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On-line ISBN 85-86736-06-6
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An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP 2002
Re-visitando a infância contemporânea: passagens, possibilidades e destinos
Lucia Rabello de Castro 1
Fazer jus ao título convocante desta mesa-redonda – o término, ou mais cruelmente, a morte da infância – me remete a uma outra indagação que problematiza esta pergunta. Como e por que a infância, e somente a infância, pode ser considerada como morta, acabada? Por que não surge com igual força simbólica no horizonte de inquietações da nossa época, a morte da adolescência, ou ainda da adultidade? Se só a infância pode morrer, e morre basicamente para nós adultos, talvez não seja de todo impertinente indagar qual a ansiedade/angústia de morte que a infância de hoje nos evoca? Que profundos complexos são mobilizados em nós adultos para que perguntemos, cheios de temor e inquietação, "morreu a infância"? como? por que? Ou ainda, de quem foi a ‘culpa’? quem a matou?
Entretanto, estas provocações iniciais têm sentido apenas para dar uma fulguração rápida e antecipada, como também principalmente afetiva, do sentido fundamental da minha argumentação que retoma esta questão como deslizamento para pontuar quatro dimensões por onde fundamentaria qualquer discussão sobre a questão da infância no contemporâneo:
- a primeira diz respeito ao saber que opera sobre a infância, no sentido de posicioná-lo dentro de um ponto de vista construcionista. Neste sentido, o lugar de onde se pergunta sobre o término ou a morte da infância é isotrópico àquele que afirma que a infância foi "inventada", ou seja, a infância tal como a conhecemos é uma construção social e cultural da época moderna;
- a segunda dimensãodiz respeito ao sentido da infância, enquanto resultante de práticas discursivas e sociais, como apondo a adolescência, a adultidade e a senescência. Assim como homem e mulher, criança e adulto são construções que se definem reciprocamente, e como dispositivos discursivos para a ação e orientação no mundo surgem marcados pela posicionalidade, ou seja, construções da realidade a partir de determinadas condições de materialidade e posições de poder. Assim, as definições do que seja a criança e o adulto estão sempre enquistadas nas lutas, nos embates, nos confrontos e atritos entre os vários grupos de interesse na sociedade;
- a terceira dimensão diz respeito à construção das diferenças entre adultos e crianças. Crianças e adultos são, em qualquer cultura humana, nos dizem os antropólogos, considerados diferentes, mas sabe-se que esta diferença difere em épocas e culturas diversas, ou seja, a diferença é produzida social e historicamente. Quando, por exemplo, se anuncia a "adultização da infância", lamenta-se a perda de uma infância que se tornou essencializada e paradigmática;
- enfim, a quarta dimensão por onde se poderia dialetizar a proposição de uma morte da infância diz respeito a um sentido ético e político da construção da sociedade humana, e, por conseguinte, da própria infância enquanto possibilidade humana. A morte da infância parece se constituir como co-terminal a outros aspectos diagnosticados da nossa época, como o fim (ou, se o quiserem, a morte) da história, a morte do sujeito e assim por diante. Significa que em todos estes casos parodiamos não tão somente o fim, mas principalmente a impossibilidade do sonho, da utopia, da vontade política de um destino melhor, tanto para a história, como para o sujeito, ou como para a criança. Significa, outrossim, o amortecimento da responsabilidade frente ao status quo, pois frente à morte, o que o homem e a mulher podem fazer? Recusa-se, portanto, a construção da história humana, do sujeito e da infância, enquanto produtos da agência humana, o que demanda a permanente retomada e re-elaboração de caminhos e de lutas.
No documentário feito recentemente aqui no Brasil chamado A Invenção da Infância (2000), a diretora Liliana Sulzbach2 desenvolve duas idéias: a de que a infância – frágil, inocente – é inventada a partir do Renascimento e consolidada nos setecentos e oitocentos; e de que esta infância – ideal – se encontra ameaçada nos dias de hoje, seja pela exploração do trabalho infantil, seja pela competição e individualismo exacerbados numa cultura de consumo que "adultizam" precocemente as crianças. Assim, conclui a diretora: ser criança não significa ter infância.
Busco este exemplo para indicar uma tese comumente reiterada: a de que infância moderna esteja ameaçada de extinção; e que este fato seja lamentável pela perda justamente desta infância – inocente e frágil. Assim, a infância moderna figurada como inocente, frágil, imatura e dependente se tornou um índice da trajetória civilizatória universal a se realizar apoteoticamente no adulto, branco, independente, individualizado, senhor da vontade e da razão.
