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On-line ISBN 85-86736-06-6

An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP 2002

 

O feminino e a professor: impasses vividos na inclusão escolar1

 

Marise Bartolozzi Bastos2

 

 

Sobre a inclusão escolar da criança com DGD

O tema da inclusão escolar vem sendo alvo de vários estudos, pesquisas e debates, nos últimos anos no Brasil.

Sabemos que a questão da inclusão enquanto direito e garantia da cidadania é fato indiscutível mas, trata-se aqui, de pensarmos em que condições e qual o preço a ser pago por todos aqueles envolvidos neste processo.

Kupfer & Petri fazem um alerta a esse respeito dizendo que "Esse alto custo inclui... um enorme estrago na saúde mental de muitos professores, que não podem e não sabem abordar a inclusão, e terminam por apelar para o afastamento, a licença médica." (Kupfer & Petri, 2000, p.110).

Por outro lado, também não é possível negligenciar os efeitos da inclusão nas crianças que já freqüentam a escola regular. Como alerta Jerusalinsky (1999), estar diante do ‘diferente’ pode ser uma experiência rica para qualquer criança mas quando o ‘diferente’ é uma criança psicótica sabemos dos riscos que as crianças neuróticas atravessam.

Há ainda o perigo da inclusão funcionar como aquilo que Calligaris (1989) chama de uma injunção fálica, o que faria com que essa criança viesse a piorar com a entrada na escola.

Nesse sentido, a inclusão escolar de crianças psicóticas não pode ser feita a qualquer preço e devemos indagar se essas crianças têm as ‘ferramentas’ necessárias para usufruir daquilo que o convívio escolar deve proporcionar-lhes, enquanto gerador de laços sociais.

Devemos indagar ainda, se a escola está aberta a se repensar enquanto espaço que possa acolher, não só as questões relativas ao pedagógico, mas também aquelas que apontam na direção do sujeito do desejo.

Kupfer & Petri (2000) afirmam que a inclusão escolar figura como um dos eixos importantes da Educação Terapêutica pois as crianças com DGD apresentam uma melhora significativa e uma mudança na posição frente ao Outro social quando além do trabalho terapêutico podem ser inseridas na escola.

 

Impasses vividos pela professora

Este trabalho parte da experiência do grupo Ponte - que funciona na Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, do IPUSP – e consiste em acompanhar a ‘passagem’ das crianças atendidas pelo Lugar de Vida quando elas venham a ter condições de ingresso na escola regular.

Nossa experiência tem mostrado que a inclusão escolar da criança psicótica deve ser pensada caso a caso e precisa contar com a parceria daqueles que trabalham no ambiente escolar, sobretudo, a professora. Para tanto, a equipe realiza, mensalmente, uma reunião aberta com as professoras das escolas que recebem crianças do Lugar de Vida.

A escuta dessas professoras que, muitas vezes, são titulares de uma classe especial e, portanto, bastante familiarizadas com alunos ditos ‘difíceis’, foi revelando que a simples oferta desse espaço de interlocução tinha como efeito mobilizar a professora a discutir e por em questão seu saber pedagógico e seu desejo de ser professora.

Ao nos endereçarmos à escola, percebemos o quanto a professora desempenhava um papel fundamental nas novas perspectivas de tratamento que se abriam para essa criança com o ingresso no mundo escolar.

Partindo de tais observações fomos levados a pensar sobre algo que é uma constatação irrefutável: o ambiente escolar é predominantemente feminino, sobretudo na educação pré-escolar e nas primeiras séries do ensino fundamental.

Não pretendemos aqui, enfocar ou problematizar a questão da ‘feminização’ do campo educacional mas pareceu-nos importante interrogar o que há de singular na mulher que a leva a essa escolha profissional.

Cabe pensar que a situação da mulher professora requer uma especial atenção ao constatarmos que no imaginário social muitas vezes se coloca a educação na escola como um prolongamento da educação dos filhos, como uma tarefa inerente à condição feminina. Como se as mulheres estivessem destinadas ao cuidado das crianças e portanto, faria parte deste cuidado a tarefa de educá-las. (Diniz, 1998).

Vemos nos relatos das professores trechos ilustrativos apontando como as mulheres professoras aderem a esse discurso cultural: "quando vi aquela criança pensei logo no sofrimento da mãe, afinal eu também tenho filhos e pensei como deve ser difícil pra ela ter uma criança assim..." ou "eu só pensei em poder ficar com esse aluno porque fiquei me perguntando como eu me sentiria se meu filho fosse recusado numa escola".

No entanto, a psicanálise nos impulsiona a pensar a mulher fazendo um descolamento dessas produções ideológicas sobre as ‘competências’ femininas e buscando avançar nas questões do enigma da feminilidade, da inquietante pergunta ‘o que quer uma mulher?’.

