3Escolarização e subjetivação de crianças em estruturação psicótica: um trabalho transdisciplinarA prática do acompanhamento educacional na inclusão escolar: do acompanhamento do aluno ao acompanhamento da escola author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 85-86736-06-6

An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP 2002

 

Labirintos da inclusão escolar

 

Renata De Luca1

 

 

Acompanhamos um momento histórico de caráter quase epidemiológico de propostas que visam a inclusão escolar de crianças que até então estavam segregadas das escolas. Após a regulamentação de leis federais e estaduais que decretaram a obrigação das escolas de receberem crianças com dificuldades, o lema passou a ser inclusão a qualquer preço.

Mazzotta (1996) lembra-nos que nem sempre foi essa a forma da sociedade em lidar com as crianças com necessidades educativas especiais e que duas outras fases precederam esta que ele chama de fase da integração.

A primeira fase caracterizava-se por um caráter assistencialista e protecionista das crianças portadoras de deficiências, que eram colocadas em instituições, na maioria das vezes, de cunho religioso, para que fossem cuidadas. Este cuidar era entendido como protegê-las do mundo, isolando-as. Temos conhecimento dos escritos de Foucault (1993) mostrando a exclusão dos loucos e dos deficientes da sociedade, através de internações em asilos de onde dificilmente voltariam a sair. Este isolamento atendia a uma organização social baseada na homogeneização, fundamentada em princípios religiosos.

As concepções renascentistas motivaram alguns médicos educadores a criarem instituições com um outro caráter, que Mazzotta nomeia como uma segunda fase da educação especial: a de cariz médico-terapêutico, onde é reconhecido o direito destas crianças à educação especializada em estruturas específicas e com profissionais habilitados.

O renascimento humanista trará mudanças na filosofia da educação especial, pois questionará a segregação social das crianças. Inicia-se a terceira fase, denominada de fase da integração. Países europeus começam na década de 50 a traçar planos de integração das crianças que estavam segregadas e nas Américas temos como marco a publicação da Public Law, em 1975, nos Estados Unidos, que assegurava a todas as crianças portadoras de deficiências o direito de estarem em escolas.

No Brasil, o Instituto Pestalozzi criado em 1926 no Rio Grande do Sul, é reconhecido como a primeira instituição especializada no atendimento de crianças com deficiência mental. Segundo Mazzotta (1996:42), esta instituição introduz no Brasil o caráter de "ortopedia das escolas auxiliares européias", marcado ainda por uma visão assistencialista, mas também por um caráter científico que visava o tratamento destas crianças.

As classes especiais públicas tiveram origem um pouco mais tarde, justificadas pela necessidade científica em separar os alunos normais dos ditos anormais, na pretensão de organização de classes homogêneas. Esta prática de separação das crianças é proposta por uma pedagogia científica que legitima-se por estar "fundada na natureza". Evidentemente esta concepção é decorrente de uma visão estritamente organicista da deficiência mental e por uma anexação de conhecimentos das ciências naturais pelas ciências humanas e encontra seu eco na sociedade industrial.

Integrar passa a ser a ordem política, social e humana quando princípios democráticos batem à porta da educação, durante as duas últimas décadas. De maneira apressada, as escolas esforçam-se por cumprir e, é claro, atualmente estão às voltas com as dúvidas que esta empreita tem despertado. Algumas criaram mecanismos próprios de trazer para dentro da sala de aula a conhecida segregação, inventando formas de diferenciar o nível dos seus alunos e justificar a separação.

Outras escolas perguntam-se acerca da pertinência em ensinar quem não consegue aprender como os outros e se acabam por estarem convencidos de que mesmo assim vale a pena, querem saber como fazê-lo.

Examinando esta questão, Kupfer e Petri dizem que a escola moderna, na medida em que foi criada, criou um Real que lhe deu contorno, ou seja, " A criação da escola contorna então um Real e passa a dizê-lo. E, ao contornar o Real pode passar a dizer o que ela não é, ou quem não são suas crianças. A escola encontra seus pontos de referência identitários nesse contorno, e o expedido pela instalação do contorno ajuda a definí-la".

Assim sendo, a proposta atual de inclusão das crianças que a própria escola excluiu em sua criação, exige uma torção dos seus ideais fundantes. Nas palavras das autoras: "Assim, a reabsorção do que ela não é ameaça sua consolidação como instituição. Reabsorver o que ela mesma criou como não-escolar é, inicialmente para ela, um contrasenso! ... Portanto, a reformulação da escola para incluir os excluídos precisa ser uma revolução que a ponha do avesso em seu ideário político-ideológico. É necessário muito mais do que uma reformulação do espaço físico, de conteúdo programático ou de ritmos de aprendizagem, ou de maior preparação do professor" (Kupfer,2000:114).

