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ISBN 85-86736-06-6 versão on-line

An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP 2002

 

A psicanálise e a depressão dos professores

Notas sobre a psicanálise e a história da profissão docente

 

Maria Cecília Cortez Christiano de Souza1

  Não possuo conhecimento especial nem capacidade de decidir sobre suaviabilidade, para testar a adequação dos métodos empregados ou medir a amplitude do inevitável hiato existente entre intenção e ato. O que lá está em preparo, mostra-se inacabado, tornando, portanto, baldada a investigação....
S. Freud

 

 

A depressão difusa na escola de hoje, a que tem como centro de propagação a sala dos professores, provem da ausência de sentido instalada no coração do projeto escolar. Essa falta de significado da escola para os alunos, tema pesquisado por autores como Jean-Yves Rocheix, Elizabeth Bautier e Bernard Charlot2 , possui esse reverso mal conhecido: se a escola não tem sentido para os alunos, inevitavelmente também não fará sentido para os professores.

Antes de tudo, é preciso lembrar, como disse Bernard Charlot, que ensinar nunca foi fácil. Nunca foi fácil, diz ele, por um motivo essencial: o professor tem por missão ensinar, que é meio, para o objetivo de levar o aluno a aprender, que é fim. E esse fim depende do desejo dos alunos. Não se pode exercer a profissão sem o engajamento do outro, sem seu desejo e mobilização, sem um uso em-si e para-si do conhecimento. E tal fato descarta a educação de qualquer possibilidade de controle: a psicanálise ensina que não se pode produzir o desejo. Pode-se incitar, multiplicar sinais e apelos, a relação do professor com o conhecimento exerce efeitos sedutores, etc. Mas definitivamente, é do aluno colocar-se ou não em movimento em direção ao saber.

As palavras de Freud sobre as três missões impossíveis - governar, educar, analisar - apontam justamente para esse paradoxo compartilhado por essas três profissões: a existência de um poder exercido sobre outro, e o fato desse poder ser puro vazio, pura nulidade, a não ser que o outro faça por si próprio o trabalho essencial. O trabalho fundamental da escola é o de aprender e o poder de nos fazer professores é dos alunos. Educar como missão impossível tornou-se, aliás, tema quase obrigatório, em diferentes versões e desdobramentos, nos escritos de psicanalistas ligados à educação. Se essas análises esclarecem aspectos do limite, da impossibilidade colocada pela presença do sujeito do inconsciente, a insistência em evidencia-los retira da escuta analítica o que há de novo e peculiar na depressão dos professores, na sua perda de palavra, de ação e de iniciativa, os novos ingredientes que a pós-modernidade adicionou a essa permanente impossibilidade.

Em outra pesquisa, François Dubet e Danilo Martucelli3 explicam que as crianças e jovens não recebem hoje a socialização prévia que permitia antes exercer o papel de alunos: não fingem mais que aprendem. Isso é saudado, pelos pedagogos, como uma conquista do direito de expressão - antes eles simulavam, hoje não mais. Os alunos deixaram de estender para o professor aquele macio edredom do silêncio por cima do qual a aula de alguma forma se desdobrava, enquanto suas mentes flutuavam, alhures. Tal fato é aplaudido como um avanço pedagógico: antes os alunos faziam semblante de aprender, hoje não só não fingem como nem escutam. Resta perguntar se isso é verdade e se for, uma real conquista. Sem dúvida, a psicanálise teria muito a dizer sobre isso.

Decorrência da educação familiar que acabou por se colidir com os valores do trabalho escolar, ou de famílias que entraram, através de seus filhos, só agora na escola, o ruído ensurdecedor das salas de aulas é assim interpretado por outros sociólogos. Alguns chamam a atenção sobre a hegemonia crescente dos métodos ativos no ensino fundamental, que fez equivaler algumas vezes aprender com manter crianças ocupadas. Desde a Escola Nova, a expressão e a cultura infantil e adolescente têm seu lugar assegurado na escola, sem que a escola tenha incorporado, verdadeiramente, essa expressão e essa cultura em suas finalidades pedagógicas. Assim , principalmente quando os valores da cultura jovem excluem a lógica da integração escolar, os alunos demonstram ostensivamente seu desinteresse e hostilidade em passagens ao ato, agredindo a escola e, sobretudo, os professores.