Vale dizer que toda vez que o grupo Ponte procura uma escola para receber uma criança do Lugar de Vida, fazemos contatos prévios com a direção da instituição para que possamos viabilizar a entrada da criança numa classe em que a professora se mostre disposta a trabalhar com ela. Vemos aí uma escolha e partimos desse ‘querer’ manifesto da professora, em relação à criança, para acompanhá-la em seus desdobramentos.

Aqui, também, a oferta cria uma demanda pois a professora passa a olhar e a refletir sobre o seu fazer diante deste aluno de um modo bastante singular e inédito, segundo seus próprios relatos nas reuniões: "aos poucos fui conseguindo trabalhar com Joãozinho na classe apesar das peculiaridades dele... não sei dizer o quanto consegui ensinar a ele mas sei o quanto ele pôde me ensinar".

Num primeiro momento, as professoras vêm às reuniões do grupo Ponte com a expectativa de que receberão ali algum tipo de ‘treinamento’ para auxiliá-las na tarefa de trabalhar com esses alunos ‘diferentes’. É comum chegarem às reuniões dizendo: "estou um pouco ansiosa nessa nova tarefa – receber uma criança do Lugar de Vida – e espero ter ajuda de vocês para realizar esse trabalho".

Contudo, a dinâmica de nossas reuniões possibilita ao grupo de professoras fazer um giro nas suas produções discursivas produzindo algo diferente. Uma vez que não obtêm respostas fechadas de como devem se conduzir em sua tarefa educativa, elas se vêem lançadas a criar seu próprio fazer educativo pautado na singularidade de seu aluno: "acho que quando temos uma criança como essa na classe o que muda no professor é nosso olhar diante dessa criança, agora é o olhar do coração...a gente aprende a refletir e isso faz mudar as nossas posturas...eu sei que o trabalho com Joãozinho me fez questionar meu trabalho como professora".

Mannoni (1980) aborda esta questão dizendo que a posição tradicional da pedagogia é baseada em critérios de adaptação. Diante da criança com DGD a professora verifica o fracasso de suas teorias pedagógicas e isso a interroga sobre o seu fazer, lançando-a em busca de novos referenciais teóricos.

Vemos que é aqui que as contribuições da psicanálise ganham sentido pois, c educador "é levado a repensar o que lhe foi dado em certa tradição cultural e a opor ao ensinamento recebido uma consideração radical de si mesmo no seu ofício. ‘Estou aqui para transmitir um saber e que é que se transmite quando se crê ensinar?’ Há separação entre a noção de educação e a de ensino?" (Mannoni, 1980, p.239).

Para Mannoni (1980) é neste momento de ‘crise’ que o professor passa a repensar sobre sua maneira de ser ao se defrontar com seu desejo de adaptação dessa criança por desconhecê-la como sujeito de uma palavra ou de um desejo.

Trabalhar com essa criança vai exigir do professor uma posição diferente que leve em conta um aluno que não está em posição de curiosidade e isso é um grande desafio: como ensinar a quem não tem curiosidade, a quem não demanda saber da professora?

Sendo assim, a criança com DGD apresenta-se diante da professora como aquilo que não faz sentido, um enigma a ser decifrado, um puro traço significante à procura de uma significação.

O apelo à significação é próprio da condição humana e Freud, ao descrever os caminhos trilhados pela sexualidade infantil, revelou a impossibilidade do humano determinar seu objeto de satisfação marcando aí uma ruptura entre aquilo que é da ordem da pulsão e o instinto. Freud mostrou ainda que é a curiosidade sexual que impulsiona a criança na busca do conhecimento.

Contudo, a criança psicótica não está atravessada por essa curiosidade pois, como aponta Jerusalinsky, "... se há uma falha na inscrição primordial e se ela se realiza sob a forma de forcluir, ou seja obturar, qualquer curiosidade sobre as transformações simbólicas desse objeto, se não houver transformações simbólicas, a criança não tem o que perguntar, não tem para onde dirigir sua interrogação porque o objeto já está aí, cocô é cocô e acabou a história. Não há espaço para indagar que posição esse objeto tem na cadeia simbólica do Outro." (Jerusalinsky, 1999, p.143).

Notamos o mal estar da professora logo que ela se vê confrontada com a realidade dessa criança: "quando na reunião de professores, a diretora falou dessa criança, eu logo pensei que não queria nem pensar em ter mais uma criança com problemas na minha sala...resolvi ficar com ela porque fiquei envergonhada de ver que nenhuma professora queria pegar o aluno...quando falei com a mãe da criança me coloquei no lugar dela e acabei aceitando ele" ou ainda, "eu me coloquei no lugar dos pais ao ver que ninguém queria o aluno...pensei que esse aluno seria um desafio pra mim...acho que é o querer do professor que mobiliza nele uma busca de como lidar com essa criança".

