3A representação infantil do trabalho escolar à luz de Walter BenjaminDireitos da criança, infância e psicanálise author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 85-86736-06-6

An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP 2002

 

O infans, a creche e a psicanálise

 

Valéria Ferranti1

 

 

Na virada do século nada mais cotidiano e até mesmo banal observarmos variados sentimentos suscitados nos adultos pela presença de crianças. Da afeição à raiva, do deslumbramento à indiferença, os adultos são tocados por estes pequenos seres.

Este fato tomado do cotidiano indica a existência de pelo menos duas categorias de indivíduos: os adultos, ativos na irrefreável atração para com os pequenos e as crianças, tomadas como objeto de amor ou ódio pelos adultos. A separação entre adultos e crianças enquanto categorias distintas é construída historicamente através do conceito de infância. Assim, este pequeno ser que viverá sua infância obedecendo a determinadas etapas, carecendo de cuidados específicos em cada momento de seu ‘progresso’, não é um objeto dado, natural, mas sim produto de relações históricas e sociais e da atual prevalência das teorias desenvolvimentistas nos saberes difundidos sobre as crianças.

Sobre os bebês, o historiador Philippe Ariès ressalta que: "O francês seria portanto levado a tomar emprestadas de outras línguas (...) palavras que designassem essa criança pequena pela qual começava a surgir um novo interesse: foi o caso do italiano bambino, que daria origem ao francês bambin." (...)

"Com o tempo, essas palavras se deslocariam e passariam a designar a criança pequena, mas já esperta. Restaria sempre uma lacuna para designar a criança durante seus primeiros meses; essa insuficiência não seria sanada antes do século XIX, quando o francês tomou emprestado do inglês a palavra baby, que, nos séculos XVI e XVII, designava as crianças em idade escolar. Foi esta a última etapa dessa história: daí em diante, com o francês bébé, a criança bem pequenina recebeu um nome." (1981, p.45)

Há uma passagem bastante conhecida do renascentista Montaigne que afirma ter perdido duas ou três crianças. Perdido no sentido literal, de não saber onde se encontravam. Eram crianças pequenas, vivendo a primeira infância não sob o olhar atento e vigilante dos pais ou de adultos cumprindo esta função, mas de forma a se confundirem com os animais.

Ao nomear estes pequenos seres que nada significavam e poderiam até ser perdidos, as crianças pequenas ganham lugar na realidade discursiva. Imerso na passagem para a modernidade, o bebê ganhou nome, família, e o ‘direito’ a ser amado.

Cabe ressaltar que concomitantemente ao nascimento do infans como objeto de investimento e investigação, a família ganha lugar de destaque em relação às crias humanas. Deixando de ter a linhagem garantida apenas pelos laços consangüíneos, que permitia às famílias grandes grupamentos com variados graus de parentesco, as Luzes propagarão o ideal nuclear constituído por pai, mãe e filho(s). A coabitação no leito por pessoas de diferentes idades começa a se extinguir e as relações iniciáticas são substituídas pelas intenções educativas.

Este novo modelo familiar traz consigo a idéia da intimidade, do privado, de ações compartilhadas apenas entre o casal. Os filhos ficarão do lado de fora do quarto dos pais. Cecília Ferretti, em sua tese de doutoramento ressalta a afirmação de Jacques Lacan encontrada na contracapa dos Écrits: "É preciso haver lido essa coletânea, e em toda a sua extensão, para perceber que nela prossegue um único debate, sempre o mesmo, e que, se fosse preciso datá-lo, se reconheceria por ser o debate das Luzes" (2000, p.3).

Por estar inserida no contexto das Luzes, a psicanálise pode sublinhar um deslocamento na economia libidinal do casal: o surgimento da criança como objeto de investimento faz com que a preocupação antes focada no próprio prazer se desloque para a cria humana.

A criança passa a ser cuidada, a ter seu corpo manuseado, sendo portanto, objeto sobre o qual uma ação deve ser exercida, estabelecendo certa antinomia nos papéis sociais: o adulto ocupa-se da criança enquanto a criança é ocupada pelo adulto. Esta ação não será asséptica e imprimirá no bebê o selo da existência do adulto que dele se ocupou; selo ofertado a partir das práticas educativas.