Enquanto, porém, a socialização, o encontro, e mesmo a violência podem ainda emprestar aos alunos alguma forma de sentido, aos professores, nem mesmo isso resta. Nada mais solitário e insensato que lecionar, dia após dia, ano após ano, para alunos que, como eles próprios dizem, não estão nem aí. Todos os que são professores conhecem essa experiência devastadora: ser profissional e psiquicamente demolido por crianças ou jovens que nos destituem do lugar de professores, não pelo fracasso, mas pela ausência, pela recusa em entrar no jogo da escola. As recomendações dos psicólogos e orientadores "tornem as aulas motivadoras, abandonem conteúdos rígidos, ensinem tudo que possa se transformar em vida e brinquedo" - soa quase como afronta. Injunção paradoxal, essa de dizer para professores deprimidos que suas aulas devem ser felizes. E que retira do professor sua razão de existir - transformado-o em simulacro de animador de circo, ao qual é pedido que se esforce para concorrer com a televisão.

A razão profunda da indiferença das crianças e da violência dos jovens reside exatamente aí. Pois se o único fundamento da escola pública, é o de que é melhor que crianças e jovens estejam na escola e não nas ruas, os professores se transformam não em animadores, mas em guardas. Guardas sorridentes, compassivos e desarmados, mas guardas. Não importa se construtivistas ou tradicionais: se os professores não ensinam e nada exigem dos alunos, curvando-se às suas demandas superficiais, são guardas. Os adolescentes agridem porque adivinham esse engodo intolerável.

Em relação aos alunos, esse escoamento de sentido da escola, num nível macro de análise, está relacionado à falência da escola como meio de ascensão social. Durante certa fase do capitalismo desenvolvimentista, uma política econômica de pleno emprego assegurava aos egressos da escola um lugar no mercado de trabalho. Hoje, a recessão econômica, a automação e as políticas neoliberais derrubaram essa ilusão. Ilusão porque a escola de outrora, dividida entre escolarização longa e curta, entre o caminho do secundário técnico, do normal e do propedêutico, reservava apenas para esse último o caminho real, o que conduzia à universidade, às altas posições no mercado de emprego e nos cargos de decisão. O projeto de ascensão social através da escola foi um jogo de cartas marcadas, e esse jogo sempre foi denunciado. No entanto, isso não impedia os professores de ensinar. A novidade agora é que as políticas econômicas, num certo nível, não mentem mais – não prometem inclusão nem repartição de riquezas às massas sem futuro. O projeto de ascensão social mudou de lugar. As crianças e jovens guardados pela escola são submetidos à mídia, que repete sem cessar a dispensa da escola nos valores do sexo fácil, da ganância e da notoriedade pelo espetáculo. A escola não quebra a ilusão relacionada à improbabilidade de um jovem pobre se tornar um milionário do star system. Nem há professores capazes de sustentar que as celebridades, exibidas semanalmente na capa da Revista Caras, não são exatamente modelos de humanidade. A publicidade lhes acena com uma vida inacessível, a escola, ao nada deles exigir, tem por função fechar seus olhos e barrar as portas do futuro.

Outros autores, alguns deles psicanalistas, falam desse curto-circuito como sintoma do mal-estar da cultura, referido como a flutuação das referências, como efeito do mercado sobre instituições, como decadência das grandes narrativas legitimadoras, através das quais a modernidade acreditava em si própria. Essa colocação ilumina um aspecto importante do problema, mas não desenha as inflexões específicas com que a crise da pós-modernidade atingiu a escola. Sabemos que uma das estratégias do esvaziamento da ação e do pensamento sobre a escola consiste em fazer uso de generalizações abusivas. Ou tratar o problema como se fosse caso particular de um fenômeno total, tão inexorável quanto o El Niño, aproximando-se assim da ideologia destinada a nos convencer que o inaceitável é o inevitável.

A depressão que toma conta dos professores tem raízes históricas e políticas, todos concordam. Contudo, é necessário emprestar maior nitidez e discernimento no desvendamento da rede discursiva endereçada aos professores. Nesses últimos anos, tais discursos oscilaram entre dois extremos - ou considerava os dados já jogados antes que se abrissem os portões da escola, ou se tomava o primeiro dia de aula como a primeira manhã do mundo. Se de um lado o discurso sociológico desobrigava os professores de compromisso, os discursos psicológicos e também psicanalíticos, paralisavam os professores pela culpa.

