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On-line ISBN 85-86736-06-6
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An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP 2002
A escrita na clínica psicanalítica de crianças
M. Cristina M. Kupfer1
Um caso de psicose infantil
A. é um garoto de 11 anos já alfabetizado. No entanto, depois da morte de seu avô materno, começou a demonstrar sinais de perda daquilo que já havia conquistado em seu processo de alfabetização. A estruturação de frases se desorganizou, dando lugar a uma divisão silábica estranha: cortava as palavras que devia escrever, e aglutinava as sílabas assim separadas às palavras que vinham a seguir. Chegava a juntar o pedaço da última palavra da frase, portanto imediatamente anterior ao ponto, com a palavra que iniciava a frase seguinte, o que fazia o ponto desaparecer, e implicava a perda do ritmo das frases. Com isso, a leitura retroativa, condição para a emergência do sentido, não podia ser realizada e assim A. não entendia o que lia.
A morte de seu avô significou, para ele, a perda de seu verdadeiro pai, pois ele afirmava ser filho de seu avô materno. Logo após essa morte, deprimiu-se profundamente, e passou a afirmar que não tinha pai, embora seu pai estivesse vivo e junto a ele.
Como pensar esse fragmento clínico?
Pode-se retomar, aqui, uma formulação escrita a respeito do que está em jogo na psicose, e que tomou como base aquilo que Maud Mannoni escrevera sobre o mesmo tema. Naquele texto, escrito em 1996, lê-se: "Pode-se dizer, grosseiramente, que em uma criança dita psicótica ´o que falta é a falta´. Dito de outro modo, a estrutura que as organiza pode ser comparada à de uma frase melódica sem um repouso na tônica, o que equivale a uma frase sem ponto final. A falta de ponto final, de uma pausa no enunciado, de um momento de conclusão, impede a emergência do sentido. As palavras voam sem o necessário momento de pausa, o momento que teria permitido o movimento de retroação e de compreensão do que havia sido enunciado até aí. A parada, renúncia à entrega ao movimento da linguagem, que tende para o constante deslocamento, implica que se introduza aí uma falta, uma suspensão, sem a qual no entanto o sentido não pode advir. Então, o que se diz é que falta à criança dita psicótica o equivalente a esse ponto final, falta-lhe esse momento de interrupção, e o sentido que não pode então advir." (Kupfer, 1996)
Quando estamos tratando da estrutura do sujeito, o equivalente a esse ponto final é justamente o Nome-do-Pai, que para A. encontra-se forcluído. O pai por ele designado (ou melhor, por sua mãe) para exercer essa função está impedido justamente por sua posição incestuosa, e a A. não pode mesmo restar nenhum pai disponível. É visível a desorganização que se instala pela perda de uma referência paterna já bastante frágil por não poder sustentar-se em um Édipo legitimamente construído.
Em sua escrita, o desaparecimento do ponto final das frases atesta com veemência essa correspondência entre a função exercida pelo significante Nome-do-Pai na estruturação do sujeito do inconsciente e a função exercida pelo ponto final em uma frase. Mostra sobretudo uma correspondência entre a escrita do inconsciente e a escrita ortográfica.
A escrita do inconsciente pode ser pensada como a matéria prima, o fio que tece o inconsciente, e feita do conjunto de inscrições que se transformarão depois em significantes pelo efeito da operação significante.
A escrita ortográfica mantém relações com essa escrita do inconsciente. Ao contrário do que intui a experiência vivida por nós, essa escrita ortográfica não é uma representação da fala, mas é uma fonetização do que já estava escrito como escrita inconsciente: eis a hipótese sobre o surgimento da escrita ortográfica proposta por Lacan.
Para usar uma metáfora de Lacan (1966), a escrita inconsciente é uma espécie de sistema estruturado com os caracteres litográficos montados para permitir a impressão de uma página, e a escrita ortográfica aquilo que será impresso a partir dessas letras de chumbo. Ele afirma que "um elemento essencial na própria palavra estava predestinado a fluir nos caracteres móveis que, Didots ou Garamonds prensando em caixa baixa, presentificam validamente o que chamamos de letra, a saber, a estrutura essencialmente localizada do significante" (p. 501).
