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On-line ISBN 85-86736-06-6

An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP 2002

 

A "relação" psicanálise / educação no tratamento de crianças com impasses na constituição Da subjetividade.

 

Christiano Mendes de Lima 1

 

 

O presente texto se inscreve no campo da articulação psicanálise / educação. Ressaltamos, porém, que tal articulação não pode se dar de modo positivo, ou seja, a psicanálise não pode ser tomada enquanto método ou teoria a ser aplicada ao campo educativo. Apesar de nosso título enunciar que trataremos da "relação" psicanálise / educação, sustentamos que não há tal relação, pois afirmar tal "casamento" poderia nos levar ao perigoso terreno em que a psicanálise seria rebaixada a mais uma teoria psicológica a incrementar o discurso psicopedagógico que opera hoje no quotidiano escolar. Acreditamos, no entanto, que a psicanálise pode ser chamada a nos ajudar a pensar o impasse e mal-estar no campo educativo.

Neste texto, procuramos mostrar como a psicanálise pode nos servir para pensar os lineamentos básicos que devem estar presentes em um ato educativo e, também, como o referido discurso psicopedagógico torna difícil que a educação possa ocorrer. Utilizaremos trechos de uma entrevista que tivemos com uma coordenadora de uma escola que veio nos procurar em razão das dificuldades que estava tendo com uma criança com quem havíamos realizado entrevistas diagnósticas no Núcleo de Atenção Psicossocial Infantil da Prefeitura Municipal de Uberlândia (MG). A situação colocada por esta educadora nos servirá para ilustrar a distinção que, a partir da psicanálise, podemos fazer entre moral e ética. Tal diferenciação é necessária para situarmos as balizas para o ato educativo, bem como para o tratamento de crianças em impasses na constituição da subjetividade (referimo-nos, especialmente, às crianças autistas e psicóticas).

***

Notamos que o campo educacional, atualmente, encontra-se polarizado entre duas posições do educador em relação aos educandos: ou há uma ausência de sistematização dos conteúdos escolares, ou procede-se a uma sistematização que tem por base não só a gradação na complexidade dos conteúdos a serem ensinados, mas principalmente todo saber psicológico que é chamado para criar técnicas que supostamente facilitariam a aprendizagem. A questão, a nosso ver, no entanto, está mal colocada: não se trata de que o ato educacional tem maiores chances de dar certo se fundamentado em métodos e técnicas sistematizadas ou na ausência delas. Acreditamos, a partir do referencial psicanalítico, que o ato educacional se sustenta a partir do desejo do educador, na medida em que este se fundamenta na Lei e a coloca em ato ao se endereçar às crianças, seus alunos.

Sabemos que todo o processo de subjetivação do "animal" humano só pode se dar em face de outro ser humano que sustente e forneça os elementos necessários para que o infans saia do registro da pura necessidade e se insira no campo da Cultura. O elemento viabilizador de tal passagem constitutiva do nascimento da subjetividade, só pode ser as palavras banhadas de desejo que os pais (ou outros adultos cuidadores) endereçam à criança. Freud (1914) afirma que o filho é o prolongamento do narcisismo parental, isto é, o bebê quando vem ao mundo já é tomado na teia de desejos, expectativas e votos parentais que tecem um lugar simbólico onde a criança é acolhida e sua subjetividade tramada. Ocorre que as palavras parentais são necessariamente ambíguas, e isto é algo interno ao campo discursivo (a psicanálise mostrou que quando falamos, dizemos mais do que acreditamos dizer e até mesmo outra coisa) e não um erro "técnico" dos pais ao educar os filhos. E é a partir desta ambigüidade constitutiva da linguagem que a criança pode se ver frente a um enigma de radicais conseqüências estruturantes para sua subjetividade: o que eles querem de mim? O que querem que eu seja? Este enigma é o ponto de articulação de toda educação primordial responsável pela constituição da subjetividade humana.

Perguntamo-nos: o que aconteceria se os pais empreendessem toda a educação de seus filhos seguindo um primoroso manual recheado de saberes médico-psicológicos que dissesse, por exemplo, que o choro inicial do recém nascido é apenas uma atividade "reflexa" a um desconforto proveniente de causas internas (fome, dor, etc.) ou externas (frio, excesso de ruído ou luz e outros) e não um pedido endereçado aos seus pais? Os pais, fiados no saber técnico-cientificista, não leriam na atividade reflexa de seu filho um pedido (de ajuda, de amor, etc.) e deixariam de sustentar para o bebê as condições mínimas necessárias a seu processo de subjetivação. Educação técnica, cientificamente correta, porém destituída de desejo a partir do qual a criança possa vir a ser um sujeito.

