3Direitos da criança, infância e psicanáliseBreve percurso pelo pensamento freudiano acerca do tratamento psicanalítico das psicoses author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 85-86736-06-6

An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP 2002

 

O discurso dos pais na clínica psicanalítica com crianças: significantes transgeracionais em questão

 

Maria Lúcia Araújo 1

 

 

Este trabalho tem como idéia axial refletir sobre o discurso dos pais, na psicanálise com crianças, a partir da transmissão dos significantes transgeracionais. Para situar o tema em questão nos apoiaremos em Jacques Lacan (1969), que parte do princípio que o sujeito é dependente do discurso familiar: Diz ele: "(...) o sintoma da criança é capaz de responder ao que há de sintomático na estrutura familiar." Nos indica, também, a partir da teoria dos discursos que quando tomamos a palavra ocupamos um lugar. Assim, em função destes pressupostos, e de acordo com Oliveira (1999), salientamos que o trabalho analítico com crianças é um discurso coletivo que engloba a criança, os pais e o analista. Nessa medida, ela, esclarece: "Se temos pais e filhos enlaçados numa estrutura discursiva, a escuta dos pais fornecerá elementos para que se situe a posição do sujeito na estrutura discursiva familiar."

Seguindo essa mesma linha de discussão podemos acrescentar as palavras de Rêgo Barros (1995), que considera relevante o analista através de intervenções operar um deslocamento em que os pais possam: "retomar o lugar de suposição de saber requerido para que se dê essa transmissão transgeracional, que deve incluir no saber construído seus pontos de falha, por onde passa a castração simbólica."

Sabe-se que para o filhote do homem sobreviver é imprescindível que seja cuidado por um adulto, e, é somente através da palavra de outro sujeito dirigida a ele que poderá se humanizar. A única possibilidade desse infans, isto é, aquele que não fala, se reconhecer como sujeito é pelo investimento que o outro possa fazer sobre ele.

A partir da distinção entre imaginário, simbólico e real, Maud Mannoni (1987) relacionou o sintoma da criança em relação ao discurso, pois na relação da criança com o Outro simbólico (lugar da palavra), ou com o outro imaginário, não se trata de diálogo e sim de discurso.

Nas considerações dessa autora, qualquer prática com crianças que se ancora nas interpretações sustentadas nas significações e na atribuição de sentido estão no campo do imaginário do analista. Afirma, ainda, que o sentido só poderá ser dado a partir do significante que situa o paciente em relação ao seu desejo.

Nesse sentido, podemos dizer que a estrutura familiar e a estrutura singular, de cada sujeito, é apreendida através da produção de linguagem. De acordo com Joel Dor (1992), a língua é estruturada por um conjunto de elementos dados, ou seja, os signos, mas se tivéssemos apenas os signos lingüísticos não teríamos um sistema estrutural. Sendo assim, a língua é uma estrutura, porque além dos elementos supõe leis que governam esses elementos. Um significante só é assim definido se ele estiver em rede com outros significantes, a palavra não vale por si só. Assim, temos como significante o modo particular do sujeito se relacionar com a linguagem.

Convém lembrar que o termo significante vem da lingüística e nos remete a Ferdinand Sausssure (1980). Para Saussure o significante é a representação psíquica do som, tal como os percebidos pelo nosso sentido, e o significado é o conceito que a ele corresponde, ficando desta forma: o significado sobre o significante. Entretanto, Lacan ao se deparar com a linguagem do psicótico deduz que há na fala uma invasão do significante, onde o signo lingüístico é absolutamente alterado. Isto o leva a sinalizar que há primazia do significante sobre o significado.

Nessa medida, entendemos que criança só pode apropriar-se dos significantes fundamentais: filiação, nomeação e sexuação a partir de seu posicionamento na cadeia transgeracional , ou seja, a partir do lugar de onde é reconhecida pelos pais. A supressão de significantes fundamentais tem um efeito disruptivo para engajar o sujeito na história. Segundo Debieux Rosa (2000), quando não é transmitido aquilo que deu origem na genealogia, isto é a história, a criança vai repetir o gozo dos pais e não os ideais do eu, pois a função do pai é remeter a criança para um saber próprio. O resgate da linhagem é que vai poder fazer a criança se deparar com a diferença e não com a repetição.

Ao falarmos em significantes transgeracionais, referimo-nos à transmissão simbólica, ou seja, à linguagem que atravessa gerações, inserindo marcas no sujeito do inconsciente fazendo com que esse sujeito posicione-se no discurso a partir de um lugar no qual vai se relacionar com o outro. Estas marcas podem ser traumáticas ou não, ficam no imaginário da família anterior e vão se inscrevendo no psiquismo da próxima geração, são marcas que se repetem. Torna-se importante, ainda, acrescentar que os significantes transgeracionais são inscrições que estão no campo do real, sem significação. Muitas vezes trazendo mal - estar onde algo não pode ser verbalizado.