Se antes Lacan afirmava ser o inconsciente estruturado como linguagem, o tratamento posterior que ele dá à noção de letra leva-o a dizer que o inconsciente está estruturado como escrita.
É preciso pensar a escrita inconsciente como sendo a materialidade sobre a qual se sustenta o que virá a ser a escrita ortográfica. Sendo materialidade e não significação, ela é feita também de intervalos e de suspensões ou de escansões como o ponto. A. perdeu tanto os intervalos ou espaços entre as palavras, como o ponto, elementos que constituem a materialidade sobre a qual se sustenta a escrita inconsciente.
O intervalo ou espaço entre as palavras pode então, desta perspectiva, ser considerado também como um significante, além de ser um dos traços mais típicos e próprios da escrita ortográfica, justamente porque o espaço não está presente quando se fala. Muitas crianças ouvem as palavras de modo aglutinado, mas não as escrevem assim, porque sua escrita já se estabelece em submissão ao Outro, ou ao olhar do Outro, que determina a legalidade própria da escrita e submete a criança ao chamado pacto simbólico.
Vejam-se, por exemplo, os comentários feitos por Miller(1996) a respeito de um texto de Michel Leiri, A regra do jogo: "Ele nos fornece um ensaio de descrição do modo do ser falante na linguagem justamente anterior ao alfabeto(...). Mostra um sujeito lidando com monstros, monstros orais, como ele expressa, onde ocorrem vínculos que não são da ordem lexical, com interferências, assonâncias, recortes singulares" (p. 98).
Pequena mesa, petite table, torna-se, para os ouvidos de Michel Leiri, peti tetable, pequenamesa, como sugere o tradutor do texto de Miller.
Graciliano Ramos, ao ouvir a leitura de um texto, também aglutinou palavras: ter-te-ão tornou-se Terteão, nome de um personagem misterioso.
Ver o espaço, um significante, é uma operação que passa necessariamente pelo olhar do Outro, como assinala Jerusalinsky (2001). "O morfema da língua [como um acento, ou um intervalo, por exemplo] não faz significante de um modo direto, ou seja, poderíamos dizer que não se constitui como significante senão através do olhar do Outro".
Porém, se não há Outro operando essa função, "olhando", por assim dizer, se não há então a referência paterna, os espaços se desfazem e se misturam, tornam-se aleatórios, tornam-se signos a serem colocados em qualquer lugar da série.
Eis como a escrita ortográfica pode figurar na clínica psicanalítica como a expressão mesma de uma estrutura como a da psicose.
A aprendizagem da escrita e seus problemas na escola.
Também na escola pode-se entender a escrita da criança como algo que revela a posição em que um sujeito se encontra, ou o modo como está constituído.
Serão aqui assinaladas três situações. A primeira delas é a que se encontra no cotidiano da clínica psicanalítica, e tem estatuto de sintoma.
Os erros de escrita como sintoma analítico
Eis um caso de Françoise Dolto (1969) que ilustra essa situação. Trata-se de uma criança que estava indo muito bem nas classes preparatórias. "De repente, no fim do ano escolar, esta criança que começava a ler e escrever, tornou-se profundamente perturbada e sobretudo disléxica(...). Ela invertia a primeira e a segunda letra, bem como a penúltima e a última das palavras. Por exemplo, escrevia rávore ao invés de árvore e caas ao invés de casa.(...)A motivaçào desta criança para ir bem na escola era clara, pois ele dizia: ‘antes eu conseguia, e agora não consigo mais’. Antes. Antes do que? Não sabia. O ‘antes’ ficava assim, no absoluto".
"Não vou lhes dar os detalhes de tudo que se passou, mas foi a partir de um desenho a respeito do qual essa criança falou que pudemos, juntos, compreender seu problema"(...) O cisne voava para o lado esquerdo do desenho. ‘Teria sido melhor, dizia a criança, que ele tivesse voado no sentido contrário. - Ah, sim? - E também, acrescentava ele contemplando seu desenho, teria sido melhor que o pântano ficasse do lado esquerdo em vez de ficar do lado direito - Ah, sim? (...) E eu pensava alto com ele: ‘Este cisne no céu, não significaria que seria bom se alguma coisa estivesse estado no lugar de outra em sua vida? Será que algo se passou em sua vida, em sua família, em que você pensou que alguém deveria ter tomado o lugar de um outro ou que deveria estar no lugar de um outro?"