Por outro lado, se os pais, crentes em uma suposta "capacidade natural" que as crianças possuiriam para se desenvolver, não tomassem para si a responsabilidade ética da educação de seus filhos, tampouco estes sairiam de uma condição natural e, portanto, animal.

Assim, faz-se necessário na educação de uma criança que um adulto sustente um ato em nome próprio, ou seja, onde seu próprio desejo esteja implicado. Não se deve pretender nem a suposta pureza dos atos sustentados em nome da técnica, seja ela qual for, nem a crença de que a criança caminha por si mesma, aprende por si mesma; pois em ambos os casos o que ocorre é a própria demissão do educador de sua tarefa educativa.

Como bem nos aponta Lajonquière (1999), nas escolas, assistimos hoje, a uma situação em que o professor se ampara em todo um arsenal técnico psicopedagógico e regra suas ações a partir daquilo que teoricamente supõe necessário para desenvolver as capacidades infantis que estariam em estado de latência. Esta concepção situa a educação no plano da mera estimulação de capacidades e habilidades que se supõe involuídas na criança e impede o processo em que o ato educacional é sustentado eticamente por um sujeito (educador) desejante que se relaciona com uma criança, também sujeito desejante (e não mero amontoado de habilidades a serem pavlovianamente estimuladas). Acreditamos que a educação não é um termo abstrato, mas que é composta de atos educativos onde a subjetividade do educador está presente e suas palavras - se ditas em nome próprio e não em nome de uma teoria psicopedagógica - com sua intrínseca ambigüidade, permitem aos alunos se colocarem questões tais como: "o que o professor quer de mim? O que quer que eu aprenda? Pra quê? Pra mim? Pra ele? O que quer que eu saiba?". Perguntas de um sujeito que pode se abrir para o campo do saber compartilhado, para a Cultura, a partir do desejo enigmático de um educador que sustente atos educacionais, possibilitando a emergência da curiosidade infantil. Cabe ao educador, que sustente eticamente sua posição, aceitar o pensamento da criança como uma atividade singular e não como um mero arremedo dos enunciados curriculares; assim como reconhecer na aprendizagem de cada criança um ato de um sujeito e não simplesmente lê-la como uma decorrência "natural" de sua potência educativa.

Ocorre que na medida em que, atualmente, o quotidiano escolar está todo atravessado pelas teorias psicopedagógicas - o que tem por efeito a demissão do educador do processo educativo, posto que este passa a se endereçar às crianças a partir de uma teoria - há a redução do estofo simbólico que estaria contido no ato educativo, se este fosse sustentado pelo educador em nome próprio, veiculando, assim, a Lei que funda a Cultura. Lajonquière (1999) afirma a relação entre o afluxo dos saberes psicopedagógicos na situação escolar e a redução da dimensão simbólica da Lei quando diz que no cotidiano escolar "não imperam verdadeiras leis, mas quase-leis, isto é, apenas regras ou normas de moral psicopedagógica" (p.76).

A partir da psicanálise podemos estabelecer uma importante distinção entre Lei e moral. A Lei se refere fundamentalmente à interdição do incesto. Da estrutura desta interdição, podemos destacar que se trata de uma proibição que abre uma gama de possibilidades. Como diz Lajonquière: "a lei proíbe e abre um leque de possíveis outros" (1999, p.76). De fato, se pensarmos na conjuntura edípica, notamos que, ao mesmo tempo em que a Lei opera no sentido de interditar a relação incestuosa mãe / filho, garante também uma regulação da estrutura, ou seja, do simbólico; ordenação esta que permite o deslocamento do investimento libidinal na mãe (objeto interdito) para outros objetos possíveis. A Lei é, então, a garantia do simbólico e condição necessária para a emergência do sujeito do desejo. Estamos aqui no campo da ética, no campo em que está aberta para o sujeito a possibilidade de escolhas nas quais é posto em ato o engajamento subjetivo. Já a regra, solidária da moral, situa-se no terreno do imaginário, pois ela "prescreve categoricamente a prática de atos concretos" (Lajonquière, 1999, p.76). Tal prescrição, que coloca em ato uma demanda de conformação aos ideais do Outro, implica a apreensão da criança em uma posição de objeto, chamado a fazer relação com Outro, ou seja, a servir como complemento imaginário, narcísico do Outro, no caso, do educador.

