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On-line ISBN 85-86736-06-6
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An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP 2002
Os desafios éticos da educação
Francis Imbert 1
Vou começar com uma anedota que se passa em Saint-Alban, municipalidade francesa situada no departamento da Lozère, numa das estradas seguidas pelos peregrinos a caminho de Santiago de Compostela. Lá, no ponto mais alto do vilarejo, a 1000 m de altitude, encontra-se um hospital psiquiátrico construído em cima do que costumava ser um hospício de alienados edificado no comecinho do século XIX. Essa história diz respeito à existência de caminhos, de locais de hospitalidade e de cuidados. O período que vou evocar começa em 1936 com a chegada de Paul Balvet, novo médico-diretor, no hospital psiquiátrico. Nos anos de 1936-1937 o Front Populaire (Frente Popular) estava no governo. Pouco depois viria a guerra da Espanha, a guerra de 1939, a ocupação, a Resistência, os maquis. E finalmente a Liberação.
É nesse contexto que, em Saint-Alban, ocorreria uma revolução no campo da psiquiatria. Em 1938, Balvet exige que os doentes sejam desamarrados. Mais tarde, sob a direção de seus seguidores, entre outros, Bonnafé, Chaurand, Tosquelles, o hospital «ia ver suas grades sumirem, seus muros desabarem, suas portas se abrirem para o exterior, para o vilarejo, para os campos dos arredores. Ao mesmo tempo, por essas mesmas portas abertas chegariam a Saint-Alban muitos visitantes: intelectuais, médicos, estagiários, entre os quais Jean Oury» (Boulet, 1978). O engajamento do hospital na Resistência provocaria o questionamento tanto do universo concentracionário nazista quanto do mundo carcerário em que os loucos eram mantidos. Seria também determinante, nesse contexto, a chegada, em 1941, de François Tosquelles, psiquiatra catalã obrigado a fugir da Espanha onde fora condenado à morte depois da vitória de Franco.
Esse momento marca o nascimento da Psicoterapia Institucional. Nascimento do qual François Tosquelles lembra os momentos cruciais (1973): «Quando o doutor Chaurand chegou no final de 1940, o serviço infantil dispunha da primeira cooperativa escolar. As reuniões entre crianças e entre crianças e adultos já existiam; com o estabelecimento tipográfico de Freinet, o Jornal vira à luz. A saída das crianças para o exterior e as excursões na região despertaram o interesse do setor psiquiátrico e, sobretudo, os atendentes e alguns doentes começaram a pressionar para que algo semelhante possa ocorrer com os adultos. Em 1942, os acontecimentos da Resistência facilitaram muito a evolução. Falsos doentes escondidos e os próprios feridos do maquis devolviam um valor humano positivo aos doentes adultos». A própria fome generalizada - que provocou a morte de 40.000 pessoas nos hospitais psiquiátricos franceses durante a Ocupação - justificou a saída dos doentes para o exterior; onde podiam trabalhar nos campos com os camponeses e receber em troca a ajuda alimentar que lhes permitiria sobreviver. Este engajamento dos doentes nas trocas econômicas levou à criação do «Clube» - a instituição que articularia entre elas as atividades de compra e venda, os lazeres e as tarefas propriamente psicoterapeûticas. Isto mostra claramente que o desafio ao mesmo tempo ético, terapêutico e político era o de restaurar a troca humana numa pluralidade de níveis e, no mesmo gesto, o manter-se-de-pé dos sujeitos.
Lembramos que a palavra in-stituição deriva da raiz sto, «manter-se em pé»; o contrário do estado de fusão-confusão característico das relações duais próprias do registro imaginário: no sentido lacaniano aquele em que o eu se encontra captado pela própria imagem, como ilustrado pelo mito de Narciso, ou pela imagem do outro - um outro eu que pode então estar sobrando: «Se é você, eu não sou. Se sou eu, é você que não é» (Lacan, 1978). Esses impasses duais resultam do fracasso da função simbólica em intervir como «terceiro» separador.
Psiquiatras tomam emprestado de professores - mestres preocupados em instituir, em mobilizar o manter-se dos sujeitos - ferramentas de rearticulação do vínculo social aptos a sustentar a emergência do desejo, da palavra, da capacidade de se pôr em ato enquanto sujeito, mesmo quando esses atributos humanos pareciam ter desaparecido. Alguns anos mais tarde, Jean Oury, poderá dizer a seu irmão Fernand, professor primário num subúrbio de Paris, que era mesmo uma «Pedagogia Institucional» que ele estava a ponto de elaborar e praticar a partir das técnicas Freinet. Uma pedagogia que envolve a dimensão simbólica por meio de uma rede de instituições, de mediações, um conjunto de dispositivos «terceiros» que suportam a inscrição/reinscrição da lei;convidam o sujeito a sair dos impasses das relações duais. Trata-se de introduzir, onde se desenvolve uma espécie de «massa» com seus sistemas de embrulhamento e de contágio, uma lei, de modo que cada um possa se desembrulhar e se diferenciar (J. Oury, 1986).
