3A criança: do organismo ao corpoPsicanálise e educação: revendo algumas observações e hipóteses a respeito de uma (im)possível conexão author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 85-86736-06-6

An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP 2002

 

Ensinar Aprender

 

Eliane Marta Teixeira Lopes 1

Tu me ensina a fazer renda
eu te ensino a namorar...

 

 

Introdução

Desde o primeiro seminário2 apresentado por Esteban Levin fui deixando que as palavras funcionassem em mim como anzóis – anzóis de palavras pescando o que não era palavra. Percebi que nesta mesa de que participo o de que me incumbia era de produzir um saber, transmitir o que não sabia. Teria de construir outra coisa, pois aquilo de que precisava eu não tinha. São palavras de Levin naquele dia: a criança tem que construir algo que não está, por isto se apaixona; constrói e elabora algo que a angustia; não busca conhecer-se mas desconhecer-se; modelos são diferentes de enigmas; faz-nos falta um terceiro, quem é o terceiro? No seu seminário - Violência da escola, violência na escola. As alternativas da Pedagogia Institucional3 - Francis Imbert fez referências, em diferentes passagens, ao tiers, que faz a mediação, e à dimensão simbólica. Em certo momento, diz claramente de une pédagogie qui mobilise la dimension symbolique, que permita a entrada de um terceiro e de escapar à loucura que são as relações duais.

E é assim que introduzo a História como um tiers, um terceiro, que poderá oferecer uma saída para as relações duais, tão comuns e tão próprias da pedagogia. Tão impróprias.

Já que no início era o verbo e só depois viria o sujeito, falemos do verbo ensinar. Ensinar pode ser qualquer coisa, a qualquer pessoa, até a si próprio. Talvez só não se ensine a ensinar. Ensinar vem do latim insignare e quer dizer, lá na sua origem, indicar, designar. Em designar há -signar, de signum, palavra. Desde seus primeiros empregos, há em signum um elemento que permite concluir pela existência de uma coisa ausente. Ou seja: ensinar é fazer conhecer através de um signo (o signo é o que permite concluir a existência de uma coisa ausente).

A complexidade que é recorrer ao mais especial dos signos, a palavra, para dela fazer conhecer é enorme, e não vamos nos iludir acreditando que o conhecimento da etimologia resolva para nós a dificuldade da palavra e do ato em toda sua extensão.

Já no século V, Agostinho, que ainda não era santo, escreve o mais notável diálogo entre um mestre e um discípulo, conhecido até hoje como o De Magistro. Citando só um simples exemplo, do próprio Magistro, a que coisa ausente a palavra (=signum) nada me remete? A grande novidade que naquele momento o texto de Agostinho trazia, hoje já retomado pelos lingüistas, é a de que as palavras - os signos - nada ensinam, mas não se ensina sem elas.

Talvez a banalização das retóricas nos faça perder de vista a força e a dificuldade do ato em si. Outro dia telefonei a uma amiga. Quem atendeu ao telefone me informou: "ela foi ensinar". Ensinar, no senso comum, é quase um axioma: dispensa demonstrações. Mas ensinar não é coisa pouca.

O que depreendemos do que nos mostram filósofos e historiadores é que ensinar nunca foi ato isento de muita contradição4 e de muita perversão5 (sem recorrermos a significados e conceitos filosóficos e psicanalíticos).

Contradição porque se se ensina, é que alguém está aprendendo. Mas... sempre está? Sempre que se ensina a alguém – pois que ensinar pressupõe um outro – esse alguém aprende? Será possível pensar em castigo tão atroz quanto ensinar para ninguém, tanto quanto dizer missa em igreja vazia?

Perversão, porque não há nenhuma garantia de que exista uma correspondência entre os dois termos e, sendo assim, não há garantia para o ato.

O que é que o outro aprende depois que foi ensinado? Pode-se talvez, talvez !, ter certeza daquilo que se ensinou, o que o outro aprende ou aprendeu é uma aposta. É por isto que existem as provas, os exames, os testes. Só que, de novo, aí há um equívoco: se o outro não aprendeu o que se ensinou, nem por isto ele aprendeu errado. Pode ter aprendido o certo, só que a prova não alcançará o que ele aprendeu, mas tão somente o que se pretendeu ensinar. E o que há então é uma questão de posição. Na posição em que o outro – o aprendiz - se encontra não terá chance de provar o que aprendeu, pois que a outra posição exige que mostre o que foi ensinado, tal qual foi ensinado.

Na língua francesa, há uma tal preocupação em fazer coincidir as duas coisas - ensinar e aprender - que a partir do século XII, contemporaneamente à escolástica, o verbo apprendre que já era aprender, torna-se, também, ensinar: apprendre quelque chose, mas também apprendre à quelqu’un. Posso atribuir a esse contorno da língua um sentido romântico e dizer que quem ensina aprende, que quem aprende pode ensinar etc., mas isto seria desconhecer o fato histórico de que é durante a escolástica, e não em outro momento qualquer, na França, que esta simultaneidade se dá. Não havia nada de romântico na escolástica. E tal concepção romântica de ensinar e aprender não era possível naquele momento histórico.