Maria Teresa Eglér Mantoan, uma pioneira defensora da inclusão escolar e criadora do LEPED ( Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diversidade) na Faculdade de Educação da Universidade de Campinas, apresenta-nos um texto usado como abertura da sua disciplina nesta universidade, intitulado " Todas as crianças são bem vindas à escola", onde busca clarear o sentido da inclusão e demonstrar a viabilidade desta empreita por uma "transformação geral das escolas, visando atender aos princípios deste novo paradigma educacional" (Mantoan,1996).

A autora sugere a inclusão como uma possibilidade de inovação da escola, pois provoca e exige da escola brasileira novos posicionamentos, podendo ser um motivo a mais para que o ensino se modernize e os professores aperfeiçoem suas práticas. Ela reconhece que o que tem sido feito nas escolas brasileiras "são projetos de inclusão parcial, que não estão associados a mudanças de base nas escolas , mas a criação de espaços escolares semi ou totalmente segregados (classes especiais, salas de recurso, turmas de aceleração, escolas especiais, serviços de itinerância)". (Mantoan,1996:03)

Que saídas ela irá propor então para a conquista do que nomeia como uma escola de qualidade para todos?

Nas palavras da autora: " A aprendizagem como o centro das atividades escolares e o sucesso dos alunos, como meta da escola, independentemente do nível de desempenho a que cada um seja capaz de chegar são condições de base para que se caminha na direção de escolas acolhedoras. O sentido desse acolhimento não é o da aceitação passiva das possibilidades de cada um, mas o de serem receptivas a todas as crianças, pois as escolas existem para formar novas gerações e não apenas alguns de seus futuros membros, os mais privilegiados. A inclusão não prevê a utilização de métodos e técnicas de ensino específicas para esta ou aquela deficiência. Os alunos aprendem até o limite em que conseguem chegar, se o ensino for de qualidade, isto é, se o professor considera o nível de possibilidades de desenvolvimento de cada um e explora estas possibilidades, por meio de atividades abertas, nas quais cada aluno se enquadra por si mesmo, na medida de seus interesses e necessidades, seja para construir uma idéia, ou resolver um problema, realizar uma tarefa. Eis aí um grande desafio a ser enfrentado pelas escolas regulares tradicionais, cujo paradigma é condutista e baseado na transmissão de conhecimento". (Mantoan,1996:05)

A primeira questão que podemos colocar é se de fato a escola foi feita para fazer com que todos os alunos aprendam. Poderíamos dizer que sim, que a escola objetiva a transmissão de conhecimentos para todos os seus alunos,o que não quer dizer todas as crianças . Não nos esqueçamos dos princípios fundadores da escola moderna, que fez um recorte em sua criação dizendo o que lhe cabia e conseqüentemente, o que não lhe dizia respeito. Assim sendo, ao dar um lugar escolar para algumas crianças, ela automaticamente criou um grupo de não escolarizáveis. São estes "não- alunos" que, agora, recebem um lugar na escola inclusiva.

Um outro ponto a ser relevado seria o tal limite ou o nível de possibilidades de desenvolvimento de cada um. Parece-nos que a filosofia que sustenta a proposta inclusiva é a seguinte: Crianças possuem diferenças naturais por inúmeros motivos. São estas diferenças que dizem até onde elas poderão chegar. Obviamente, as que menos diferenças possuem chegarão com mais facilidade e mais rapidez a um lugar ideal. Na escola, este lugar ideal seria a aprendizagem de conteúdos propostos, o tal acréscimo de saber às suas potencialidades. Assim, um bom professor seria aquele que conhece o nível de possibilidades de desenvolvimento de cada um e explora estas possibilidades através do ensino. O bom aluno seria aquele que se desenvolve, ou seja, que acrescenta algo mais, ofertado pelo outro, às suas potencialidades.

Estas considerações, que entendemos como o princípio pedagógico, trazem em si alguns pressupostos que pensamos poder dificultar a empreita pedagógica dos alunos com dificuldades.

Podemos resumir esta crença que anima o ato pedagógico no que Lajonquière chamou de espírito (psico)pedagógico hegemônico presente na escola moderna brasileira. O autor faz referência a um discurso que impera nos meios escolares que pensa a educação como um processo natural de aperfeiçoamento de um estado espiritual infantil através de uma intervenção do adulto educador. Nas palavras do autor:

"O lugar de destaque adquirido, no interior do campo educativo, pela tese da adequabilidade, implica na consolidação daquilo que batizamos como discurso (psico)pedagógico hegemônico. Em seu interior, tudo aquilo que é, hoje em dia, pensado, dito, almejado e empreendido em educação, encontra justificativa conceitual na medida precisa de uma suposta contribuição ao desenvolvimento das ditas capacidades maturativas das crianças de plantão. Em suma, a intervenção dos adultos junto às crianças passa a invocar razões psicológicas e portanto, o campo educativo geral, bem como o cotidiano escolar, em particular, acabam obviamente, sendo psicologizados." ( 1998:67,68.)

O psico diz respeito a grande influência que as teorias psicológicas exerceram sobre as escolas, sustentando que crianças possuem capacidades cognitivas e afetivas naturais e que estas poderão se desenvolver frente a uma intervenção adequada do adulto educador.