A figuração de fragilidade e inocência da infância só se realizou em conjunção com esta outra figuração, a do adulto, que de posse do Logos retira o sujeito humano do obscurantismo e da sujeição à natureza. No entanto, para os frankfurtianos como T. Adorno por exemplo3 , esta démarche de pseudo-libertação do homem por esta forma histórica de razão, a razão instrumental, não é dada ao homem, mas deve ser por ele conquistada ao longo de seu devir histórico. Assim, ascetismo e renúncia são os vetores que vão arrancar e desenraizar o sujeito humano da naturalidade da espécie, do embrutecimento dos sentidos e das paixões, dos mitos e da "particularidade sofredora" onde cada sujeito não se vê como parte deste telos irreversível da história que é o progresso. Ulisses, segundo Adorno, é o herói emblemático deste racionalismo que através da sua Odisséia – com dor e renúncia - precisa livrar-se dos preconceitos para ascender à sua verdadeira condição humana. Analogamente, na trajetória ontogenética, a criança só ascenderá ao real do humano, ou seja, à racionalidade, à individualização, à autonomia por um processo de depuração de suas características ditas infantis. Para tal, se institucionalizam os processos de tutela, proteção e socialização necessários à consecução do Ulisses moderno.
Criança moderna figurada na inocência e adulto moderno figurado na completude da Ratio instrumental articulam reciprocamente o balizamento subjetivo engendrado pelas novas condições do mundo moderno. Assim, os sujeitos particulares – seja criança, seja adulto – ficaram subsumidos dentro de uma única trajetória universal que lhes determinou sua condição de existência. Para a criança, a narrativa moderna determinou sua condição universal de despreparo e inocência, posto que num momento ulterior, frente às exigências da modernidade econômica, superado o infantil, se daria lugar ao adulto preparado para o domínio de si, do outro e da natureza.
A ficção universalizante da infância – como também da adultidade – encerra também a reificação do conceito de ser criança em práticas histórica e culturalmente situadas, como por ex. ser criança é ir para a escola, é brincar, é não ter responsabilidades, é não precisar trabalhar e assim por diante. Ainda, por mais que o direito positivo ocidental tenha recentemente manifestado a preocupação com a criança enquanto um sujeito de direitos, através da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, problematiza-se também sua racionalidade universalizante que abstraindo de situações particulares, impôs aos países signatários uma visão de criança, assim como uma visão de sociedade.
A infância universalizada nas práticas sócio-culturais que lhe deram um estatuto de inocência e fragilidade não seria, então, a meu ver, nada mais que uma narrativa, uma ficção por onde a racionalidade ocidental moderna construiu, através de marcos etários rígidos e universais, o acesso à "idade da razão", ou ainda, à plena cidadania, dentro de uma sociedade que se quis igualitária e livre. Esta infância por certo hoje morre, e acrescentaria, deve morrer, na medida em que enquanto narrativa que orienta a ação no mundo dos vivos se torna cada vez mais inadequada para explicar a relação entre adulto e criança no mundo contemporâneo. Aliás, talvez, já nasceu inadequada uma vez que, segundo Alanen4 , evoluiu de uma perspectiva sectária – a urbana, domesticada no âmbito da família burguesa das classes médias, e ordenada pelos padrões do Estado-nação para se tornar modelar e universal. Morre, então, esta infância para dar lugar a outra ou outras, que, também por nós inventadas, poderão nos guiar na construção das nossas possibilidades individuais e coletivas.
A invenção de novas narrativas da, ou sobre a infância, reconhece a infância como posição estruturante nos processos sociais na cadeia geracional, por onde tanto a produção como a reprodução cultural e institucional se realizam. Assim, no bojo de uma analítica geracional, a infância pode ser vista como uma posição, que não só gera saber sobre si própria e, portanto, também concorre para se auto-determinar e se auto-construir, como também engrossa as perspectivas sobre o mundo social co-atuando com seus parceiros de gerações antecedentes.