Na escola este desafio da lei que autoriza cada um a manter-se é mais do que nunca crucial pois o sem-lei constitui hoje o risco maior como Fernand Oury já frisara desde 1983. A autoridade repressiva começava a dar lugar à «nocividade das escolas sem lei». «Regulamentos estúpidos faziam as vezes de lei; mais nada, a selva. Os alunos costumavam ser cercados, segurados, contidos; ei-los liberados, abandonados, desnorteados [...] Depois a prisão, o deserto. Não havia mais pontos de referência, limites reconhecidos e muito menos leis decididas em comum».
Continuo a partir de outra entrada. Em 1960, em seu Seminário sobre a Identificação, Lacan enfatizava a identificação pelo «traço unário» que retomava de Freud. É em Psicologia das massas e análise do eu que Freud (1921) delineia uma identificação «parcial, extremamente limitada, e [que] toma de empréstimo apenas um traço único da pessoa-objeto». A identificação pelo «traço unário» evita as captações imaginárias e seus efeitos de fascínio que, precisava Freud, se desenvolvem como uma «infeção psíquica», «na base de um poder se colocar ou de um querer se colocar na mesma situação» que a «pessoa copiada». Nesse tipo de identificação «ocorre uma confusão, entre as pessoas, em que não se sabe mais exatamente quem se é», quem fala, quem age (Vasquez & Oury, 1967).
Trata-se da identificação «parcial», da qual a Pedagogia Institucional faria, na esteira de Lacan, um de seus pontos de referência teóricos maiores. Essa identificação coloca a confusão em xeque porque ela «permanece mínima» e diz respeito a um traço simbólico e não à imagem do mestre: «o sujeito identifica-se apenas a um traço portado por uma pessoa e é por esse motivo que ele pode permanecer enquanto sujeito». F. Oury e A. Vasquez observam que o mestre «que escuta, que deixa falar, permite que cada criança tenha, na aula, ‘acesso a uma fala verdadeira’, isso na medida em que a criança tomar do mestre, como traço distintivo, justamente essa lei da linguagem».
Cabe ainda acrescentar que esse «deixar falar», esse «acesso à fala verdadeira» implica tempos, locais regulados - instituições - adaptados à sua emergência; articular essas instituições, este é o desafio crucial de uma praxis pedagógica. Trata-se de se dar as ferramentas que abram, mobilizem, interpelem o desejo, permitam que cada um possa se pôr em ato enquanto sujeito atos e tome seu lugar nas aprendizagens.
Em Quem é o conselho? (1979) F. Oury nos diz ter se deparado um dia, em Paris, com um ex-aluno seu do ensino fundamental. O homem estava nos seus trinta anos. Perguntou a Oury: «O senhor se lembra da aula cooperativa? 1953?’’ E lá foi ele: o jornal, as equipes, o nome dos responsáveis, os ofícios, as oficinas, as ‘'leis da aula’’, os Conselhos [...]. Hoje, torneiro na Hispano, militante sindical e político, Roland parece estar bem na sua pele. Ele diz rindo: ‘‘Sou professor primário aos sábados à tarde, com uns amigos e amigas. Os moleques como eu, que têm dificuldade para aprender, não dá para deixar afundar; então, com voluntários, fazemos textos (livres) e problemas (vividos). E funciona.». Aqui, com certeza, não houve identificação imaginária ao mestre, mas identificação simbólica, uma identificação a alguns «traços»: a importância da fala, do escrever e do ler, da auto-organização; tantos «traços» que o mestre tinha mobilizado pela implementação na aula de dispositivos, de instituições aptas a sustentar o desejo de aprender.
Alguns anos mais cedo, F. Oury (1972) observava: «Muito mais do que o pai [na família], o professor primário da aula ativa pode renunciar a seu papel diretor. Ele aceita de bom grado deixar-se exceder pois, ao progredirem, seus alunos trabalham sozinhos, tomam iniciativas e assumem responsabilidades que o liberam de seu trabalho». Mas não se enganem, esse trabalhar sozinhos, essa tomada de iniciativas nada têm a ver com as ilusões de uma pedagogia não-diretiva - nem com sua ideologia incestuosa e sua evitação da castração. Não se trata para o docente de «fazer de seu aluno um ‘semelhante’ que poderia amar e por quem gostaria de ser amado» (Cordié, 1998). A mola aqui é todo um trabalho teórico e prático de articulação de dispositivos - de instituições - que mobilizam inter-ditos, pontos de referência, limites, e envolvem o desejo, convidam a se pôr em ato enquanto sujeito: falas que fazem ato.
