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On-line ISBN 85-86736-06-6

An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP 2002

 

O Tratamento de Crianças Psicóticas e Autistas entre a Psicanálise e a Educação: Aproximações iniciais

 

Fúlvio Holanda Rocha 1

 

 

Os tratamentos atuais de crianças psicóticas e autistas que nos interessarão, serão aqueles que, circunscritos na influência da psicanálise lacaniana, afirmam conjugar a psicanálise e a educação, contrapondo-se à clássica antinomia entre estes processos. Se por um lado, em torno destas propostas há inegavelmente uma urgência social – estas crianças estão à margem da sociedade –, objetivamos apontar uma outra justificativa na aliança entre um certo apelo a educação e uma certa compreensão psicanalítica da psicose e do autismo na infância2.

Para a psicanálise, o autismo e a psicose infantil resultariam de uma falha primordial na inserção no simbólico3. Na psicose, tratam-se de vicissitudes especulares; no autismo, pré-especulares, ou seja, estão referidas a momentos logicamente anteriores ao desenrolar da castração. A psicanálise, desde Freud, advoga que o nascimento não é um mero acontecimento biológico, é preciso essencialmente que um lugar simbólico seja destinado ao novo ser. Esta fase especular implica que a criança deva ser tomada pelos dizeres de quem ocupa a função de mãe, o que por um lado permite que ele se identifique na imagem recortada por esta fala, num certo projeto narcísico da mãe. Contudo, para que um sujeito se situe num mundo simbolizável, no qual os objetos participam de um sistema de trocas, é preciso após aderir a este projeto, rejeitá-lo (mesmo que se passe a vida tentando reencontrá-lo)4.

Lacan (1998b) afirma que o advento do sujeito do desejo se dá pela operação psíquica da Metáfora Paterna. Como metáfora, consiste numa substituição significante; neste caso, mediante o recalque dos significantes maternos, há a entrada do significante Nome-do-Pai, convocado pelos mesmos dizeres da mãe, isto é, este Outro primordial que destaca a criança de um puro real, doando significados, promovendo sentido no que era mera indiferença, desvela num dado momento lógico sua falta, a impossibilidade de significar tudo: deixa à criança um resto. Mas esta falta, pelas palavras da mãe, é relacionada a autoridade de quem ocupa a função paterna, assim sendo, é esta que traz o interdito, uma lei, exigência de renúncia. Se esta operação metafórica inscreve a falta de forma irremediável no Outro, deixa ao nascente sujeito a impossibilidade de obturá-lo, deixando em aberto a pergunta: afinal, o que quer de mim? Assim sendo, o Outro renuncia fazer da criança seu objeto, renuncia que ele se petrifique na sua imagem sonhada de perfeição que é recalcada, porém sem conseguir esquecê-la, como desvela a indestrutibilidade do desejo.

Todavia na psicose e no autismo fracassa, precisamente, a Metáfora Paterna. Na psicose isto é representado no mecanismo de foraclusão do significante Nome-do-Pai, ou seja, a palavra do Outro primordial não convocou a função paterna. Então, o psicótico ficaria aprisionado numa esfera especular, na qual está assujeitado sem resto, sem falta, enfim, sem diferença a desdobrar ao significado determinado pelo Outro. Já no autismo, as vicissitudes pareceriam ser no investimento libidinal necessário para a própria instauração da imagem à qual primariamente é preciso aderir, mas como demonstra a psicose não garante o surgimento de um sujeito do desejo. Diferindo da psicose no qual se é aprisionado, alienado lá na imagem, no autismo a imagem não foi construída pelo Outro, não há em quem se espelhar. Nos dois casos, a impossibilidade de se situar no simbólico, de fazer uso em nome próprio das palavras, dificulta a circulação social e o reconhecimento destas crianças.

Estas condições subjetivas desvelam que os efeitos educativos não operam. Entendida num sentido amplo, educação vai mais além da instrução escolar, significando a via principal de ingresso na cultura, entrada no registro do simbólico. Embora, a escola tenha granjeado esta função a partir de uma construção socio-histórica datada na qual os termos criança e escola surgem visceralmente ligados, o ato educativo do qual falamos não necessariamente precisa se dar no interior de uma escola ou entre um professor e um aluno, mas sim, no desdobramento da diferença entre um adulto na posição de educador e uma criança na de aprendiz.

