadequada ou mesmo infiltração escoamento ou percolação da vinhaça no solo são conhecidos: Ver HASSUDA (1989:84-85; IN Piancente): infiltração da vinhaça na água subterrânea indisponibiliza sua potabilidade um vez que transfere para o lençol freático altas concentrações de amônia, magnésio, alumínio, ferro, manganês, cloreto e matéria orgânica; LUDOVICE (1996:72; IN Piancente): solos sob os canais de escoamento de vinhaça são excessivamente suscetíveis a contaminação por percolação da ordem de 91,4%, colocando em risco a potabilidade dos lençóis freáticos; SINABUCO et al (1996; IN Piancente): analisando a percolação de vinhaça nas águas subterrâneas durante a safra de 1995 em São João da Boa Vista através de fluorescência de raio X constatou a presença de metais pesados em amostras de água do lençol freático.