A esse preço, o docente pode não mais esgotar sua presença nos desafios imaginários-narcísicos. Pois, cercado por crianças que falam e podem intervir sobre o que ocorre, ele se encontra numa situação em que pode despertar de alguns entusiasmos transferenciais, de algumas confusões; de alguns amores prestes a mergulhar na rejeição e no ódio. As instituições da aula lhe permitem desenredar-se, reencontrar seus marcos, permanecer no trabalho, escapar da loucura de relações duais.
Tudo isto nos leva à aposta ética que constitui o cerne da praxis pedagógica. Aposta que fundamentava a Psicoterapia Institucional. Eu cito algumas linhas redigidas por um dos médicos de Saint-Alban: «Por mais engajado em sua loucura que se possa descobrir o alienado, não se pode não descobri-lo ao mesmo tempo guardião de algum vestígio de sua dimensão social; é sobre essa dimensão sempre presente que é preciso agir; pois se a alienação mental é sempre o feito de uma queda da sociabilidade, a dimensão social do alienado, mesmo quando este se encontra excluído da polis, ainda não desaparece; ela é consubstancial de seu ser, só desapareceria com seu próprio ser» (citado por Tosquelles, 1984). Por seu lado Fernand Oury, o professor primário, depois de ter evocado uma criança de 8 anos, «apagada, macilenta, silenciosa», criança que «se apaga, extingue a si mesmo», conclui: «não quero acreditar que ela não exista» (Vasquez & Oury, 1971). E mais adiante, continua: «escolhemos dar a palavra àqueles que não a têm. Essa escolha se fundamenta numa aposta que a muitos parece otimista: não só eles têm algo a dizer, mas costumam saber do quê estão falando».
Afirmamos que se, na escola, há uma partida a se jogar é mesmo porque a criança violenta, a criança em fracasso, a criança que padece, estão no desejo de «existir», de tomar seu lugar e de aprender; é porque esperam que o Outro invente caminhos, comece a abrir a passagem; que dê o primeiro passo e que, assim fazendo, ela, a criança, seja convidada, possa convidar-se, a dar o próximo passo.
Apresento, a seguir, uma monografia que vou comentar rapidamente para ilustrar essa importância das instituições que a Pedagogia Institucional mobiliza. Aqui trata-se de um Quoi de neuf? (Quais as novidades?), um tempo de palavra, muito regulado, no qual as crianças podem inscrever-se e dispor de um tempo para falar de problemas ou de acontecimentos que não dizem respeito ao funcionamento do grupo, mas antes a uma outra instituição: o Conselho.
Naquela manhã, Malik, 6 anos, inscreve-se no Quoi de neuf? na sua aula da escola maternal. Chegada a sua vez, ele senta na cadeira reservada «àquele que fala». Ele murmura algumas palavras. Mal dá para ouvir sua voz, a não ser quem está muito perto dele. «A gente não escutou nada, a gente não entendeu nada» bradam os que estão no fundo. Peço a Malik para repetir mais alto o que acaba de dizer. Seu olhar se fixa então no fundo da sala, acima do olhar dos outros.
Malik decidiu falar. Ele colocou a carta com seu nome no painel de inscrição do Quoi de neuf?. Mas ele não pode sustentar sua fala, nem seu olhar. Em que provação se engajou? Por que se inscreveu e decidiu falar?
Diz ele: «Ontem com minha irmã maior e uma amiga dela, fomos roubar umas coisas no Carrefour, a gente correu muito rápido, ninguém nos pegou.» Depois de um momento de silêncio, uma tempestade de protestos se levantou. Após eu lembrar que cada um havia de falar na sua vez, quase todos os dedos se levantam.
Rachid: «Nossa! Malik, não deve fazer isto, não deve roubar.»
Mohamed: «Se você rouba , eles vão te pegar e te pôr na prisão.»
Nacine: «Eles vão te pôr algemas!»
Yacine que nunca tomara a palavra no Quoi de neuf?: «É preciso dar dinheiro quando a gente pega algo.»
Malik não tem mais o olhar vago de agora há pouco. Ele fixa com atenção cada criança que lhe fala.