Neste sentido, em toda demanda educativa é pressuposta a operação de um sujeito do desejo (de Lajonquière, 1999). Em toda educação é transmitido mais do que conhecimentos acumulados pelos antepassados, o aprendiz adquire também um saber existencial, concernente apenas ao sujeito, não formalizável, ou seja, a educação põe em jogo ideais, um dever-ser situado no simbólico que sempre guarda uma distância à criança real, ao lado de outros ideais de ordem imaginária, restituidores do projeto narcísico exposto pelo Outro. Ao fazer isto, a educação articula uma promessa de não ser adulto agora para – ao se apropriar dos conhecimentos, saber existencial em pauta – poder sê-lo futuramente. Logo, enxerta uma falta, uma diferença. Dito em outras palavras, o ato educativo introduz o desejo no universo da criança, fazendo-o faltoso: "transforma o mundo infantil à medida que lhe injeta em germe o artifício de uma realidade adulta, isto é, o mesmíssimo desejo de saber" (ibid. p.69).

Este processo consiste numa denegação da demanda educativa pelo lado do educador. Inicialmente, ele toma a criança na condição de objeto nos seus ideais imaginários, mas renuncia gozar dela (desde que aqui opere a castração) ao desmentir inconscientemente sua demanda, deixando à criança a pergunta acerca do que ele (educador na posição de Outro) realmente quer dela – dimensão própria do desejo5. Para a criança sair da condição de objeto, defender-se do gozo do Outro, utiliza os significantes doados por este mesmo educador (neste lugar de Outro), que oferta a palavra para ela metaforizar seu destino, ou seja, a criança tentará responder a demanda não enquanto objeto, mas buscando substitutos ao que falta. Daí o efeito educativo primordial ser a passagem da posição de objeto para a de sujeito do desejo.

Nesta perspectiva, corresponde a todo ato educativo efeitos subjetivantes que implicam "uma filiação simbólica humanizante" (ibid., p.138). Se em toda educação é transmitido algo além do caráter utilitário do aprendido, o aprendiz se filia a uma tradição que o identifica aos demais por participar de uma legalidade própria aquele grupo. Assujeitado à história desta cultura, pode circular socialmente ao ser enlaçado numa determinada ordem simbólica. Esta é fundada numa renúncia coletiva à corporificação dos ideais da cultura, pois transcendem a qualquer existência singular. Neste movimento, acaba por parecer, assemelhar-se aos outros, pais, educadores, mas algo sempre se perde; falta que abre espaço para o desejo. Desta forma, a educação é ato constituinte da subjetividade, permitindo que o sujeito circule socialmente como um semelhante e participe assim das ações de uma dada comunidade.

Entretanto, o que ocorreria nos casos de psicose e autismo na infância seria a não ocorrência da educação primordial, ou seja, a falta de uma inscrição simbólica que permitiria a passagem da condição de objeto a de sujeito do desejo. Faltaria a estas crianças quem sustentasse a inconsistência da posição objetal, indicando e desdobrando a diferença entre a criança e a imagem narcísica, de perfeição. Psiquicamente, não houve a necessidade de registrar a impossibilidade de ser, pois no espaço social primeiro em que estão confinadas as crianças de hoje não houve quem sustentasse na função materna um semidizer. Sem decair da condição de objeto, torna-se difícil o investimento libidinal fora de uma relação imaginária, para uma situação que tome por base um elemento terceiro, uma lei e sua renúncia necessária para manter um laço social. Portanto, para aquelas crianças a inserção na cultura que é o ato educativo primeiro falhou.

