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On-line ISBN 85-86736-06-6
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An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP 2002
Flávia Schilling 1
"Quando uso uma palavra –
disse Humpty Dumpty em tom escarninho –
ela significa exatamente aquilo eu quero que
signifique... nem mais nem menos. A questão –
ponderou Alice – é saber se o senhor pode
fazer as palavras dizerem coisas diferentes.
A questão – replicou Humpty Dumpty –
é saber quem é que manda. É só isso.
Como socióloga, acompanho com grande interesse há muito tempo os debates e propostas de duas áreas fundamentais, pois fundadoras das nossas possibilidades de pensar e agir na modernidade e na nossa candente e atormentada contemporaneidade. Os debates da área "psi" e os debates da área jurídica, especialmente os que ocorrem em torno dos direitos, pois, segundo o próprio Foucault (1985), um dos núcleos da luta e resistência na modernidade é aquele que assume as propostas do bio-poder, dando-lhes novo sentido ou tomando-as "ao pé-da-l etra". Afinal, nós resistimos, lutamos, transformando nossas reivindicações por mais vida, saúde, felicidade, demandando direitos e produzindo leis que positivam estes direitos. Acompanho com interesse as lutas das vanguardas "psi", com sua luta antimanicomial e sua problematização da loucura, só para citar um exemplo, e, como um complemento interessante, o das vanguardas jurídicas, com a luta pela abolição do direito penal. Vejo, nos dois casos, o exercício da crítica radical a pilares fundadores do nosso mundo moderno. Estamos, nestes casos, realizando o eixo da postura crítica da modernidade que comporta a pergunta central: como não ser governado desta forma, por estes meios, para estes fins..? (Foucault, 1990:38)
Meu ponto de vista será, portanto, de simpatizante, de uma simpatizante socióloga. Trabalharei inicialmente com uma certa problematização deste objeto que hoje nos agrega neste seminário, ou seja "ética", discutindo o contexto de sua emergência na cena brasileira. Contarei duas histórias que aproximam o tema da ética com um tema que considero central do Brasil – o tema das promessas. Tentarei uma primeira aproximação desta discussão sobre o tema das promessas com o da ética na educação.
***
Comentava, há poucos dias, sobre a proliferação dos eventos que tratam sobre a ética. Só para exemplificar, nestes próximas 10 dias em São Paulo, teremos 5 eventos que chamam seu público para se encontrar em torno da ética, discutir a ética - três, sobre a ética na educação, um sobre a ética na comunicação e um sobre a ética e a cultura. Com certeza devemos ter muitos outros eventos sobre o tema, que desconheço. Isto me deixa curiosa: porque "ética", como uma palavra – chave, uma palavra aglutinadora, palavra valise, mágica, ferradura? Qual será o sentido da educação como lugar especial para a ética? Qual é, em última instância, o significado de discutirmos a ética em tempos de guerra?
Penso ser interessante problematizar esta proliferação. Um momento de destaque para a problematização de um objeto, é o da sua emergência na cena pública, na cena política. O momento da emergência em/na cena de uma questão tornada "social" nos sugere não apenas um momento de aparecimento de algo, mas também um momento de uma convocação urgente para agir. Este é o momento em que se verifica quem será convocado, quem será excluído desta produção de sentido, quem será "legítimo", que será desqualificado ou deslegitimado. "Emergência" tem este duplo significado aqui: aparecimento e urgência, algo que provoca, que exige ações urgentes.
Sugiro situar a emergência pública desta questão da ética no brasil no movimento pela ética na política, que surge quando se investigam as atividades ilícitas do Sr. Paulo César Farias que envolvem o então presidente da república, Fernando Collor de Mello. Ironia da história, pois a bandeira da ética na política havia sido empunhada inicialmente pelo próprio candidato à presidência, F.Collor, prometendo acabar com a corrupção, com os ‘marajás" da república. É evidente que a palavra circula amplamente há muito tempo: as comissões e conselhos de ética, os códigos de ética, etc., existem há longo tempo, porém, sem levar multidões às ruas em sua defesa.