A escola medieval visava garantir a conservação e difusão de saberes, resguardando a ortodoxia e se opondo ao desenvolvimento de outros saberes julgados ilegítimos ou perigosos, e para isto era necessário garantir as condições favoráveis a que isto se desse. O recurso à rigorosa didática para o entendimento da revelação, para o entendimento da disputa/conciliação entre a fé e a razão, de que a escolástica não abria mão, oferece a dimensão da preocupação com a coincidência entre ensinar e aprender. Cabe aqui lembrar que a palavra didática é relativa a ensinar, mas essas duas palavras não se equivalem, pois a didática é do "próprio a instruir" e liga-se portanto a uma técnica.

Mesmo que a língua portuguesa não tenha criado essa filigrana de linguagem/pensamento, dado o baixo desenvolvimento da escolástica e à ausência de "homens de saber" em Portugal nessa época, guardou-se, pelo caráter sempre político do local destinado ao ensino – a escola -, a necessidade de fazer coincidir, à custa de muita didática, ensinar e aprender. É claro que houve aí uma nova perversão que é aquela que separa o sentido original grego de escola (Skolê) daquele que assumiu no império romano e mais tarde no cristianismo. Mas isto é outra conversa, talvez tão complicada quanto essa de ensinar – teoria e prática.

Se é verdade que em ensinar existe uma contradição e uma perversão, chegamos a uma aporia que, no limite, leva à desmobilização da própria transmissão entre humanos que, independente de qualquer teoria, existe.

Para sair dessa aporia, proponho pensar que ensinar é um ato de fé. Retomemos a palavra fé em sua origem para sabermos que no latim era fides confiança, lealdade, fidelidade. Foi o latim cristão que especializou o sentido do vocábulo em confiança em Deus, mas nada nos impede de desinvesti-la dessa especialização. Estamos, portanto, falando em como confiança, lealdade, que tem como valores fundamentais engajamento e consentimento.

O engajamento implica uma atitude humana solidária com as circunstâncias sociais e históricas em que vive, e procura, pois, ter consciência das suas conseqüências. No ato de ensinar, o engajamento exige que aquele que ensina admita ser impossível aí estar sem uma pressuposição que leve em conta a situação concreta que o cerca. Exige então consentimento.

Engajamento e consentimento no ato de ensinar são parte de uma atitude subjetiva na qual estão presentes sujeitos, ao menos dois - e dois a dois. Mesmo se no ensino se é três6 (Lopes, 1998).

Se chegamos a esse ponto concordando que ensinar é um ato de fé, obrigamo-nos a também concordar que é ter fé em. Depositar confiança em; confiar; acreditar; fazer fé em, levar fé em. No sujeito. No sujeito que é o ensinante; no sujeito que é o aprendiz.

É com isto que chegamos ao ponto de despojar o ato de ensinar de toda a moral para instalarmo-nos (e jamais confortavelmente) no campo da ética. É o debate ético que nos conduz a interrogar sobre princípios, sobre subjetividade, engajamento e distanciação. Difere-se da obediência a regras; situa-nos em outra corrente, diferente das prescrições, exortações e práticas morais ou moralizadoras capturantes de um ideal jamais atingido. Da ética tratam a psicanálise, a filosofia. Da moral tratam a religião, os regulamentos. Entre arte e ciência, entre o controle e aquilo que dele escapa, que nele fracassa, entre sujeitos e objetos, entre ensinantes e ensinados, aí estamos para pensar. Para escolher de que lado estaremos.

Ensinar é pensar e fazer pensar a palavra.

Seriam então as palavras mais potentes do que os métodos que usamos para transmitir? em última instância, as palavras independeriam dos métodos? Mas não é o método o núcleo duro do ensinamento, considerado eficaz ou não eficaz, competente ou não competente para transmitir determinado conteúdo? (ou pelo menos é isto que nos ensinam em aulas de como ensinar...)

Proporia, então, ensinar, mas ensinar como (um-a) psicanalista que não trabalha com o fato, mas com a linguagem, com a palavra. Tal é a idéia.... imenso é o desafio... Não chega a ser evidente para alguns que não se trata de mandar para o divã nem o ensinante nem o aprendiz se não quiserem ir, por isto afirmo que não se trata de ocupar esse lugar, mas de tomar - como quis e sugeriu Freud - a psicanálise como um novo instrumento de pesquisa. Nesta conexão o modo de pensar psicanalítico atua como um novo instrumento de pesquisa.. A possível relação entre a psicanálise e a educação é uma implicação e não uma aplicação.