Sendo assim, para as propostas que nos interessam, os tratamentos da psicose infantil e do autismo objetivariam o resgate subjetivo destas crianças, mediante a promoção da educação primordial, ou seja, por diversos artifícios busca-se favorecer a inscrição primeva ou a instalação e desdobramentos da falta na estrutura subjetiva. É isto que verificamos na experiência da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida6 e da École Experimentale de Bonneuil-Sur-Marne das quais citamos muito brevemente algumas características institucionais resultantes desta forma de entender a educação e as graves patologias na infância.

Kupfer (1999) aponta que no Lugar de Vida o valor terapêutico da educação se impôs decisivamente. A instituição foi pensada de forma a romper com a objetalização, injetando por várias maneiras uma falta na relação da criança psicótica e autista com a instituição. Uma destas seria a escolarização que poderia promover efeitos terapêuticos, pois: pelo discurso social moderno, se são crianças, devem estar na escola. Isto permite aos pequenos seres a identificação a este significante criança, e tem também o poder de produzir nos outros, e de uma forma importante nos pais (Outro primordial), um deslocamento na posição subjetiva destinada à criança; mas também pelo caráter humanizante da educação, por impor uma estrutura simbolizada das relações humanas, ou seja, por fixar que regras são necessárias para funcionar e ser reconhecido dentro de uma comunidade, delimitando o que se pode fazer ou não socialmente (que em sua essência implicam numa renúncia pulsional). Daí Kupfer denominar sua proposta de Educação Terapêutica, ou seja:

"um conjunto de práticas interdisciplinares de tratamento, com especial ênfase nas práticas educacionais, que visa à retomada do desenvolvimento global da criança ou à retomada da estruturação psíquica interrompida pela eclosão da psicose infantil ou, ainda, à sustentação do mínimo de sujeito que uma criança possa ter construído" (Kupfer, 1999, p.95).

Já na Escola de Bonnueil, busca-se introduzir socialmente a criança pela aquisição de conhecimentos escolares, na ajuda ao adulto em seu afazeres, no cotidiano, fato que traria efeitos subjetivantes, a saber:

"...em Bonneuil nos preocupamos para que as crianças possam ser aprovadas nos exames oficiais. Explica-se às crianças que, para poder escapar da exclusão e encontrar um trabalho em que se possa ganhar mais que um salário mínimo, precisam de um diploma. Assim, podem se tornar trabalhadores e mestres-artesãos com sua cota de loucura. Nesse sentido, e como dizia Winnicott, o único que pedimos às crianças é que, na vida, façam semblante de serem normais" (Mannoni, entrevista concedida a Scagliola e Lajonquière 1998). Entretanto, não se está obsedado pela cura do sintoma da criança, cercá-la /cerceá-la numa estrutura de cuidados: regulamentos, regras que fixam o paciente como objeto do saber da instituição. Diante deste posicionamento, podemos nos interrogar, mas, isto não seria então uma tentativa de injetar a pergunta mesmo sobre o desejo, pois estas crianças podem questionar: o que é ser normal? Afinal, o que querem de mim?

Esta introdução na terapêutica "vida cotidiana" pode promover mudanças subjetivas. E se é de crianças que se trata, esta inserção se faz principalmente pela escola, Mannoni afirma: "sobre a porta de acesso colocamos somente escola experimental, para que as crianças tivessem como significante o de escola e não o de um lugar de doentes". Porém, obviamente, isto não exclui a ida de algumas crianças à clínica psicanalítica, ao contrário, a escola promove uma circulação social, põe as crianças num mundo simbolizado, mas não é o lugar de se fazer interpretações analíticas e também porque o espaço clínico possibilitaria à criança, num além da instituição, dizer sobre o que é negativo em seu laço institucional. O importante é que surja sempre um espaço de acolhimento que sustente a estruturação destas crianças.

A instituição não pode se pensar detentora do saber sobre a criança e "sua" patologia. Os mecanismos da (des)montagem institucional são pensados de acordo com a compreensão que o cerne dos quadros de psicose e autismo é o não desdobramento da falta na constituição subjetiva e que assim a instituição não pode reforçar um discurso totalizador sobre as crianças (ou os sintomas aos quais elas são reduzidas). Por isso, Mannoni propõe o estilhaçamento institucional que por vários artifícios, baseados na idéia de alternância, faz com que a instituição seja não-toda, faltosa, evitando exatamente a objetalização das crianças (1988).