As estratégias discursivas para a promoção da educação dos bebês focava a função da mãe e propunha como aparato institucional para substituir sua ausência a creche. Adotada nos países ocidentais e apresentada como grande inovação nas Exposições Científicas do início do século XIX, a creche se difundiu trazendo em seu modelo assistencial o peso de sua origem: substituir as mães das crianças pobres. Faz-se importante salientar que a preocupação com a mortalidade infantil é concomitante ao nascimento de uma nova disciplina, a demografia. Contabilizar os habitantes de um país tornou-se uma prática a partir de meados do século XVIII, como meio para dimensionar a potencial produtivo do Estado assim como engrossar a força militar, já que as crianças ganham estatuto mercantil de riqueza do Estado.

A creche - que tem sua primeira referência no Brasil através do médico Carlos da Costa que em 1879 edita o jornal A Mãi de Família, sugerindo a manutenção do nome francês créche que significa manjedoura de animais domésticos, mais particularmente àquela em que o menino Jesus nasceu, o presépio -; dará pão e educação. O termo pedagógico será utilizado apenas para as pré-escolas e jardins da infância que em muito se diferem da creche, principalmente no que tange a sua clientela. Destinada aos filhos das famílias ricas, esta diferença acentua e garante o foço social que separa ambas. Embora hajam mudanças no discurso que versa sobre a creche, há um aspecto que persiste desde seu nascimento, está na sua origem: é um equipamento destinado às classes pobres e que deverá suprir a ausência materna, oferecendo o que, a partir das Luzes tornou-se naturalizado: a maternagem como manifestação do amor. Qual a possibilidade de um educador de creche ‘amar’ a cria alheia?

A passagem para a modernidade configurou-se como o momento de formalização da demanda social em termos de educação infantil. Desenvolveram-se, a partir de então, muitas formas de entender a infância. Para a psicanálise trata-se, sob determinado aspecto, em conceber a infância como um tempo de trabalho do sujeito para poder dar significação à pulsão. A partir de Freud, poderemos tomar o bebê passível de erogenização em toda a superfície corpórea, acrescida dos orifícios. Lugares onde o Outro cuidador deixará inscrita a sedução, deixará marcas que as futuras "relações de objeto" tornarão legíveis. Um polimorfo perverso, como afirma Freud, que encontrará sua ‘regulamentação’ ao se deparar com o Outro provedor que responderá ao grito, ao apelo do bebê e porá um limite no Gozo pleno. O infans então extrairá deste Outro uma identificação, se colocará no lugar de objeto passível de amor. O que este Outro quer de mim? Pergunta fundamental para inscrever o sujeito na lógica desejante e que denuncia a importância deste Outro para a passagem do substrato biológico para corpo imerso na linguagem.

Lacan em suas "Duas notas sobre a criança" (1998,p.5) afirmará que para manter a transmissão subjetiva no seio da família, a criança deverá ser cuidada, maternada por um Outro cujo desejo não seja anônimo. Caberá à ‘mãe’ investir de forma particularizada no infans, mesmo que "pela via de suas próprias faltas". Ou seja, para fazer a função materna não basta a maternagem – o bebê deverá ser ‘capturado’ por quem dele se ocupa.

Para ser 'capturado' o bebê deverá ser tomado no lugar de objeto do Outro cuidador. Reduzido a um organismo, o bebê é um ‘nada’ que dependerá do Outro cuidador para sobreviver, e este Outro cuidador poderá ou não ser a genitora, assim, não falaremos mais de mãe no sentido Iluminista deste termo, mas de Função Materna, também nomeada por Mãe Primordial ou Outro Primordial ou ainda Outro Materno. Cabe salientar que primordial refere-se ao primórdio ou aquilo que se organiza ou ordena primeiro; fonte, origem, princípio. Assim, a organização inicial deste organismo vem de fora, de um Outro primordial que lhe dará as balizas para a passagem de organismo à corpo marcado pela linguagem, ao assistir suas necessidades fundamentais.

A passagem de organismo à corpo está inscrita, em um primeiro tempo da teoria lacaniana, no eixo imaginário, ou seja, haveria uma reciprocidade entre o eu e o objeto investido libidinalmente. A representação gráfica que sugere esta posição especular é assim proposta:

a _____________ a’

A relação a a’ poderia ser tomado a partir do narcisismo, o que eqüivale dizer, em termos freudianos, que há um investimento libidinal no objeto. Em "Sobre o Narcisismo: Uma Introdução", Freud proporá duas concepções: A de narcisismo primário onde precocemente a criança investe toda a sua libido em si mesma, mas para que haja este investimento ".... estamos destinados a supor que uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido. Os instintos auto-eróticos, contudo, ali se encontram desde o início, sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao auto-erotismo - uma nova ação psíquica - a fim de provocar o narcisismo." (1914, p.93). Esta ação psíquica será interpretada por Lacan como o Estádio do Espelho.