Se a educação se insere em um conjunto disciplinar a que damos o nome de ciências humanas – e explicamos essa expressão como conhecimento do homem - então trata-se de falar, de produzir discursos sobre um mundo que é humano, não porque é habitado e feito por seres humanos, mas porque se pode dele falar. Humanizamos o que ocorre no mundo e em nós mesmos apenas ao falar disso, e no curso da fala aprendemos a ser humanos.(Arendt, 1987) Falar de uma história que pertence a todos, que nos formou e forjou, que faz-nos confrontar com seus produtos; homens e mulheres educados que absolutamente não são de nosso agrado, ou que são, mas que sempre nos e vos colocam interrogações: como se deu para que tudo ficasse assim? Que educação e suas contingências produziu tal homem e tal mulher? A educação é um ato de responsabilidade. Cada educador tem responsabilidade pela criança que tem à sua frente, mas é igualmente certo que cada educador tem responsabilidade pelo mundo que essa criança irá habitar, pois que já era habitado antes dela nascer. Tal é a tarefa dos que educam e dos que ensinam: humanizar o mundo – não só porque faz falar o discurso do homem, mas de alguma forma implicar os sujeitos que nela estão enredados.

 

Bibliografia

ARENDT, H. "Sobre a humanidade em tempos sombrios Reflexões sobre Lessing". In: Homens em tempos sombrios. São Paulo, Companhia das Letras 1987.

BOURDIEU, P. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1983.

CIFALI, M. "L’infini éducatif". In Fain, M. et alii Les trois métiers impossibles. Ves Rencontres psychanalytiques d’Aix en Provence. 1986. Paris, Les Belles Lettres, 1987.

ELIAS, N. Engagement et distanciation. Paris, Fayard, 1993.

FREUD, S. Obras Completas. Multiple interés de la psicoanalisis. Madrid, Editorial Biblioteca Nueva, 1973.Vol.II

LOPES, E. M. T. "Da Sagrada Missão Pedagógica". In: Lopes, E. (org.) A Psicanálise escuta a educação. Belo Horizonte, Autêntica, 1998.

MILLER, J-A. Percurso de Lacan. 2a ed. Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988.

 

 

1 Professora Titular da UFMG.
2 Seminário Pré-Colóquio "Clínica da Infância. A função do filho em questão"; 25/10/01; FEUSP
3 Seminário Pré- Colóquio do LEPSI; 25/10/01; FEUSP
4 [Do lat. contradictione] S. f. 1. Incoerência entre afirmação ou afirmações atuais e anteriores, entre palavras e ações; desacordo. 2. Contestação, impugnação; contradita. 3. Objeção, oposição.
5 [Do lat. perversione] S. f. 1. Ato ou efeito de perverter(-se). 2. Corrupção, desmoralização, depravação. 3. Alteração, transtorno: perversão do olfato, do gosto. 4. Med. Desvio ou perturbação de uma função normal, sobretudo no terreno psíquico.
6A tese de Santo Agostinho parece repousar sobre a idéia fundamental de que a minha verdade de indivíduo, como aquela de todos os outros tomadas individualmente, só é verdade porque é consubstanciada única e absoluta Verdade que habita cada um de nós. É possível encontrarmos essa reflexão contemporaneamente. Bourdieu (1983) nos ensina alguma coisa de semelhante ao que dizia Santo Agostinho:

Aquele ao qual se fala é alguém que tinha em estado potencial alguma coisa a dizer e que só o sabe quando isto lhe é dito. De uma certa maneira, o profeta não anuncia nada; ele só prega aos convertidos. Mas pregar aos convertidos também é fazer alguma coisa. É realizar essa operação tipicamente social, e quase mágica, este reencontro entre um já objetivado e uma espera implícita, entre uma linguagem e as disposições que só existem em estado prático".

Também ouvindo a psicanálise, (Miller,1988) estabelecemos uma atualização de Santo Agostinho, em um novo patamar de entendimento para o que possa vir a ser o Mestre Interior:

"É também o Outro da verdade, esse outro que é um terceiro em relação a todo diálogo, porque no diálogo de um com outro sempre está o que funciona como referência, tanto do acordo quanto do desacordo, o Outro do pacto quanto o Outro da controvérsia. Todo mundo sabe que se deve estar de acordo para realizar uma controvérsia, e isso é o que faz com que os diálogos sejam tão difíceis. Deve-se estar de acordo em alguns pontos fundamentais para poder-se escutar mutuamente. A esse respeito esse Outro da boa fé suposta está presente a partir do momento em que se escuta alguém, suposto também a partir do momento em que se fala a alguém. É o Outro da palavra que é o alocutário fundamental, a direção do discurso mais além daquele a quem se dirige. A quem falo agora? Falo aos que estão aqui, e falo também à coerência que tento manter. A teoria da comunicação esquece algo: no lugar do código, no local em que está o código, é que se elabora fundamentalmente a mensagem. (...) na comunicação humana o emissor recebe sua mensagem do receptor de forma invertida. O Outro de Lacan é também o Outro cujo inconsciente é o discurso, o Outro que no seio de mim mesmo me agita e por isso é também o outro do desejo, do desejo como inconsciente, esse desejo opaco para o sujeito, acerca do qual pede em certos casos, que lhe informem, recorrendo à cura psicanalítica. Mas ninguém, salvo ele mesmo, pode informar-lhe acerca do seu desejo através do circuito dessa comunicação que, vocês podem ver, não é a comunicação linear que se representa na teoria da comunicação".