Esta tese da adequabilidade natural traz em si alguns preceitos que justificaram a exclusão das crianças com dificuldades das escolas. Estas diferenças pensadas como naturais, conferia às crianças com deficiências o estatuto de menos privilegiadas pela natureza e portanto, fora do discurso social, para um tempo depois serem tomadas como necessitadas de cuidados especiais, que pudessem vir a adequá-las a uma normalidade, e por último, como vítimas de um preconceito social que as excluiu por causa das suas diferenças . Portanto, seguindo ao afã democrático, precisam obrigatoriamente serem incluídas.

As conseqüências desta tese de adequabilidade natural também podem ser pensadas referentes ao como fazê-lo, ou seja, basta que façamos melhor e mais lentamente que a criança com dificuldade chegará lá. Lá até onde sua natureza permitir, sejamos claros. Para tanto, o professor precisa conhecer como o infantil se desenvolve e fazer uso de um método de ensino adequado para seu aluno. Acompanhamos uma busca frenética dos saberes pedagógicos de um método ideal, aquele que não deixaria um saldo entre o início, o meio e o fim.

Vem do campo da psicologia esta compreensão pedagógica em educar com vistas ao aprimoramento das potencialidades naturais. É o saber psicológico que pensa o homem como um indivíduo a ser desenvolvido em suas capacidades por um estímulo adequado. A este respeito tomamos emprestadas algumas palavras de Lajonquière:

"Dessa forma, embora, às vezes, alimentadora de uma fé pioneira, outras, de uma crença hegemônica nos múltiplos e contraditórios benefícios da psicologização generalizada de todo o campo educativo e, em particular, dos âmbitos escolares, a tese de adequação natural acabou por adquirir um lugar de destaque nos espíritos pedagógicos modernos. Obviamente que assim seja, não é outra coisa senão uma manifestação pontual do processo de individuação psicológica inerente a forma moderna de vida disciplinar que Foucault esmiuçara detalhadamente. Como sabemos, uma vez autogerados sócio-historicamente e convitos de sermos indivíduos, ou seja, organismos adaptáveis, a psicologia vira método de vida e de natureza, nosso destino existencial." ( 1998:67)

Quando lemos nos escritos pedagógicos que justificam a permanência das crianças portadoras de necessidades especiais nas escolas, percebemos o discurso (psico) pedagógico hegemônico por trás não apenas da justificativa, como do caminho a ser seguido. Quando dizem que " os alunos aprendem até onde podem chegar se o professor considera o nível de possibilidades de desenvolvimento de cada um e explora essas possibilidades por meio de atividades abertas"( Mantoan, op.cit.), é disto que estamos falando.

Pensando assim, talvez não se trate de discutirmos se é melhor dentro ou fora, na mesma fila ou em fila separada, com reforço ou sem reforço, se aprende ou não aprende, ao mesmo tempo ou mais devagar, com este método ou aquele; mas trata-se de pensarmos se uma criança de fato aprende devido às suas capacidades maturativas naturais quando encontradas ao estímulo certo. Acreditamos ser este pressuposto pedagógico do que leva uma criança a aprender que dificulta a proposta da inclusão, assim como traz inerente a si alguns sintomas próprios da escola atual. Falamos aqui da indisciplina e do fracasso escolar das crianças "escolarizáveis" e que tanto tem tirado a tranqüilidade da escola.

No que diz respeito as antes "não -escolarizáveis", pensar em considerá-las como desprovidas de capacidades pela natureza , mas com chances de melhorarem se forem adequadamente estimuladas, coloca a pedagogia em um discurso que gira em círculos porque busca a solução no conhecimento do desenvolvimento e na busca do método.

Pensamos que esta forma de considerar o aprender traz em si como conseqüência as atuais vicissitudes em que se encontram as propostas de inclusão escolar, pois partem de um pressuposto equivocado e só resta às crianças com dificuldades a imitação, o automatismo ou a ecolalia. Quando não, a saída da escola.

 

Referências Bibliográficas

Foucault, M. (1993) "História da loucura na idade clássica". São Paulo. Ed. Perspectiva

Kupfer, M.C. & Petri, R (2000) "Por que ensinar a quem não aprende?" in Estilos da Clínica, ano 5, n.9. São Paulo. Instituto de Psicologia da USP

Lajonquière, L. (1998) "A psicanálise, a educação e a escola de Bonneiul. A(à) lembrança de Maud Mannoni". Estilos da Clínica, ano 3, n.4. São Paulo. Instituto de Psicologia da USP.

Mantoan, M. T. E. (1996) "Todas as crianças são bem vindas a escola". Apostila. Faculdade de Educação da UNICAMP.

Mazzotta, M.J.S. (1996) "Educação especial no Brasil. História e políticas públicas". São Paulo. Ed. Cortês.

 

 

1 Psicanalista. Mestranda da Faculdade de Educação da USP.