Ocorre que nas práticas que se tramam no interior da escola, notamos que há o império das regras e da moral, pois os adultos não se endereçam às crianças em nome próprio, veiculando a Lei, e que, ao se endereçarem a partir de uma compreensão da suposta realidade psicológica da criança, promovem uma captura da criança na dimensão imaginária, o que esvazia a fala e o ato do educador de sua potência educativa. Se esse dispositivo escolar impregnado de moral e regras dificulta a educação de crianças "normais", para aquelas em impasses na constituição subjetiva, tal dispositivo é letal. Tais crianças, pelas dificuldades subjetivas em que se encontram, vêem-se impossibilitadas de jogar dialeticamente com as demandas veiculadas pelos adultos. Tais demandas, proferidas a partir do vértice da moral e da regra, reduzem as crianças à condição de objeto, barrando o caminho que possibilitaria a elas se situarem enquanto sujeitos desejantes. Assim, a direção da educação e do tratamento de crianças autistas e psicóticas não deve se assentar no campo da moral, mas sim no campo da ética, na medida em que "o projeto ético reinscreve, no campo das práticas, o reconhecimento da liberdade e singularidade essenciais do sujeito; e, de modo mais preciso, porque às regras que criam ligações e subjugam, ele opõe a eficácia da lei que é a origem das separações, das castrações simbólicas produtoras da palavra e do desejo" (Imbert, 2001, p. 26).

A seguir, pensaremos uma situação relatada pela coordenadora de uma escola a fim de ilustrar como o dispositivo escolar está impregnado de moral, mas não de ética. Esta senhora veio se queixar que não sabia mais o que fazer com uma criança de quatro anos, que segundo ela "certamente é hiperativa". Conta que a criança não pára quieta, sai da sala, o que obriga, por vezes, a professora a sair também para ficar com a criança no pátio, tentando convencê-la a voltar à sala; joga o material dos colegas fora, não faz as tarefas, etc.. Quando apontei para a coordenadora que os atos da criança deveriam ter conseqüências, ela rebateu: "mas somos, às vezes, até duras com ele. Por exemplo, ele jogou papel picado no chão. Depois queria uma bola para jogar. Disse a ele que só lhe daria a bola se catasse todos os papéis no chão. Ele não queria e fiquei com ele mais de uma hora para fazê-lo catar os papéis. Só então dei a bola". Vejamos: quando a coordenadora coloca a alternativa: ou cata os papéis e recebe a bola, ou não os cata e não a recebe; ela estabelece uma situação onde a criança pode escolher, ou seja, engajar-se subjetivamente. Ocorre que a seqüência da conversa revela que a possibilidade de escolha que ela sinalizava para a criança era um engodo, pois a coordenadora não tomou o não catar os papéis como uma escolha subjetiva da criança que implicaria não receber a bola (eis aqui a conseqüência da escolha, conforme ela mesma havia enunciado). Ao contrário, a coordenadora se viu na posição de ter que fazê-lo catar os papéis e para isto despendeu mais de uma hora de seu tempo. Podemos pensar que, enquanto a escolha estava aberta para a criança com suas respectivas conseqüências, a fala da coordenadora se situava no campo da ética. Quando a possibilidade de escolha se revelou uma farsa, suas palavras bascularam para o campo da moral, onde há uma demanda imperiosa de conformação ao Desejo do Outro. A coordenadora teve que fazê-lo catar os papéis para restituir seu narcisismo posto à prova pela recusa da criança (como se se dissesse: "sou boa educadora, se conseguir fazer os alunos fazerem o que eu quero, que se deixem ensinar, que se deixem aquietar, que não façam bagunça, etc.). Ocorre que aqui a criança é reduzida a um objeto que deve restituir a onipotência do Outro: sua possibilidade de ex-istir enquanto sujeito se vê ameaçada. Resta então a atuação, a indisciplina, a violência: tentativas de recuperar em ato a dimensão subjetiva, ameaçada pela Demanda de conformação ao Outro.

Assim, se este modus operandi que se monta sobre imperativos morais produz como efeito os problemas disciplinares de que tanto as escolas se queixam; em relação às crianças em impasses subjetivos, a situação é ainda mais grave, pois impossibilitadas de dialetizar as demandas educativas, tais crianças se oferecem enquanto objeto no Real, fecham-se em estereotipias, mutilam-se ou agridem o outro. As demandas educativas articuladas em torno da moral impedem que estas crianças possam experimentar a Lei que as humanizaria, ou seja, que inscreveria suas estereotipias no campo da Linguagem, transformando-as em gestos endereçados ao Outro. A psicanálise, portanto, mostra-nos que os adultos, no tratamento e na educação de crianças autistas e psicóticas, devem se endereçar a estas a partir do campo da ética, para que tenham chances de vir a ser sujeitos.

 

Bibliografia

Freud, S. (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad.) (vol. XIV, pp.89-119). Rio de Janeiro: Imago, 1990.

Imbert, F. (2001). A questão da ética no campo educativo.Petrópolis: Editora Vozes.

Lanjonquière, L. (1999). Infância e ilusão (psico)pedagógica. Petrópolis: Editora Vozes.

 

 

1Psicanalista; Mestrando na Faculdade de Educação da USP; Membro da Clínica Freudiana de Uberlândia (MG); Psicólogo do NAPS Infantil da Prefeitura Municipal de Uberlândia.