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On-line ISBN 85-86736-06-6
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An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP 2002
A representação infantil do trabalho escolar à luz de Walter Benjamin
Maria Luísa Carvalho de Almeida Sampaio1
O objetivo deste trabalho consiste em analisar, na representação de um aluno do Ensino fundamental , o significado do trabalho escolar, ou seja, o sentido que a criança dá ao que faz e ao que compartilha na escola. Para isso, utilizaremos como referencial teórico o conceito de experiência de Walter Benjamin, que trata justamente da inserção do sujeito na cultura.
A partir da reflexão sobre o atendimento clínico na psicopedagogia, o conceito de experiência de Benjamin adquiriu um caráter esclarecedor a respeito de trajetórias escolares mal sucedidas, fazendo-nos debruçar sobre esta questão. Nesse sentido, faremos uma breve discussão sobre este referencial teórico.
O texto no qual Walter Benjamin(1996a) vai dedicar-se a desenvolver o tema da experiência, é iniciado por uma narrativa, que nos ensina como nos tornamos ricos:
" Em nossos livros de leitura havia a parábola de um velho, que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho."
Esta fábula nos fornece as referências essenciais para compreendermos tal conceito. Primeiro: a experiência se inscreve numa temporalidade comum a várias gerações. Ela supõe, portanto, uma tradição compartilhada e retomada na continuidade de uma palavra transmitida de pai para filho. Tal continuidade e temporalidade são próprias às sociedades artesanais, em contraponto à noção de tempo deslocado e entrecortado do trabalho nas sociedades capitalistas.
A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte de todas as narrativas. A forma de comunicação por excelência para compartilhar a experiência é a narração. O narrador, segundo Benjamin(1996b), geralmente é representado pelo ancião da comunidade, que conquistou a sabedoria e a autoridade , através do trabalho e do tempo. Na narração, o saber adquirido por testemunhar tantos acontecimentos, penetra na vida do narrador, para posteriormente ser oferecida aos ouvintes como experiência.
A narrativa traz consigo algo de cunho exemplar, que pode servir como um conselho, uma sugestão para o problema apresentado por um ouvinte. Além de ensinar, a narrativa propicia a quem a escuta, entrar em contato com outros mundos, outras pessoas, que por mais diferentes que possam parecer, vivem histórias muitos semelhantes. Assim, o ouvinte sente-se menos só, pois outras pessoas também sofreram as contingências da vida. Isto propicia a atribuição de um sentido aos acontecimentos e também permite estabelecer laços simbólicos.
Acreditamos que já podemos estabelecer a relação entre a experiência no sentido benjaminiano e a escola. Esta pode ser considerada um espaço privilegiado de compartilhamento de experiências, uma vez que ela é encarregada de transmitir o legado da cultura às novas gerações.
Na escola, o aluno entra em contato com inúmeras referências culturais e pode aderir a algumas delas e também criticar outras, estabelecendo, assim, laços sociais. Quando o aluno assume como próprios alguns ideais da cultura, que fazem parte do patrimônio acumulado pelas gerações passadas, o sujeito ganha uma marca identificatória, contraindo, assim, uma dívida simbólica com o Outro, segundo Lacan.
Neste contexto, poderíamos estabelecer uma analogia entre a figura do professor e a do narrador. O narrador, como afirmamos anteriormente, tem a sabedoria impregnada em si e ao relatar os acontecimentos, também oferece sua sabedoria aos ouvintes. Da mesma forma, o professor, mais que transmitir conhecimentos, transmite igualmente sua própria relação com a cultura e com os saberes . Nas palavras de Jean-Yves Rocheix (1995), "ele testemunha , na sua atividade e na sua relação com ela, o sentido que tem para ele a cultura que é encarregado de transmitir".
Porém, não é isso que constatamos na atualidade. Segundo os relatos de muitos alunos, a constante tem sido a impossibilidade da troca, do compartilhamento de conhecimentos. Ao invés do aluno compartilhar experiências, é exposto a uma quantidade enorme de informações, que o deixam desorientado frente a uma avalanche de dados, impossíveis de serem articulados e significados, pois carecem de uma base, de lastro simbólico.
Somos levados a crer que o contexto de narratividade foi abolido da escola e que a cultura escolar parece não mais fazer sentido aos jovens. Restam aos alunos, o sentimento de solidão e alienação no universo escolar. Tal sentimento tem relação com o que Walter Benjamin caracterizou como vivência .