"Sabia, por seus pais, que ele tinha um irmão três anos mais velho de quem ele gostava muito, e que era mongólico. Esse irmão o acompanhara na escola até a idade de treze anos. Mas desta vez, a criança iria passar de ano, e seu irmão iria repetir (...)".
"Não teria sido a partir do momento em que soube que seu irmão não ficaria mais em seu mesmo nível escolar, mas ficaria para trás em relação a ele, que essa criança passou a inverter a ordem das letras? Pois bem, era isso. A resolução dos sintomas que se seguiu o demonstrou. Ele teria querido voltar a ser pequeno, para que seu irmão mais velho continuasse a ser mais velho na escola".
Nesse caso, a inversão na escrita, que também aparece no desenho, é uma expressão direta, ponto a ponto, da questão em jogo para aquela criança. Embora esse sintoma tenha sido lido como expressão simbólica, no sentido de que simboliza o sofrimento em questão, há também nessas falhas da escrita uma demonstração de que o sintoma pode ter uma face material, espacial, que incide, por exemplo, sobre a posição das letras. Desse outro ponto de vista, a escrita é analisada em um plano que não é mais o daquele em que as palavras significam algo, mas é o plano em que se olha a escrita a partir do modo como se fizeram as primeiras inscrições, a partir do modo como se estabeleceu a escrita inconsciente.
Os erros de escrita como sintomas reativos
Um exemplo citado por Patto (1990) – e resumido por Kupfer (1997) na citação que se segue – alude a um problema de escrita instalado pelo modo como a escola aborda as diferenças de classe. "Uma professora acabara de ensinar à classe a grafia das palavras bota e bola. Uma das alunas lhe perguntou, então: "existe lata?". A professora reagiu com fúria à pergunta da aluna, desqualificou-a, julgou-a absurda - como ela não sabe que existe lata? - e fez a aluna calar-se - talvez para sempre. O que a professora não percebeu foi o fato de que aquela aluna estava justamente iniciando o exercício de pensar sozinha, juntando as sílabas la e ta das palavras aprendidas para dar origem - existência - a uma nova palavra. Mas expressou-se de um modo que não pertencia à norma culta, e perdeu o direito de ser escutada. O "mal" de pensar sozinha foi cortado pela raíz, em uma cena banal do cotidiano escolar".
Até há pouco tempo, costumava-se dizer que esses eram os "problemas de aprendizagem" mais comuns no mundo de hoje. Problemas reativos, no dizer de Alicia Fernandes, porque surgiam como reação à abordagem institucional, escolar, da aprendizagem da leitura e da escrita. Parece, no entanto, que esse cenário está mudando.
Uma escrita "sem vida"
Há atualmente um número cada vez maior de crianças que não chegam a constituir verdadeiramente uma escrita própria. São "fracassadas silenciosas", que terminam a escolarização sem domínio da escrita, mas não fazem grande alarde disso. Escrevem mal, mas têm em relação a essa, digamos, incapacidade, uma enorme indiferença. Pouco se lhes dá que não escrevam bem, ou de modo correto. Não emprestam vida ao que escrevem.
Poderiam estar próximas da escrita da criança psicótica, mas de fato não estão. O Pai que preside a essas novas manifestações sintomáticas não é o mesmo Pai, forcluído, da psicose. Trata-se, no caso dos fracassados silenciosos, do efeito, neles, do Pai desqualificado da modernidade.
Veja-se como Jean-Jacques Rassial (2001) entende essas manifestações na relação com o Pai moderno. Esse autor parte da suposição que o desejo de saber baseia-se na crença de que o Pai sabe sobre o desejo da mãe, ou seja, sabe sobre o gozo do Outro. Essa promessa de saber, realizada pelo Pai, sustenta para a criança a ilusão de que um dia poderá aceder a esse saber. Sustenta portanto o desejo de saber e a aplicação da criança na escola.