A infância, enquanto uma posição, permite a ampliação, a expansão, como também a transformação do instituído a partir de um outro ponto de vista diferente do adulto. Freqüentemente, quando se pensa na infância, tende-se a percebê-la, usando uma expressão de Niklas Luhman5 como uma "máquina trivial", ou seja, uma que transforma inputs em outputs sem qualquer função de transformação. Segundo Luhman, se as crianças fossem ‘máquinas triviais’, aprendendo apenas o que lhes é ensinado por suas professoras, respondendo apenas da forma como lhes é putativamente apontado como correto, a espécie humana já teria sido eliminada há muito tempo. Assim, a sociedade (dos adultos), o conhecimento instituído, como também as relações sociais legitimadas são permanentemente transformadas por aqueles que, mesmo tendo menor poder de definir a realidade, atuam na sua construção.
Poderia exemplificar a afirmação de que a infância constitui um aspecto estruturante das sociedades observando sua participação no mundo do trabalho, já que as crianças, enquanto uma categoria social ou posição, são parte integrante da divisão social do trabalho em qualquer sociedade humana, mesmo na nossa em que seu trabalho se restringe ao escolar. Certamente o trabalho escolar das crianças serve para consolidar práticas e saberes no mundo do trabalho em geral, como por exemplo, a crescente demanda por um tipo determinado de trabalho adulto baseado cada vez mais na decifração de códigos escritos. A divisão geracional do trabalho deve ser encarada diacronicamente, e portanto, seguindo o discurso marxista, se as máquinas são trabalho vivo coagulado, então, pode-se seguramente afirmar que as qualificações básicas dos adultos necessárias nas sociedades industriais são trabalho infantil coagulado6 . Deste modo, crianças e adultos são parceiros na construção do mundo em que vivemos, mesmo que as primeiras estejam historicamente invisibilizadas seja pela definição social de que são um "passivo", "um custo social", e portanto para quem não se devem reverter as riquezas geradas, seja ainda através de um processo cultural de menorização ou familialização.
Creio, portanto, que as novas narrativas sobre a infância devem reconhecer sua posição estruturante nas relações sociais onde a permanência e a mudança social se dão. Assim, no quadro de mudanças sociais das formações proto-capitalistas às formações do capitalismo tardio, vemos passar diante de nós, novas posições no que se refere à infância. Inicialmente tínhamos a posição das crianças restrita ao papel de futuras produtoras, no âmbito da lógica de produção do capitalismo, quando a infância pode ser considerada a co-adjuvante do adulto na medida em que se prepara, através do trabalho escolar, para assumir seu lugar eventual de trabalhador e cidadão. Em seguida às mudanças operadas no bojo do sistema capitalista, que introduziram uma diacronicidade crescente entre produção e consumo, e uma preponderância dos valores de troca sobre os valores de uso, alavanca-se a dimensão do consumo nas sociedades capitalistas modernas, e com isso, o papel do consumidor. A infância passa, então, a se situar numa nova efetividade social, enquanto consumidor. A lógica do consumo traz visibilidade para a infância na dinâmica social como um parceiro ativo não somente no tocante ao direcionamento do que se produz, como também no re-ordenamento de questões sobre a infância. Como exemplo, colocaria que é justamente no âmbito das transformações da cultura de consumo que se articulam as indagações sobre a morte da infância, já que num processo aparentemente de ‘adultização’ as crianças competem com os adultos na reivindicação do lazer, do consumo de bens simbólicos e materiais.
Gostaria de avançar um pouco mais na consideração sobre novas possibilidades de se narrar a infância hoje, ousando pensá-la inserida no quadro de outras mais recentes transformações do contemporâneo que apontam para a emergência de novos sentidos relacionais entre criança e adulto. A tese que apresento a seguir é apenas tentativa e esquemática, um esforço para tonificar a imaginação e eludirmos à esclerose teórica.