Como sabemos, a família humana é uma instituição de estrutura complexa. Desde o início existem interdições e leis. Como nos diz Jacques Lacan (1938): "...a família estabelece, entre as gerações, uma continuidade psíquica cuja causalidade é de ordem mental."

Sendo assim, há que se ressaltar a relação entre o sintoma da criança com o par familiar, dizendo respeito ao vínculo pai e mãe.

Nessa medida, através da escuta dos pais poderemos saber qual foi o lugar reservado à criança, quais os significantes que se repetem de geração em geração, quais os acontecimentos que não foram simbolizados nas gerações anteriores e fizeram marcas para este sujeito.

Fazer a mãe falar, fazer o pai falar causa efeitos sobre a linguagem da criança promovendo o deslocamento do significante. Dessa forma há a possibilidade de que os pais possam interrogar-se sobre o lugar do filho no seu desejo. É nesse momento que os pais têm a possibilidade de se implicarem no sintoma da criança. Só assim a criança poderá sair do lugar onde é manipulada como objeto do gozo desse Outro absoluto e tentar responder ao enigma do Outro como sujeito de sua história e não mais a partir de seus sintomas.

Assim sendo, ao escutá-los para além das entrevistas preliminares o analista estará delineando as posições discursivas de cada um dentro da estrutura familiar, o lugar que ocupam e de onde desejam, assim poderemos entender onde está situada a criança no emaranhado de intersubjetividades que se apresentam. Escutar os pais e sua história é da ordem de uma imposição necessária.

Vamos a seguir apresentar um fragmento clínico tendo como intenção à formalização da experiência, apontando a importância do discurso dos pais e a incidência dos significantes transgeracionais na determinação do sintoma da criança.

 

"A VERDADE adiADA"

Tentaremos desenvolver o fragmento do caso em três tempos. Segundo Lacan no inconsciente vigora três tempos lógicos, o momento de ver, de compreender e de concluir.

Nomearemos como primeiro tempo o momento de ver, onde foi possível localizar a queixa do sujeito.

Olga, muito angustiada, procurou a analista com o pedido de terapia para sua filha Ada de 12 anos. Estava preocupada porque a menina vinha apresentando "um comportamento estranho", que consistia em mentir e esconder objetos. "Principalmente as provas escolares." Outro agravante importante é que Ada sustentava a mentira até não poder mais, e quando a mãe descobria, ela começava a chorar.

Na primeira entrevista, Olga disse que o nascimento de Ada havia sido uma alegria em sua vida, pois já estava com 40 anos e ainda não tinha filhos. A entrevista transcorreu na via de tranqüilidade aparentemente duvidosa, posto que ela se inquietava toda vez que a analista tentava esclarecer algum fato relevante a respeito do nascimento da filha.

Terminada a entrevista, a analista cortou a sessão e Olga ficou agitada, começou a tremer e a dizer que tinha muita culpa, muita mágoa e sabia que um dia a menina iria lhe trazer problemas. No entanto, esperava-os na adolescência e não tão cedo como vinha acontecendo.

A analista pediu a Olga que retornasse no dia seguinte e falasse mais sobre o ocorrido.

Na sessão seguinte, ela chegou muito constrangida e preocupada dizendo que havia mentido a respeito do nascimento da menina. Contou a verdade, mas pediu que o assunto morresse ali.

Assim começou o segundo momento, no qual o sujeito compreendeu e deu-se a revelação: Ada era adotada, mas não podia saber nada sobre isso. A mãe pediu sigilo absoluto sobre essa verdade, e que a analista aceitasse a menina em terapia para que ela voltasse a ser o que era, ou seja, uma menina tranqüila e feliz. Pois tinha certeza de que a adoção não era o " verdadeiro" problema de sua filha.

A analista escutou a mãe dizer (denegando) que não era a adoção o problema de sua filha e marcou uma série de entrevistas com ela.

Recorrendo ao texto freudiano "A negativa", sabemos que para o inconsciente não existe negativa. Diz Freud (1925): "A negativa constitui um modo de tomar conhecimento do que está reprimido; com efeito, já é uma suspensão da repressão, embora, não, naturalmente, uma aceitação do que está reprimido." Sendo assim, fica claro que a adoção era um dos principais problemas de Ada.

Percebendo que esta questão se colocava como um entrave, um impedimento ao tratamento da menina, a analista, com a finalidade de manejar a transferência e implicar a mãe, marcou uma série de entrevistas com ela e pediu novamente a presença do pai. Infelizmente, o pai negou-se a comparecer às entrevistas, dizendo a Olga que ela estava querendo mexer em um vespeiro e que sempre se preocupou com esta adoção porque ele não sabia nada sobre a origem (genética) da criança.