São investigações que geram um CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito- , uma Denúncia que é acolhida no Congresso e leva à grande cena do impeachment. Estamos no ano da graça de 1992. As perguntas são: quais são os discursos que mobilizam, que geram este movimento pela ética na política? Qual seria a relação entre ética e política, como estas se relacionam naqueles discursos?
Os discursos que se criam na relatoria da CPI, na peça de Denúncia de Barbosa Lima Sobrinho e Marcelo Lavenère e na Acusação contra Fernando Collor de autoria de Evandro Lins e Silva e Sérgio Sérvulo da Cunha têm como ponto central o de promessas não cumpridas, levando à discussão da mentira na política.
O tema central do relatório final da CPI apresenta-se logo em sua abertura: "conhecereis a verdade e a verdade vos libertará". Diz o relatório em sua apresentação: "no âmbito da sua conturbada história política recente, a sociedade brasileira foi embalada, na campanha de 89, pela promessa de limpidez e probidade"(Congresso, 1992:30). Esta encerra-se com a seguinte frase: "É preciso mudar. Mudar é urgente. É preciso mudar a ética do poder (...) a vocação nacional para a grandeza passa pela postura ética de cada cidadão e de cada brasileiro" (idem, 32). O relatório como um todo narra a história da quebras de promessas.2 Naquele momento, ainda segundo o relatório, o sentido da representação parlamentar passa a ser dado por sua necessidade de interpretar e exprimir o sentido ético dominante, que se expressa pela presença do povo nas ruas, pelos abaixo-assinados de tanta gente, das mobilizações das associações civis e partidos.
Na Denúncia, de autoria de Barbosa Lima Sobrinho e Marcelo Lavenère, argumenta-se que a traição – às promessas – e a perda da confiança pública decorrente da mentira levariam a que o denunciado (o presidente) perdesse a autoridade necessária para o exercício da presidência.
Na Acusação, de Evandro Lins e Silva, apresentada na sessão que decide pelo impeachment a argumentação é clara: "Para chegar à cural de primeiro magistrado, empunhou a bandeira do combate à corrupção, da defesa da ética na vida pública (...) o discurso era sedutor, mas falso (...) Mentiu, sem dúvida, mentiu" (Senado, 11/11/1992:1592-1593).
O tema da ética surge na cena pública, ligado à quebra de promessas, o que significa a quebra dos laços de confiança, o que levaria à impossibilidade de governar.
Recuperando a análise de Georg Simmel (1977) sobre a confiança, vemos que este autor propõe que construímos nossas decisões sobre um complicado sistema de representações, a maioria das quais depende da confiança em não sermos enganados.
A confiança é uma hipótese sobre a conduta futura do outro, hipótese que atua como garantia para a ação prática. Se as relações entre os homens estão necessariamente fundadas na mistura de saber e de desconhecimento sobre si e sobre os outros, qual é o grau tolerável deste saber e desta ignorância, assim como o grau ótimo desta relação que permite fundar a ação comum? Estes graus toleráveis de verdade e de mentira, de saber e de ignorância dependem das diferentes épocas históricas, das diferentes esferas da sociedade, dos indivíduos. Sendo o suporte para a ação comum, a relação entre saber e desconhecimento sobre quem é o outro, a confiança, assim como a relação entre a veracidade e a mentira, tornam-se pontos centrais nas relações entre os homens. (Simmel, 1977:362-368)
Diz também Hannah Arendt: "toda organização dos homens, seja social ou política, se baseia fundamentalmente na capacidade do homem de fazer promessas e mantê-las"(Arendt, 1973:82). Esta é a base para todas as ações políticas, a condição para todas as virtudes políticas. Diz Arendt que a promessa é o modo exclusivamente humano de ordenar o futuro, tornando-o previsível e seguro até onde for humanamente possível. Se a imprevisibilidade e a irreversibilidade são inerentes à ação humana, existe a promessa e o perdão como seus contrapontos necessários. A promessa seria a força estabilizadora e ordenadora em luta constante contra os efeitos da imprevisibilidade da conduta humana, contra as mudanças das circunstâncias provocadas pela própria ação conjunta dos homens.