Benjamin (1975) observou que a experiência autêntica foi sendo substituída por uma experiência que perdeu seus laços com a tradição, destruídos pelo capitalismo e pelas condições da vida moderna. A esta nova condição , deu o nome de vivência: uma forma de ser e estar no mundo, caracterizada pela fugacidade, individualidade e imediatismo. Na vivência, o acontecimento é apenas notado pelo sujeito, ou seja, há uma catalogação dos fatos, de forma indiscriminada. O acontecimento é algo exterior a ele, não é algo que lhe acontece. Assim, as coisas perdem a sua integridade e o seu significado.
Apresentaremos, a seguir, um relato de caso que pode ser esclarecedor quanto ao sentido que a criança dá ao que vive e compartilha na escola na atualidade. Trata-se de um menino de 9 anos , da 4ª série do Ensino Fundamental. Iremos chamá-lo Adriano – garoto de família de classe média brasileira, sem parentesco com estrangeiros, mas que estudava numa escola particular inglesa.
Este menino apresentara dificuldades sistemáticas na escolarização, e naquele ano, corria o risco de ser reprovado e por este motivo, foi encaminhado pela escola para um diagnóstico psicopedagógico.
Segundo os pais, desde a educação infantil, o filho estudou em escolas bilíngües, embora o casal fosse brasileiro. A justificativa para tal opção era de que na atualidade, era fundamental saber inglês tão bem quanto o português, para se dar bem no mercado de trabalho.
Este estabelecimento era uma dissidência de uma tradicional escola britânica e como esta, seguia a estrutura das escolas inglesas: período integral, férias de acordo com o calendário europeu e todas as disciplinas eram ministradas em inglês, com exceção de Português, que ocupava uma carga horária mínima. As reuniões de pais eram em inglês, por isso, a mãe, que não dominava esta língua, deixara de freqüentá-las, sendo o pai quem comparecia às mesmas.
Na última reunião , a professora, uma australiana recém-chegada ao Brasil, disse ao pai que era muito frustrante dar aulas para um aluno como aquele, pois ele não aproveitava absolutamente nada do que ela ensinava.
Anos antes, os pais colocaram o filho no Kumon, para melhorar em Matemática . Depois de um certo período, o garoto melhorou na escola e abandonou o trabalho. Logo, novas dificuldades surgiram. Conhecidos falaram que aulas de Música ajudava na Matemática, e os pais em seguida o colocaram em aulas de piano, que o menino detestava.
Adriano era ótimo em esportes – adorava futebol. Jogava bola diariamente no recreio. Apesar de tal dom, os pais o colocaram em Tênis, pois era um esporte que "exercitava a atenção".
Ao conversarmos com o garoto, notamos uma falta de interesse em falar sobre sua escola. Quando perguntado sobre o que fazia lá, disse apenas que tinha "muitas aulas" . A preferida era Educação Física e todas as outras eram " parecidas".
Ao ser solicitado a escrever uma história, perguntou que língua deveria utilizar, e quando o critério foi o de sua escolha, optou pelo português. No final do estudo de caso, foi verificada uma séria defasagem na produção escrita, tanto em português, quanto em inglês.
Não vamos nos deter no estudo de caso em si. Nossa intenção é verificar o que representa a escola para este garoto. Primeiramente, vamos abordar a questão da opção pela escola bilíngüe.
Geralmente, os pais optam por uma escola que se encarrega de transmitir valores e o patrimônio cultural com o qual a família compartilha, para haver uma integração entre o universo familiar e social da criança. Estudar numa escola de língua e cultura estrangeira , nestas condições, significa viver uma violência simbólica, pois não há uma identificação entre a cultura escolar e a familiar. A criança vive a exclusão, a sensação de que não faz parte daquele universo.
Em relação ao Adriano, ele não dominava suficientemente o inglês e por isso todas as matérias eram "parecidas". Daí a "falta de atenção", a dificuldade de acompanhar os conteúdos. Segundo a professora, ele não aproveitava absolutamente nada do que ela ensinava , pois estava impedido pelo obstáculo da língua.
Em situações de residência num país estrangeiro, muitas crianças são levadas a estudar em escolas de outras culturas, que não a sua, porém, isso se justifica, pois se trata da cultura do país. Há todo um contexto que dá um lastro simbólico para que esta cultura seja assimilada pela criança.
No caso deste menino, não havia estofo simbólico que fizesse com que tal cultura fosse incorporada por ele. Como afirmamos anteriormente, a escola era uma dissidência, e não carregava consigo um imaginário, ou seja, uma tradição. Tratava-se de um " faz-de-conta" , de uma aparência de escola inglesa, porém, ela não trazia consigo o lastro simbólico da cultura britânica. Exatamente por isso, ela não atraía alunos ingleses . De sua clientela, 70% eram brasileiros.