Torna-se também preciso apreender esse processo em perspectiva, pois a memória dos professores conserva essas marcas. A partir dos anos 60, sob a égide das teorias psicológicas desenvolvimentistas, que colocavam os alunos no centro do processo, ou das correntes radicais que apregoavam os benefícios de uma anti-escola, os professores foram ignorados. Deixaram, nessa época, de ter existência enquanto sujeitos implicados na dinâmica educativa. Quando ressurgiram, nos anos 70, foi para serem esmagados por um discurso que os acusava de contribuírem para a reprodução e para a legitimação das desigualdades sociais, mediante a imposição de um ensino identificado com a classe dominante ou mesmo de um mau ensino identificado com os interesses da dominação de classes. Nos anos 80, a suspeita justificou a multiplicação de discursos e das instâncias de controle dos professores. A década que coincide com o atual governo, além do refinamento das formas de avaliação, trouxe a novidade da inflação de diplomas, e a conseqüente retirada dos professores do que lhes restava de autonomia de julgamento, necessária para que certificados fossem dados de qualquer maneira. Não se deve estranhar, assim, que os professores não reajam a um discurso onipresente que subestima sua miséria e deslegitima sua missão.

Uma das saídas vislumbradas por aqueles que, como nós, nos debruçávamos sobre esse problema, foi buscar na história da educação a origem da crise que atualmente atinge professores. A história permite retirar da tradição a ganga conservadora com que o discurso hegemônico a envolveu e desatar amarras do passado que paralisam o presente. Como disse Benjamin, autoriza recuperar o cerne originário da tradição, capaz de restaurar o pacto entre gerações, para que derrotas se transformem em lutas inacabadas. Percorrendo a documentação constituída por memórias de alunos da escola brasileira recém-implantada, encontramos figuras de professores, anônimos em sua maioria. Um memorialista descreve, por exemplo, o mestre escola de sua cidade natal, imerso na vida comunitária e fazendo nela, modestamente, o papel de um homem pobre letrado de seu tempo:

"Passou a viver de rendas reduzidas num prédio do Recife. Criava galinhas. Aconselhava remédios. Vacinava crianças. Compunha bonitos logogrifos e, nas horas vagas, ensinava gratuitamente aos meninos pobres do engenho"4.

Graciliano Ramos apresenta assim uma das suas professoras de primeiras letras:

"Essa professora atrasada possuía raro talento para narrar histórias de Trancoso. Visitava-nos, prendia-nos até a meia noite com lendas e romances, que estirava e coloria admiravelmente. Nada me ensinou, mas transmitiu-me afeição às mentiras impressas".5

O romancista explica nesse trecho o desaparecimento dos professores da memória biográfica. O trabalho dos professores é anônimo, como o do professor de Recife, não só porque suas conseqüências só aparecem nas estatísticas demográficas, mas porque, no projeto iluminista está gravada a morte do professor como professor. A idéia da escola é a de que o saber crie uma diferença entre professores e alunos e, no limite, leve o aluno a ultrapassar simultaneamente seu professor e seu lugar de aluno. Naquilo que emprestou sentido à escola, estava o objetivo, enunciado por Kant, de criar sujeitos capazes de emitir, na polis, sem a tutela de outras pessoas, juízos racionais. Existe, pois, embutida no conhecimento tácito do adulto, a morte de seus professores.

Podemos também recorrer às memórias de Freud, já que estamos falando de autobiografias e de tradição. Há dois momentos importantes, nos relatos autobiográficos espalhados em sua obra, em que Freud recorre a idéia de tradição. Um deles é um texto comovedor, no qual, em plena ascensão do nazismo, proclama publicamente sua condição de judeu. Como um teólogo, que começa a afirmar sua crença primeiro pela enunciação de diversas negativas, Freud confessa que o que o liga ao judaísmo não é seu aspecto religioso, pois sempre foi ateu. Não é tampouco, diz ele, por conservar os costumes e tradições judaicas. Nem mesmo por defender o sionismo: "Sempre que sentia inclinação pelo entusiasmo nacional esforçava-me por suprimi-lo como sendo prejudicial e errado, alarmado pelos exemplos de advertência dos povos entre os quais nós judeus vivemos"6. O que o liga ao judaísmo é uma força emocional obscura, que não pode ser expressa em palavras, a tradição e identidade judaicas.

Há um segundo momento, provocado pelo encontro casual com um velho professor, em que Freud evoca esse conceito, usando quase as mesmas palavras :

"Caminhando pelas ruas de Viena — já de barbas grisalhas e vergado por todas as preocupações da vida familiar — podíamos encontrar inesperadamente algum cavalheiro idoso e bem conservado, ao qual saudávamos quase humildemente, porque o reconhecêramos como um de nossos antigos professores. ....Em momentos como esse, costumava achar que o tempo presente parecia mergulhar na obscuridade e os anos entre os dez e os dezoito surgiam dos escaninhos da memória, com todas as suas conjeturas e ilusões, suas deformações dolorosas e seus incentivadores sucessos — meus primeiros vislumbres de uma civilização extinta (que, no meu caso, deveria trazer-me tanta compensação quanto tudo o mais nas lutas da vida), meus primeiros contatos com as ciências, entre as quais me parecia aberta à escolha daquela à qual dedicaria os meus indubitavelmente inestimáveis serviços".