A relação entre moral e política é pensada por esta autora através das mediações do perdão e da promessa: "na medida em que a moralidade é mais que a soma total de mores, costumes e padrões de comportamento consolidados pela tradição e validados à base de acordo - e tanto a tradição como os acordos mudam com o tempo -, a própria moralidade não tem outro apoio, pelo menos no plano político, senão a boa intenção de neutralizar os enormes riscos da ação através da disposição de perdoar e ser perdoado, de fazer promessas e cumpri-las". (Arendt, 1981:257).
Emerge este tema da ética, portanto, na ação política. Emerge vinculado às promessas – às promessas não cumpridas, ao "futuro que nunca chega", à idéia de uma país possível onde tivéssemos relações mais justas. O tema da ética, a partir daquele momento, torna-se um tema recorrente nos debates, torna-se uma palavra de todos, que circula, que "está na boca do povo".
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Uma história inquieta: a história de um menino da FEBEM.
É a história de um menino pobre, com uma carreira institucional por orfanatos, internatos, casas de correição, com 12 anos. O reverso do poder?
O que temos deste menino são duas coisas: um ato – esquarteja, durante uma das rebeliões do ano passado acontecida na FEBEM, um menino como ele; um ato, portanto e uma frase, surpreendentemente publicada em jornal de grande circulação: "ele disse que ia fazer e não fez; eu, quando digo, faço".
Podemos ler esta frase assim: ele cumpre suas promessas – mesmo sendo promessas de morte. Ele não agüenta mais o não cumprimento de promessas – mesmo sendo a da promessa de sua morte.
Podemos perguntar: quantas promessas não cumpridas ele viveu, em seus 12 anos, para chegar a este ponto de exasperação com promessas não cumpridas? Quantas promessas nacionais, institucionais, familiares não foram cumpridas? A do Brasil – o país do futuro (que nunca chega) com sua vocação nacional para a grandeza? "A vocação nacional para a grandeza passa pela postura ética de cada cidadão e de cada brasileiro.." diz o relatório da CPI que investiga PCFarias e, por extensão, F.Collor.
Estuda e terás um vida melhor? Escolariza-te e terás um lugar ao sol no mercado de trabalho? Que mercado de trabalho?
Tema, portanto, que emerge na vida pública, na política. Que percorre o país, apoiado no discurso sobre as promessas, sobre a verdade na política, se contrapondo ao discurso das promessas não cumpridas e da mentira.
Sugerindo a necessidade de formulação de promessas - ou de uma nova relação que vá além das promessas -– que sejam efetivamente cumpridas; sugerindo a formulação de novas verdades, mesmo precárias e provisórias; sugerindo, enfim uma construção de uma nova base para o viver juntos recuperando a possibilidade da confiança.
Tema que hoje, aparentemente, deslocou-se da política para a educação. Será a escola o lugar privilegiado para a construção / discussão da ética, das novas promessas societárias? Aceitaremos este deslocamento do público e do político para esta instituição específica?
A história da escola hoje: será uma história de promessas não cumpridas/ de mentiras? Será ainda a escola o lugar de uma promessa de um futuro melhor?
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Outra história inquieta: a história da usuária do CRAVI – Centro de Referência e Apoio à Vítima.3
Esta senhora foi chamada por uma vizinha para aconselhar um garoto de 10 anos, que expressava querer seguir a carreira do tio – ladrão e, portanto, queria abandonar a escola. A senhora conselheira conversou com o menino da seguinte forma: "não larga a escola, continua a estudar. Tu quer ficar no montão, no amontoado que nem teu tio que é ladrão e tá na cadeia com um monte de gente, no aperto? Se tu estuda, não precisa ficar no amontoado, vai ficar na cela especial, com frigobar e tudo!!!"