Por que então escolher tal escola ? Na verdade, ela era uma empresa, e como tal, vendia um produto: ensinar a criança a falar um inglês fluente. Os pais, ao nosso ver, buscaram um objeto de consumo e não um projeto educativo.
Acreditamos que isso se deva a uma busca de ascensão social, um anseio de que os filhos pudessem realizar os sonhos que os pais não alcançaram. Trata-se de um narcisismo em relação aos filhos, além de uma desvalorização da própria cultura, como se esta fosse inferior , sem atributos que permitissem criar uma sólida identidade cultural para seus filhos.
Para sustentar o investimento econômico, os pais fazem de tudo, como afirma M. Cecília C.C.Souza (1998), vigiam os estudos e optam por atividades para-escolares, como o Kumon, até a pedagogização do lazer, como as aulas de piano e tênis, independente dos interesses e inclinações do filho. Ou seja, os pais encurtam a distância entre a família e a escola, fazendo da criança em casa, um aluno.
Analisando o discurso de Adriano: "as matérias são parecidas " , somos levados a crer que a relação que ele estabelece com a escola é de uma vivência, segundo o referencial de Walter Benjamin. Ou seja, tem contato com informações que mal são discriminadas, e tampouco articuladas. Estas, segundo Benjamin(1975), deixam o sujeito afastado do acontecimento e perdido frente a uma quantidade enorme de dados. A informação nunca se transforma numa experiência, num saber. As informações são catalogadas na memória , constituindo-se em vivências, que serão esquecidas em breve.
Refletindo sobre a questão da transmissão do conteúdo, esta empresa não tem como efetivar-se em tal contexto, pois não há um sistema comum de referências, uma vez que Adriano não domina a língua e tampouco tem uma identidade com a cultura inglesa, já que esta não faz parte das suas origens e tradições.
Quanto à cultura brasileira, podemos afirmar que há um desenraizamento em relação à mesma, pois Adriano não tem contato na escola com a cultura do seu país e não domina a leitura e a escrita do português, estando, portanto, impedido de interagir com os bens da cultura, como os livros. O único laço que Adriano tem com tal patrimônio é o futebol, e este acontece à revelia da escola – vemos aqui seu único espaço de subjetivação.
Podemos concluir que, tendo como única opção o campo das vivências, o que restará ao Adriano será constituir-se como um indivíduo sem referências, sem uma cultura na qual se sinta integrado, voltando-se somente para o presente. Trata-se de um sujeito que sente solidão, mas que não pode recorrer ao patrimônio cultural para fugir da vulnerabilidade da vida, pois este caminho não lhe foi ensinado.
Este caso se trata de uma situação específica, porém, cremos que muitas outras crianças sofrem do mesmo mal.
Acreditamos que a nova configuração que a escola pública, e sobretudo a escola particular tomou nas últimas décadas, ao entrar na lógica do mercado, engendrou uma grande crise quanto às suas finalidades . Ao tentar responder às diferentes demandas que a clientela impõe, como preparar para o mercado de trabalho e ensinar uma segunda língua de forma efetiva, desviou-se da sua função primeira. Ao tentar atender às múltiplas demandas , deixou de realizar sua tarefa essencial.
Cabe à escola refletir sobre sua essência e sobre a sua principal finalidade: formar sujeitos da cultura. Em nossa opinião, isso poderia se dar com o resgate da narratividade na escola , que permitiria aos alunos estabelecer uma anterioridade formadora, uma ordem temporal, em outras palavras, uma raiz.
O papel da escola seria justamente deitar raízes. Terminaremos esta reflexão com uma fala de Simone Weill (1979): "... o sujeito tem uma raiz por fazer parte de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e (também)certos pressentimentos do futuro".
BIBLIOGRAFIA
BENJAMIN, W. (1975)Sobre alguns temas em Baudelaire In Benjamin, Horkeimer, Adorno e Habermas – Textos escolhidos . São Paulo: Abril, série Os Pensadores.
BENJAMIN, W. (1996a) Experiência e pobreza In Obras Escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasilense
BENJAMIN, W. (1996b) O narrador In Opus cit.
DUBET,F. e Martucelli,D.(1996) `A l´école: Sociologie de l´éxperience scolaire. Paris:Seuil
SOUZA, M.C.C.C.(1998) `À sombra do fracasso escolar In Estilos da clínica – revista sobre a infância com problemas. Ano III, nº5, 2º semestre 1998, p. 65
ROCHEIX, J. Y.(1995) Rapports à l´école – Rapports aux savoirs In Revue Spirales nº 8, 1995, tradução de Maria Cecília C.C.Souza
WEILL, S.(1979) O enraizamento In A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra
1 Mestranda da Faculdade de Educação da USP.