No entanto, estas palavras, ainda, não foram suficientes para que Olga desistisse. Ela continuou corajosamente enfrentando as entrevistas preliminares e foi relatando sua história, que se entrelaçava com a história de sua própria mãe e filha, num verdadeiro complexo intersubjetivo.

Dizia ela: " Quando eu era pequena e tinha a idade de Ada, minha mãe adotou um menino e também não contou a ele sobre sua história verdadeira, até que um dia, quando o menino estava com 7 anos, e precisou ingressar no colégio, ela foi barrada por um padre que exigiu para que contasse ao menino a verdade sobre sua origem senão ele não ficaria no colégio. Como minha mãe considerava a palavra do padre, obedeceu e contou a verdade. Meu irmão adotivo, que tinha alguns problemas cognitivos, passou a se interessar pelo saber e se tornou um profissional renomado."

Aqui podemos notar que "o padre" entrou na história dessa mulher articulando o desejo à lei, fazendo operar a função paterna. Mas, a avó de Ada não pára por aí. Volta a repetir o não dito, só que desta vez com Olga, que não podia ter filhos.

Ao constatar a dificuldade da filha, a mãe entrou em cena para "ajudar" e "arranjou" uma criança para Olga adotar, com a condição de que ela não lhe revelasse a verdade sobre sua origem e lançou o significante: filhos adotados trazem problemas. Estas palavras determinantes fizeram com que a vida de Ada seguisse pela via dos mistérios e mentiras.

A analista fazia intervenções no sentido de questionar e apontar com muito cuidado que a verdade dita para seu irmão, sobre a sua origem, tivera um efeito benéfico. E com a intenção de implicá-la perguntou o que ela pensava sobre isto.

Neste momento, que chamaremos de momento de concluir, deu-se o recuo do sujeito.

Olga assustou-se, atrapalhou-se e finalmente fez a "questão": por que é que sua mãe pensava que era melhor a mentira? Logo se recompôs e disse: - "não posso trair minha mãe", mas como posso querer que minha filha diga a verdade se eu mesma menti para ela sobre sua história? Neste momento ela se deu conta de que foi capturada pelo fantasma materno e que responde deste lugar, concluindo que ela é quem deve ir para o divã, pois só assim poderá reverter a sua história, a da filha e entender o que queria sua mãe com essas mentiras.

Todavia, Olga não encontrou em seu parceiro, o pai da menina, a mesma disposição para enfrentar a verdade e dar à Ada condições de poder aceder ao saber. Se isto ocorresse, ela não precisaria por em ato os desígnios da avó, ou seja, esconder as provas e apagar as marcas de sua história. Poderia se inscrever como sujeito e ter um lugar, verdadeiro, no desejo de seus pais.

Olga abandonou o jogo no início da largada, despedindo da analista dizendo que voltaria antes que a conversa completasse um ano. Desistiu de fazer o enfrentamento de seu gozo e ter acesso à sua verdade para que também pudesse transmiti-la à filha. Não executou o deslocamento subjetivo que concerne à sua posição de mulher e mãe.

Concluímos com Dominique e Gerard Miller (1991) "Existem atos dos quais somos apenas testemunhas cujo desenrolar só conhecemos pelo relato que dele nos é feito."

A analista PACIENTEmente, espera...

 

Referências Bibliográficas

DOR, J. (1992). Introdução à leitura de Lacan - O inconsciente estruturado como Linguagem. POA: Artes Médicas.

FREUD,S. (1925). A negativa. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol.XIX, p.295. Rio de Janeiro: Imago.(1972).

LACAN, J. (1969). Duas notas sobre a criança. Ornicar? Revue du champ freudien, n-37, avril-jun. Opção Lacaniana Revista Brasileira de Psicanálise. São Paulo, abril, (1998).

LACAN, J. (1938). Os complexos familiares, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

MANNONI, M. (1987). A criança, sua "doença" e os outros. R. Janeiro: Ed. Guanabara.

MILLER, Dominique e Gerard (1992). Psicanálise às 18:15, Rio de Janeiro: JorgeZahar Editor.

OLIVEIRA, L.G.M. (1998) A escuta psicanalítica dos pais no tratamento institucional da criança psicótica, Dissertação (Mestrado) - Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo.

RÊGO BARROS, M.R.C. (1995). A resistência na psicanálise com criança. Forda, n-3. R. Janeiro: Revinter.

ROSA, M. D. (2000).Histórias que não se contam: O não dito e a psicanálise com crianças e adolescentes. Taubaté: Cabral Editor Universitária.

SAUSSURE, F. (1980). Cours de linguística générale, citado na edição crítica, Paris, Payot. Apud: DOR, J. (1992) Introdução à leitura de Lacan. POA: Artes Médicas.

 

 

1 Instituto de Psicologia da USP