Esta criança que sentia tantas dificuldades para falar não parece mais encontrar o menor obstáculo. Pelo contrário, o êxito é completo. Então, por que tanta dificuldade para contar essa história? Ou ainda, por que vir expor-se às críticas?
É quando as acusações começam a chover sobre ela que o olhar da criança deixa de fugir! O olhar que se esquivava dá lugar a um olhar que chama a mordacidade de cada fala. Como se seu olhar dissesse a cada um: «Fala. Estou aqui para que me lembre os limites. Ninguém me pára... para-me...»
A criança recebe o que veio buscar: a recordação do interdito. Ele se engajou numa provação na qual trata de sacrificar sua onipotência imaginária - de submeter-se à castração simbólica.
Acabou. Pergunto se alguém tem mais algo para dizer a Malik. Rachid levanta o dedo: «Não é a culpa de Malik, é culpa de sua irmã porque ela é grande. É preciso dizer à tua irmã não roubar». Malik responde «Tá, vou dizer a ela».
Malik, até então em posição de acusado vê-se encarregado de uma fala a transmitir; encarregado de recordar a lei. Agora é à sua irmã que isso diz respeito.
Ao mesmo tempo, Rachid manda Malik dar um passo a mais em direção a seu vir-a-ser-sujeito. Isto no intuito de separar-se deste estado em que se deixou levar na esteira de sua irmã. A fala que Rachid o convida a levar à sua irmã seria: «eu me separo, não serei mais enredado em seus roubos e arroubos... você, separa-se de sua pulsão de roubar.»
Às 16:30, a irmã, de 12 anos, vem me procurar. Ela parece preocupada. «É verdade, diz ela, que Malik lhe disse que a gente roubou no Carrefour?» Respondo: «Não posso repetir o que se diz no Quoi de neuf?, mas posso te dizer uma coisa: não faça besteiras». A criança me olha demoradamente e diz: «Tá bom», em seguida pega seu irmãozinho pela mão e vai embora.
Uma mensagem efetivamente passou de Malik para sua irmã; uma mensagem que diz respeito à reinscrição da lei; uma mensagem que levou a irmã a vir, por sua vez, expor-se à fala que pára.
Alguns dias mais tarde, Malik se inscreve de novo no Quoi de neuf?. Ele nos diz que não gosta da noite porque seu irmão maior o pega para levá-lo dormir com ele. Uma criança lhe responde: «Tem que falar com teus pais».
Depois de sua relação com a irmã, Malik vem trabalhar sua relação com o irmão. Ele se expõe de novo ao inter-dito; ao «não» que o retirará do seu lugar de objeto de gozo.
Uma semana mais tarde, Malik se inscreve mais uma vez e nos diz calmamente: «Meu irmão não é mais meu amigo porque eu não quero mais dormir com ele». Djamel, 5 anos, lhe responde: «Um irmão maior deve ter amigos maiores e você deve ter amigos de sua idade. Então não é grave, é melhor dormir na sua cama».
Malik vem atestar o cumprimento de seu trabalho. A criança perdida no seu roubo, a criança sugada pelo outro, tomou seu lugar.
Referências bibliográficas
Boulet, A (1978). Six années de classe avec des enfants ‘‘fous’’. Paris, Editions du Scarabée.
Cordié, A (1998). Malaise chez l’enseignant. L’éducation confrontée à la psychanalyse. Paris, Seuil.
Freud, S (1921). Psychologie des masses et analyse du moi. uvres complètes, volume XVI. Paris, Puf, 1991.
Lacan, J (1978). Le Séminaire, livre II. Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse. Paris, Seuil.
Oury, F (1983). Entretien. Pédagogie institutionnelle et psychiatrie. VST, 149.
Oury, F et Pain, J (1972). Chronique de l’école caserne. Paris, Maspéro.
Oury, J (1986), Séminaire de Sainte-Anne. Le collectif. Paris, Editions du Scarabée.
Pochet, C et Oury, F (1979). « Qui c’est l’Conseil ! ». Paris, Maspéro.
Tosquelles, F (1973). A propos de psychothérapie institutionnelle. Connexions, n° 6. Paris, Epi.
Tosquelles, F (1984). Education & psychothérapie institutionnelle. Mantes-la-Ville, Hiatus Edition.
Vasquez, A et Oury, F (1967). Vers une pédagogie institutionnelle. Paris, Maspéro. Vigneux, Matrice, 1991.
1Psicanalista, Professor do IUFM de Créteil - França. Autor - dentre outros - de A Questão da Etica no Campo Educativo, Petrópolis: Vozes, 2001.