Vemos que aquilo que leva a professora a tomar essa criança como sua aluna também diz respeito a algo de sua posição subjetiva que se enlaça nessa criança.

Comentários como esses de que a professora se coloca ‘no lugar dos pais’ apontando seu vínculo identificatório com eles é bastante freqüente e tem desdobramentos em seu trabalho diário com seu novo aluno. Ela passa a ‘cuidar’ dessa criança, que é ao mesmo tempo um desafio e um enigma. Isso a coloca num lugar diferente frente às outras professoras da escola: "as professoras lá da escola vivem me perguntando o que esse aluno tem e eu respondo que não sei, que isso não importa mas elas insistem em querer saber qual é o problema dele".

Portanto, se num primeiro momento a professora busca dar conta dessa criança contando com aquilo que ela supõe saber sobre como é ser uma boa mãe, buscando desvendar o que essa criança precisa dela e ao mesmo tempo supondo que essa criança precise de algo - supondo aí um sujeito - vemos que é nessa posição de aposta da professora, frente a essa criança falida na sua constituição simbólica, que está a possibilidade da criança construir novas formas de curiosidades parciais, construindo novas possibilidades de circulação social.

Vejamos o que acontece do lado da mulher-professora, pois nossa investigação aponta na direção de uma articulação possível entre o enigmático da criança psicótica e o enigma da mulher atravessando a professora.

O que quer a mulher? E o que quer essa criança?

Temos assim algo da ordem de um saber impossível - na psicose e na mulher - como se o enigma da criança psicótica se cruzasse com o enigma da mulher: como querer saber sobre um saber impossível?

A psicanálise, ao pensar o feminino, abre a questão do ‘tornar-se mulher’ apontando na direção de um para além da representação. Sabemos que há um indizível, uma fenda, um resto que resiste à simbolização e que é próprio do feminino, não pode ser nomeado mas produz seus efeitos, uma vez que a mulher ‘não é toda’ pois não está toda submetida à função fálica e não está toda submetida à castração.

O encontro da mulher professora com a criança psicótica põe em cena essa báscula a que está fadada a condição do feminino.

A professora oscila entre a mãe e a mulher que a habitam.

A professora se vê lançada numa condição identificatória com um lugar materno e vemos o quanto esse lugar a seduz posto que acena com algum conforto psíquico de que ela, ao menos assim, sabe o que fazer com essa criança usando o "olhar do coração".

Ficar capturada nesse lugar seria reproduzir com a criança uma experiência de alienação que faria resistência ao tratamento: "a princípio fiquei assustada sem saber o que fazer com aquela criança na minha classe mas hoje estou apaixonada por ele, ele é meu secretário particular e estou com medo de que outra professora não possa dar conta de trabalhar com ele no ano que vem ...estou preocupada de ter que me separar dele...".

É aqui que deve entrar em cena o trabalho dos profissionais do Ponte possibilitando que essa professora possa se interrogar quando se coloca nessa posição de professora-toda.

Mas, do outro lado da báscula a professora se defronta com o impasse do que é ser mulher, que fala da impossibilidade de se dar conta de uma posição não-fálica ou não-toda em relação ao sexual e a isso se superpõe a questão da psicose infantil que aponta uma criança lançada num jogo de fazer Um com a mãe. Então, como ser professora não-toda?

Se para o tratamento da criança psicótica a psicanálise precisa pedir algo à educação parece-nos um compromisso ético importante poder acompanhar as vicissitudes desse pedido tanto no que diz respeito à criança, quanto no que diz respeito à professora.

Construir-se enquanto mulher e construir-se enquanto professora parece ser uma travessia inevitável vivida pela mulher professora na experiência da inclusão escolar.

 

Bibliografia

Calligaris, C. (1989). Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.

Diniz, M. (1998). De que sofrem as mulheres-professoras? In: Lopes, E.M.T. (org.) A Psicanálise escuta a educação. Belo Horizonte, BH: Autêntica.

Jerusalinsky, A. et al. (1999). Psicanálise e desenvolvimento infantil. Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios.

Kupfer, M.C.M. & Petri, R. (2000)."Por que ensinar a quem não aprende?". Estilos da Clínica: Revista sobre a Infância com Problemas, v. 5, n. 9, pp.109-117.

Mannoni, M. (1980). A criança, sua "doença" e os outros. Rio de Janeiro, RJ: Zahar Editores.

 

 

1 A problemática discutida neste texto foi revista e ampliada no artigo "Impasses vividos pela professora na inclusão escolar" a ser publicado na revista Estilos da Clínica: Revista sobre a Infância com Problemas, número 11, no prelo.
2 Psicanalista, mestranda em Psicologia Escolar pelo Instituto de Psicologia - USP, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae - S. Paulo.