Nestas experiências de Bonneuil e do Lugar de Vida, vemos reunidos uma certa compreensão do ato educativo e da posição subjetiva destas crianças, visando à obtenção dos efeitos educativos primordiais. Mas, para que não haja dúvidas, o que difere esta proposta de tratamento (no qual se alinham estas instituições, mas não só) é que os efeitos pretendidos não podem ser calculados a priori, não são previsíveis, enfim, todo trabalho é baseado numa aposta: nestas crianças há um sujeito a ser escutado e a instituição existe para contribuir para que este sujeito emerja. Porém, a ex-istência de um sujeito está ligado a tornar uma educação primordial possível. E a recorrência à psicanálise não é para determinar interpretações, o que ou como fazer, servindo como molde metodológico para se montar as atividades educativas7. Pode-se afirmar com de Lajonquière (1999), a psicanálise está presente em negativo, está para dizer o que não deve ser feito subvertendo o "discurso médico-pedagógico" (Mannoni, 1988) ou o "discurso (psico)pedagógico hegemônico" (Lajonquière, 1999). Esta subversão implica em fazer a criançasair da posição a-subjetiva, remontando o ato educativo sobre a égide de um operador chamado desejo, não controlável, não previsível.

 

Bibliografia:

LACAN, J. O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu: tal como nos é revelada na experiência analítica. In: Escritos, Jorge Zahar, 1998a, p. 96-103.

______. De uma Questão Preliminar a Todo Tratamento Possível da Psicose. In: Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998b. p. 537-590.

LAJONQUIÈRE, L. Infância e Ilusão (Psico)Pedagógica. Petrópolis, Vozes, 1999.

KUPFER, M.C. Uma Educação para o Sujeito. São Paulo, 1999, 183p. Tese (Livre-Docência) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo.

SCAGLIOLA, R. & LAJONQUIÈRE, L. Conversando Sobre Bonneuil (Entrevistas com Maud Mannoni, Marie-José Richer-Lérès e Lito Benvenutti). Estilos da Clínica, ano III, n.º 04, p.20-40, 1º sem./1998.

MANNONI, M. Educação Impossível. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1988.

 

 

1 Psicólogo - UFC; mestrando da Faculdade de Educação da USP.
2 Apesar de tentarmos estabelecer uma razão geral a estas propostas, pois este elo - que considera que a educação pode tocar a estruturação subjetiva - dá um certo ar de parentesco entre as instituições que defendem tais tratamentos, reconhecemos que seria impossível reduzi-las entre si. Ressaltamos também, que tais propostas não visam a exclusão do dispositivo psicanalítico "clássico", sendo o encaminhamento para tratamento, simultâneo ou a um ou a outro prioritariamente, decidido de acordo com cada caso.
3 Não ignoramos as controvérsias encontradas entre aqueles que são influenciados pelos aportes lacanianos, principalmente, o debate sobre se o autismo é ou não uma estrutura diferente da psicótica. Não aprofundaremos tal discussão para não extrapolar os limites deste trabalho, como também consideramos, por enquanto, suficiente a constatação na literatura pesquisada de que mesmo entre os partidários de uma única estrutura, coloca-se ao menos uma especificidade que torna necessária a caracterização a parte do autismo, com suas conseqüências na direção da cura.
4 Referimo-nos ao Estádio do Espelho, tempo de uma primeira identificação que poderíamos definir como um momento lógico da estruturtação subjetiva no qual se passa do não-ser ao a-ser, sem passar pelo ser, marcando-o numa identificação em que falta-a-ser (Lacan, 1998a).
5 O educador dá sinais de querer a criança desde que assuma tal posição, mas suporta e sustenta o inevitável fracasso dela em ser o objeto do desejo do adulto.
6 Aproveitamos para agradecer à equipe da instituição pela oportunidade do estágio transcorrido durante o ano de 2001.
7 Nem que seja preciso que o educador saiba de psicanálise para que uma educação se realize.