E novamente, aí, Freud nos remete a essa idéia de corrente obscura.

"Minha emoção ao encontrar meu velho mestre-escola adverte-me de que antes de tudo, devo admitir uma coisa: é difícil dizer se o que exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas, ou pela personalidade de nossos mestres. É verdade, no mínimo, que esta segunda preocupação constituía uma corrente oculta e constante em todos nós e, para muitos, os caminhos das ciências passavam apenas através de nossos professores".7

Nesse "para muitos" Freud inclui, sem dúvida, ele próprio. Pois não foi através da família, nem da tradição talmúdica, nem da comunidade judaica, o meio pelo qual Freud entrou contato com a grande cultura, da qual sua obra inteira testemunha domínio admirável. A Psicanálise é filha do Iluminismo, do Romantismo, das Humanidades e das Ciências - isso já foi dito. Mas o que se deixou de dizer é que, prosaicamente, é fruto do processo de subjetivação desencadeado pelo encontro de um menino judeu, pobre e inteligente, com uma boa escola8 e com bons professores:

"Nós os cortejávamos ou lhes virávamos as costas; imaginávamos neles simpatias e antipatias que provavelmente não existiam; estudávamos seu caráter e sobre ele formávamos ou deformávamos os nossos. Eles provocavam nossa mais enérgica oposição e forçavam-nos a uma submissão completa; bisbilhotávamos suas pequenas fraquezas e orgulhávamos-nos de sua excelência, seu conhecimento e sua justiça".9

Com sua entrada na educação através do caminho da clínica de crianças, os sucessores de Freud, identificando-se com a criança, ajudaram, anos mais tarde, a escrever o Livro Negro da Pedagogia, apontando os danos psíquicos, a inibição intelectual, a alienação do desejo e outros os desgastes causados por professores. Enquanto atividade crítica das ilusões, a psicanálise denunciou a educação como forma religiosa, que promete salvação de todos pelo mesmo processo de salvação de cada um. Foi dura em relação às apropriações desabusadas, apontando na pedagogia suas fraquezas teóricas e seu viés positivista, mostrando que não há a ciências dos métodos de ensino Adotou, algumas vezes, um tom arrogante e imperial, alinhando-se às demais psicologias na ambição de ter sua parte no botim do território pedagógico. Calou-se frente à exigência absurda de que todos os educadores fossem analisados com vistas a um "auto-aperfeiçoamento profissional" e quando se apontou a psicanálise como a grande panacéia pedagógica.

Hoje, as mútuas acusações entre psicanálise e educação estão ultrapassadas. Todos admitem que a psicanálise não pode existir como teoria una de uma práxis que não seja a clínica. Por outro lado, psicanalistas como Françis Imbert demonstram a complexidade da práxis docente, que lida com fragmentos de saberes de diversos, e que não pode ser confundida com a aplicação de seja lá qual teoria10. E que, de um ponto de vista analítico, uma contra-transferência negativa é a pior recomendação de uma aproximação para a análise. Quem não gosta de professores deve abster-se de freqüenta-los.11

A partir dessas transposições, outras perspectivas se abriram. O esforço teórico empenhado na delimitação de fronteiras destinadas a impedir que professores invadissem o terreno da psicanálise e arremedassem analistas, pode ser olhado sob outro ângulo. Pois dizer que a educação não é uma análise, implica na positividade de abrir o campo de significação sobre aquilo que a educação é, superados o luto dos educadores de não serem analistas e a idealização desse último ofício. Criticar ilusões não só requer a desmistificação das ingenuidades pedagógicas, significa também se atracar com certezas de discursos totalitários, como aquele que levou à demissão dos professores e como aquele que paralisou professores pela culpa. Entre o irresponsabilidade e a culpa, a psicanálise também tem algo a dizer. O que leva, no fim das contas, a possibilitar o resgate da dignidade do ofício docente.