Nos últimos cinco a seis anos tenho me debruçado sobre a questão das cidades enquanto um novo palco de contratualidade social, uma nova condição de subjetivação no contemporâneo7 . A metrópole de hoje, diferentemente da grande cidade de 50 anos atrás, se tornou o epicentro dos processos de troca, como também de produção e irradiação de novos valores e signos da cultura. É na cidade onde também se enfrenta, se assimila e se transforma o impacto da crescente des-terrritorialização dos elementos culturais num processo vertiginoso de desconexão/fragmentação de tudo – pessoas e objetos – de seu lugar, de sua origem e de sua história. Fredric Jameson8 já observou em certo momento o sentido eminentemente espacial, em detrimento do temporal, que re-conecta os elementos do cotidiano urbano. Nesta nova ordem, ou desordem, de condições subjetivantes, parece que os sujeitos se vêem interpelados a outras posições, como a de, por exemplo, um permanente deslocar-se, onde o movimento e a circulação em si epitomizam as múltiplas e diversas possibilidades de identificação. Assim, se trata de uma outra lógica de socialidade e subjetivação – a de circulação (e aqui também me refiro a espaços virtuais de circulação) – por onde a diversidade do cosmos, ou do planeta se o preferem, presentificada na cidade plural e cosmopolita, instaura novas demandas de multi-localização e multi-pertencimento através de um processo de contínua e centrífuga expansão subjetiva. Parece ser um processo que se observa hoje tanto para crianças, como para adultos, igualmente submetidos a esta nova lógica, ainda que crianças tenham, por força das outras posições em que se situam nas práticas sociais, muito mais restrita sua circulação na cidade.
Assim, estaria propondo que à infância hoje é demandado inserir-se na ordem social – protagonizada pela cidade contemporânea – como quem também está aí, ou seja, quem aparece. A lógica da circulação e do deslocamento favorece, mesmo que de forma incipiente e canhestra, a re-união, o re-aparecimento dos atores sociais através mesmo da de-ambulação, ou seja, do convite ao movimento, e através dele à estrangeirização. Percebo aí um processo de des-instalação da infância das posições e lugares onde sempre esteve na modernidade: basicamente na família e na escola, para vir a ocupar outras posições, como a de habitante, ocupante e "possuinte" da cidade. Ou seja, para mim, a infância, ou melhor, as crianças hoje enredam-se também no processo de ocupar e conquistar a cidade onde moram, o que explicita sua aparição no cenário social não apenas como consumidora, ou potencial trabalhador, mas como quem também exercita sua aparência e sua presença no tecido social.
De que modo? Em geral, se tende a considerar o transiente, ou transeunte, na cidade apenas como aquele que passa, e portanto, apenas olha a cidade restringindo-se ao desfrute efêmero do olhar – "as simpatias de última vista", de que fala Walter Benjamin9 . Neste sentido, a diversidade da cidade se coloca para o sujeito somente como objeto de gozo visual – numa suposta relação de controle, dominação e objetificação. Percebo isso como um dos aspectos por onde se pode tematizar a lógica da circulação. Um outro, talvez menos tematizado, diz respeito às possibilidades de que a aparência favoreça processos inéditos de convivência ao fazer valer e acolher outros atores sociais na cena social. Tomo aparência aqui, no sentido caro a Hannah Arendt que vai problematizar o estatuto menor que tem sido dado às aparências como fonte de saber. Arendt10 afirma que a convicção que temos de que o essencial se encontra sob a superfície, e de que esta não é senão o superficial, está errada. Para Arendt somos o que aparecemos, é na aparência que a vida social se constrói.
Assim, gostaria de ousar, propondo que ao lado do sentido meramente gozoso da aparência, tomado como transiência e efemeridade, o que poderia ser potencialmente despolitizante, há que se valorizar o sentido de tornar visível, o de fazer aparecer, que coloca os sujeitos sociais em reunião, pois quem aparece aparece para o outro.
Certamente, é neste sentido que reside um potencial politizante da aparência, politizante aqui no sentido arendtiano, ou seja, formador da polis que não é senão a organização que resulta do falar e do agir em conjunto de pessoas diferentes. Segundo Arendt, esse espaço existe potencialmente "onde quer que os homens se reúnam... mas só potencialmente, não necessariamente nem para sempre" (op. cit. pág. 212). Penso que a lógica da circulação que instaura na cidade contemporânea o convite à de-ambulação e à aparência pode ser útil para pensar e narrar a infância hoje como novo ator que, enquanto elemento estruturante na cadeia geracional, se insere e participa dos processos de construção coletiva do mundo.