Será esta a função, hoje, principal da escola? Construir um privilégio – poder ficar na cadeia na cela especial por ter educação de nível superior? Claro que esta senhora foi sábia: se o menino fica na escola talvez tenha chance de descobrir outros caminhos além daquele do mundo do crime, que já estava dado como uma possibilidade, como um dos códigos de inserção profissional no mundo daquela família.
Este tema – o da ética - está na escola, na educação e está no mundo. A escola, a educação, novamente será vista como o locus privilegiado da transformação do mundo? Superará o mundo? Penso que a escola repercute estas questões e deve encarar o desafio para a formulação das novas promessas que lhe são específicas e possíveis. A escola só servirá para a prisão especial? Qual será a relação da escola com a justiça com a construção de uma sociedade mais igualitária? Qual será sua relação com o mercado, com o mundo do trabalho? Qual será sua relação com a invenção das novas formas da solidariedade? Como construirá seus diálogos, evitando o descumprimento de promessas ou inventar novas falsas promessas?
Estas respostas serão necessariamente coletivas e políticas. Quero concluir sugerindo a inserção desta discussão sobre ética e educação na discussão do mundo, nesta tentativa que estamos fazendo nesta lenta e tortuosa construção/ invenção da democracia no Brasil, de traçar uma nova relação entre governantes e governados, que passa pela formulação de uma nova visão da confiança e da promessa formuladas coletivamente e que possibilitem o agir conjunto. Para finalizar, nada como voltar ao início, para ver se muito foi perdido pelo caminho:
"Porque a democracia se baseia no princípio da confiança e da boa-fé, e não do medo, ela sucumbe quando a esfera do público perde transparência e se vê permeada pelo segredo e pela mentira, que é o que ocorre quando a palavra esconde e engana, ao invés de revelar, conforme determina o princípio ético da veracidade"(Lafer, 1994:234).
Bibliografia
ARENDT, Hannah. Crises da República. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1973. A Condição Humana. São Paulo, Forense Universitária/ EDUSP, 1981
CONGRESSO NACIONAL. Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito 52/92. Brasília, Edição revisada. Centro Gráfico do Senado Federal, agosto de 1992.
LAFER, Celso. "A mentira: um capítulo das relações entre ética e política". In NOVAES, Adauto (org.) Ética. São Paulo, Cia. Das Letras, 1994.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade –A Vontade de Saber. Vol.1. Rio de Janeiro, Graal, 1985.
_________________ "Qu’est-ce que la Critique?" Bulletin de la Société Française de Philosophie. 84(2), 1990.
SENADO FEDERAL. Ofício SGM/P 1388: Denúncia de Barbosa Lima Sobrinho e Marcelo Lavenère Machado. Diário do Congresso Nacional, ano XLVII, Suplemento ao n.162, Brasília, 1/10/1992.
Senado Federal como órgão judiciário: alegações finais de Evandro Lins e Silva e Sérgio Sérvulo da Cunha. Diário do Congresso Nacional, Seção II, 11/11/92.
SCHILLING, Flávia. Corrupção: ilegalidade intolerável? CPIs e a luta contra a corrupção no Brasil (1980-1992). São Paulo, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Complexo Jurídico Damásio de Jesús, 1999.
"Governantes & Governados, público e privado: alguns significados da luta contra a corrupção, o segredo e a mentira na política". Revista da USP. Dossiê Direitos Humanos no Limiar do Século XXI. São Paulo, USP, n.37, 1998.
SIMMEL, Georg. Estudios sobre las formas de socialización. Madri, Alianza Editorial, 1977.
1 Doutora em Sociologia, Professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Foi coordenadora geral do Centro de Referência e Apoio à Vítima - CRAVI e consultora da Comissão da Mulher do Parlamento Latinoamericano.
2 Os destaques em sublinhado são de minha autoria.
3 O CRAVI é um projeto público que reúne a Secretaria da Justiça e defesa da cidadania, a Secretaria da Assistência e Desenvolvimento Social e a Procuradoria Geral do Estado, com parcerias da sociedade civil, como a da PUC, da FMU, do Instituto Sou da Paz, do Instituto Therapon e outras. Atende familiares de vítimas de crimes fatais e outros casos graves de violência.