Trata-se assim de religar os professores à tradição que se encontra na raiz política de sua vocação. Segundo o Aurélio, professor é aquele que professa e ensina uma ciência, uma arte, uma técnica, uma disciplina. É um mestre e é um perito. É também aquele que professa publicamente sua crença numa verdade. Remeter os professores ao seu nome significa afirmar acima de tudo o direito à transmissão, com todas suas exigências internas, é certo, mas com todos os seus efeitos imponderáveis, contra todas as manobras que colocam o futuro do aluno como pré-fixado e num limite pré-indexado seu desejo. Afirmar a existência do sujeito inconsciente consiste também em negar que os economistas neoliberais tenham nas mãos as cordas do destino. Não só não adivinharam a queda do Muro de Berlim, como a pregação da globalização triunfante não sobreviveu à queda das torres gêmeas de Nova Yorque. Tanto quanto eles, os professores, os psicanalistas, todos não sabemos o futuro. Só o que sabemos é que ensinar a ignorância não se sustenta enquanto direito. É o mesmo que dizer que os nordestinos têm direito à fome, pois se tornaram anoréxicos. Na pior das hipóteses, cumprindo-se todos os efeitos das políticas de nossos ministros da economia, ainda assim é melhor ser um desempregado instruído do que um desempregado ignorante, é melhor ser um camelô, um traficante, uma garota de programa escolarizados do que formados sem uma verdadeira escola.

Quanto às crianças e adolescentes, é melhor ter ouvido uma voz dissonante daquilo que lhes enuncia a indústria cultural, mesmo que a palavra seja perdida, do que não a ter a ouvido nunca Temos que renunciar, em educação, à arrogância do discurso do tudo ou nada de 1968. Em educação, nada é pior do que não fazer nada. Na falta da escola, não só a sociedade desigual não deixa de se reproduzir, como se reproduz aprofundando as desigualdades, como exemplificam as transformações a que estamos assistindo, quando grande parte da população passa, passivamente, da pobreza à miséria. No limite, é melhor ser agredido por enunciar uma verdade do que ser confundido com um carcereiro idiota.

A psicanálise pode melhorar a vida das crianças e jovens, num sentido amplo e num sentido restrito, trabalhando junto aos professores para que recuperem a dignidade e o significado do trabalho, muito mais do que multiplicando cursos sobre a infância e a adolescência na sua formação. Renunciando a idéia de um tempo único e unidirecional, pela proposição de tempos múltiplos, a nova concepção da história possibilitou a integração da subjetividade no tempo histórico. Para além de todos os riscos que implicam uma afirmativa, em incompreensões que podem resvalam perigosamente pela nostalgia, é necessário reafirmar uma filiação comum, tanto para a psicanálise quanto para educação, em relação a essas forças emocionais obscuras de que fala Freud .

".. mais poderosas quanto menos pudessem ser expressas em palavras, bem como uma nítida consciência de identidade interna, a reserva segura de uma construção mental comum".12

 

 

1 Professora Associada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
2 Essa pesquisa conjunta realizada por Jean Yves Rocheix, psicólogo, Elizabeth Bautier, lingüista e Bernard Charlot, sociólogo foi amplamente divulgada por esses autores em diferentes publicações. Ver por exemplo ROCHEIX, Jean-Yves(1995) Rapports à l'école - rapports aux savoirs - Revue Spirales Paris, n°8 . pp. 25 - 37. Ver também CHARLOT, Bernard. (1996) Relação com o saber e com a escola entre estudantes de periferia. Caderno de Pesquisa - Fundação Carlos Chagas. São Paulo, n.97, p.47-63.
3 François Dubet et Danilo Martuccelli. Á L'École: Sociologie de l'expérience scolaire. CADIS (CNRS, EHES, Université de Bordeaux II) Paris, Ed. Du Seuil, 1995.
4 Bello, Júlio. (1938) Memórias de um Senhor de Engenho. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio ed. p. 8.
5 Graciliano Ramos. Infância.. Prefácio de Octávio de Faria 10a. Edição. S. Paulo, Martins, 1974.. p. 185 .
6 O discurso foi lido em nome de Freud numa reunião de uma associação filantrópica judaica, os Bnai Brith ( Filhos da Aliança) em 6 de maio de 1926. Freud, S. [1926] Discurso perante a sociedade dos Bnai Brith. In Obras Completas - Vol. XX p. 315-316.
7 Esse texto foi originalmente escrito para compor um volume comemorativo do 50o. aniversário do Sperlgymnasium, onde Freud estudou dos 9 aos 17 anos. Freud, S. [ 1914] Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar. Obras Completas- vol. XIII, p. 285 - 286.
8 Diz Freud em Um estudo autobiográfico [1926] com certo orgulho. No 'Gymnasium' fui o primeiro de minha turma durante sete anos e desfrutava ali de privilégios especiais, e quase nunca tive de ser examinado em aula.Freud, S. Obras Completas, vol. XX, p. 18.
9 Idem, ibidem.
10 Cf. Francis Imbert, Pour une praxis pédagogique, PI, Matrice, Paris 1986
11 Cf, Cifali, Mireille La dignité d'un métier - Revue Pratique de formation, Paris, 1992.
12 Freud, S.[1926] Opus cit. P. 316.