Ora, essa sustentação declinou com o declínio do Pai, com a desqualificação do Pai operada pelo discurso social na modernidade. As crianças ficam sabendo, mais cedo do que deveriam, que não há saber possível sobre o gozo do Outro. Desfazem-se, antes da adolescência, a crença no Pai, a crença em sua promessa de gozo, a ilusão de que poderão saber. É isso então, segundo Rassial, que produz novas formas psicopatológicas, como a depressão infantil. É isso então, pode-se acrescentar, que produz essa nova relação indiferente, desinteressada, depressiva, desvitalizada, com a escrita, característica de tantos alunos da escola moderna.
Quando se trata desse tipo de problema, o Pai em jogo é uma função que se instala mal porque não pode se apoiar em uma rede de sustentação simbólica. O Pai como função existe, porém não encontra essa rede que o confirma, e que deveria estar sendo reafirmada na escola, na mídia. O resultado é a perda da crença nessa promessa, que se desfaz mais cedo do que devia.
Não é isso que ocorre na psicose: ali se trata do efeito de uma certa fantasmática parental, cujo efeito é a derrocada da função paterna, e não apenas o seu enfraquecimento.
Direções na escola e no tratamento
Em alguns casos de psicose infantil, parece ser possível propor tratamentos em que a escrita teria um papel preponderante: ajudar no reordenamento da escrita poderia ser uma via de acesso ao reordenamento da relação do sujeito com a linguagem.
Nos casos em que está em jogo a desqualificação do Pai, trata-se para a escola de reafirmar a crença na possibilidade de um saber que ultrapasse o saber sobre o gozo materno.
Um bom exemplo do que pode ser feito pela escola e pelo aprendizado da escrita encontra-se em Graciliano Ramos. Em um texto autobiográfico, o autor luta para aprender a ler e a escrever, mas fracassa inúmeras vezes, decepcionando um pai que o atemoriza. Termina escrevendo: "E eu fiquei triste, remoendo a promessa de meu pai, aguardando novas decepções".
Já não acreditava mais naquelas promessas, e sabia que viriam ainda novas decepções. E o que fez então? Aprendeu a escrever para poder falar justamente de suas decepções, para poder contar sobre as promessas que não se realizaram.
Vê-se aí um Pai que declinou, para Graciliano, muito cedo. Mas se vê ainda uma torsão. É como se ele tivesse dito: se não posso saber sobre o gozo do Outro, escreverei, farei relatos a respeito dessa impossibilidade. O texto mencionado é justamente um terstemunho dessa experiência.
Essa é, aliás, uma saída possível da análise. O desejo de analista é definido como desejo de saber, que paradoxalmente é relacionado a saber ser um rebotalho (Quinet, 1998).
Seria possível aceder a uma saída como a da análise na escola? Graciliano a obteve com a escrita. A escola, por intermédio do ensino da escrita, poderá ser para algumas crianças o instrumento de subversão da queda do Pai?
Referências Bibliográficas
KUPFER, M.C.M. (1996). Apresentação da Pré-escola terapêutica Lugar de Vida. Estilos da Clínica. Revista sobre os problemas da infância. São Paulo, Pré-escola terapêutica Lugar de Vida, vol 1, n. 1.
KUPFER, M.C.M. (1997). Afetividade e cognição : uma dicotomia em discussão. Idéias . Revista da Fundação para o desenvolvimento da Educação (FDE), n. 28.
LACAN, J. (1966). Função e campo da palavra. In: Ecrits. Paris, Seuil.
MILLER, J.A. (1996). O escrito na palavra. Orientação lacaniana. São Paulo, sexta lição.
JERUSALINSKY, A. (2001). A ortografia e a instância da letra. Inédito.
DOLTO, Françoise (1969). L’échec scolaire. Paris, Seuil.
RASSIAL, J.J. (2001). Aula proferida no curso de pós-graduação do Instituto de Psicologia da USP. Inédito.
QUINET, A. (1989). As quatro +1 condições da análise. Rio de Janeiro, Zahar.
PATTO, M.H.(1990) A produção do fracasso escolar. São Paulo, Queirós.
1Psicanalista. Professora do Instituto de Psicologia da USP. Diretora da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida IP/USP. Co-Coordenadora do LEPSI IP/FE-USP e Co-Editora de Estilos da Clínica. Revista sobre a infância com Problemas.