A título de precária ilustração deste ponto na minha argumentação, gostaria de trazer o trabalho que vimos desenvolvendo no nosso núcleo de pesquisa sobre a presença e a participação da criança na cidade. Em estudos empíricos e teóricos sobre este tema, tem sido possível vislumbrar a efetiva capacidade da criança e do jovem em discorrer sobre os aspectos inquietantes e perturbadores da vida em comum, como também de buscar alternativas ao status quo. A circulação e a presença da criança na cidade, ainda que transiente, coloca esta criança e este jovem frente à pluralidade indisfarçável da vida coletiva que conduz, hoje de forma contundente, ao problema das diferenças e das desigualdades sociais. Temos visto, então, crianças e jovens com experiências culturais distintas que operam politica e socialmente, ao analisarem e produzirem ferramentas simbólicas de entendimento das grandes mazelas da convivência brasileira que são as desigualdades sociais. Neste sentido, creio que o perambular pelas ruas, os deslocamentos na cidade, o aprender deambulatório e aparentemente ocioso quando se está nas ruas, pode ser o início de uma cultura política para crianças e jovens, ao colocá-los frente aos diversos e desiguais modos de existência numa mesma cidade. É claro que nem todos, e nem da mesma forma, podem recuperar através dos diferentes modos de circulação e aparência, a leitura política e culturalmente engajada.
Assim, para muitas crianças com quem conversamos, as cidades em que moram encerram o débito de uns para com os outros, dos privilegiados que "ocupam" espaçosamente a cidade, apoderando-se de tudo de bom que aí existe, para com os que vivem oprimidos e excluídos. Para outras crianças, a leitura da desigualdade se reduz à eficiente articulação do remédio e sua respectiva cura, ou seja, conjugar racional e tecnicamente o desastre social com a maneira de resolvê-lo. De qualquer forma, das inúmeras leituras que crianças e jovens podem fazer das desigualdades sociais, o que gostaria de enfatizar aqui é que estamos diante de uma outra infância, a que por força do des-enclausuramento das condições que a modernidade lhe impôs, nos espaços-tempos da escola e da família, constitui-se de outra forma inserindo-se de modo a resgatar uma cultura e uma vida em comum construída por todos e para todos. É bem-vinda aqui a reflexão de Raymond Williams11 que coloca que uma cultura comum não é separável de uma mudança socialista radical que requer participação democrática e a colaboração em todos os níveis da vida social, e que justamente por isso – porque requer uma imensa e complexa rede de colaboração – não pode ser nem prevista nem totalmente conhecida.
Termino, então, deixando em aberto as inúmeras possibilidades que o tempo presente encerra para nós adultos no tocante a re-narrar e re-significar a infância. Neste sentido, não veria motivo de angústia frente à afirmada morte da infância, mas sim de se angustiar ao não poder encontrar significantes que delineiem para nós sua nova face transformada que ronda imperceptível e cabreira frente às nossas teorias de antanho.
1Professora Adjunta do Programa de Pós-graduação em Psicologia, Inst. de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro; Coordenadora Geral do Núcleo de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC) da UFRJ.
2 A Invenção da Infância, direção Liliana Sulzbach, M. Schmiedt Produções, 26 min., NTSC.
3T. Adorno e M. Horkheimer ([1944], 1986) O Conceito de esclarecimento. Em T. Adorno e M. Horkheimer, Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar.
4L. Alanen (1994) Gender and generation: feminism and the 'child question'. Em J. Qvortrup et al. (orgs) Childhood Matters: social theory, practice and politics. Avebury: Aldershot.
5N. Luhman (1991) Das Kind als Medium der Erziehung. Zeitschrift für Pädagogik 37 (1): 19-40.
6Ver a esse respeito, H. Wintersberger (2000) Kinder als ProduzentInnen und KonsumentInnen. Em H. Zeiher et al (orgs) Die Arbeit der Kinder. Weinheim e München: Juventa-Verlag.
7Projeto de pesquisa "Subjetividades Contemporâneas: a infância e a adolescência no contemporâneo brasileiro", apoiado pelo CNPQ e FAPERJ, biênio 1996-1998; projeto de pesquisa "Cidade, consumo e cidadania: crianças e jovens no Brasil contemporâneo", apoiado pelo CNPQ e FAPERJ, biênio 1998-2000; projeto de pesquisa "O igual, o estranho e o inimigo: socialidades urbanas no Brasil contemporâneo", apoiado pelo CNPQ e FAPERJ, biênio 2000-2002.
8F. Jameson (1996) Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ed. Atica.
9W. Benjamin (1973) The Paris of the Second Empire. Charles Baudelaire, a lyric poet in the era of high capitalism. Londres: New Left Books.
10Ver basicamente H. Arendt (1995) A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense.
11R. Williams (1978) Culture and Society. Londres: Verso.