O segundo termo proposto por Freud é o Narcisismo Secundário designado como ".... o narcisismo que surge através da indução de catexias objetais, como sendo secundário, superposto a um narcisismo primário que é obscurecido por diversas influências diferentes." (1914,p.91). Do ponto de vista econômico, deverá haver equilíbrio entre os investimentos no próprio eu e nos objetos.

Mais adiante no mesmo texto há a famosa frase "Sua Majestade o Bebê", que segundo nota do editor da edição Standard Brasileira, talvez seja uma referência a uma tela inglesa, com o mesmo título, onde há dois policiais londrinos interrompendo o tráfego para que uma babá, empurrando um carrinho de criança, pudesse atravessar a rua.

Ora, o bebê não tem nada de majestoso em si mesmo. Sua existência se torna inefável pelo lugar que o Outro lhe atribui. Lugar construído a partir do narcisismo onde o bebê, a ‘meia libra de carne’, será tomada como objeto de investimento libidinal no lugar de um espelho que refletirá a imagem desejada. A partir deste lugar, o Outro criará para o bebê uma ficção sobre sua existência. Assim como Narciso se apaixonou pela própria imagem refletida, o Outro cuidador ‘amará’ ao bebê como reflexo de si mesmo. Cabe salientar que este ‘amor’ não é sinônimo do amor Iluminista, de harmonia e dedicação à cria. Amor e ódio estão inscritos na lógica imaginária, assim são direito e avesso de uma mesma moeda.

Quando cotejamos o objeto em sua vertente imaginária, a relação com o narcisismo fica proeminente, mas ela por si só não basta. Se o sujeito ficasse aqui reduzido, estaria ‘perdido’ na imagem totalizada do Outro, afogando-se no que supostamente seria sua própria imagem. Para poder sair deste engodo, um terceiro elemento deverá ser abordado. Lacan afirmará: "Ao considerar a relação dual como real, uma prática não pode escapar às leis do imaginário, e o desfecho dessa relação de objeto é a fantasia de incorporação fálica." (1995,p.45). Há, portanto, um terceiro elemento circulando - com o estatuto de significante - na relação do bebê com o Outro primordial, o falo.

Ao tomar o bebê como atrativo de libido, supostamente haveria uma relação entre o bebê e o Outro primordial que o toma como objeto. A relação com o bebê será intermediada pelo falo, assim, há primeiro uma relação mãe-falo para poder compor o triângulo mãe-falo-bebê. Através deste elemento, haverá uma hiância no eixo a______a’, e o bebê será lançado à um outro estádio. Cabe salientar que neste momento, o falo está alicerçado no registro imaginário, assim, um elemento que não se pode ver como objeto real, mas uma invenção, uma ficção que se crê como promessa. Como não está em lugar alguma, poderemos grafá-lo como (-j ), como uma falha imaginária.

O falo em questão é o falo feminino (posição feminina e não necessariamente à uma mulher). Assim, o personagem principal desta trama envolvendo o Outro primordial, o bebê e o falo é a ‘MÃE’. Miller afirmará: "Se tivesse de dizer do que se trata o Seminário 4, diria que expõe as conseqüências clínicas da sexualidade feminina para cada sujeito (...) que o mais importante a trabalhar da psicanálise com crianças é a sexualidade feminina." (1997, p462).

A partir desta pequena elaboração teórica um aspecto merece atenção. A maternagem feita por educadoras na creche tem grande importância na marcação do mapa de todo ser imerso na linguagem., mas ela não é sinônimo de Função Materna. Para sê-lo, o bebê teria que ser capturado no fantasma da educadora, seu desejo não poderia ser anônimo e, embora possível, configura-se como exceção. Assim, a maternagem deveria sair do 'quartinho dos fundos' como atividade de pouca importância e ganhar, no discurso sobre a creche, o peso de sua importância.

 

Referências Bibliográficas

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1 Psicanalista, mestranda da Faculdade de Educação da USP