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On-line ISBN 85-86736-06-6

An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP 2002

 

No início era a Síndrome ...

 

Márcia Cristina Maesso 1
Iara Stabler 2

 

 

Breve histórico do caso

Jhullya nasceu de parto normal após o nono mês de gestação. A mãe relata que aos seis meses apresentava um comportamento que consistia em sacudir o corpo desordenadamente. Foi levada ao neurologista que diagnosticou Síndrome de West e autismo, com prognóstico de que não iria andar, nem falar. A mãe também atribui ao gen do pai a responsabilidade, já que ele não podia ter filhos. Jhullya andou por volta dos três anos e começou a falar aos cinco, idade com a qual ingressou em uma pré-escola pública convencional, mas não teve condições de continuar, por apresentar um comportamento hiperativo.

Quatro meses após o nascimento de Jhullya, a mãe descobriu que o marido a traía, passaram a viver um período de brigas justificadas pelo ciúme e considerando que estas não faziam bem à menina , separaram-se amigavelmente e mantêm uma boa relação de amizade. A mãe encontrou outro homem com quem teve uma filha cinco anos e meio mais nova que Jhullya. Não chegaram a viver juntos e romperam a relação logo que Mariane, a segunda filha nasceu. Passou a viver somente com as duas filhas, relatando não querer mais saber de homem em sua vida (sic) e que agora viveria para cuidar das crianças. Queixa-se de que Jhullya não tem juízo (sic), que às vezes fala coisas que ela não compreende e manifesta muito ciúme da irmã, tanto que chama a si mesma de Nenezinha, embora a mãe tenha lhe explicado que já é uma mocinha. Por outro lado a mãe espera que a irmã mais nova possa ser responsável por Jhullya quando crescer, já que ela é deficiente (sic). A mãe teme o crescimento de Jhullya, supondo que não saberá cuidar-se sozinha, com medo de que ela venha a ser escandalosa quando for moça e que não saiba defender-se dos homens devido a sua deficiência.

A menina era medicada com Tegretol e Urbanil, segundo a mãe o médico os havia prescrito para que os sintomas da síndrome não retornassem, pois até os quinze anos poderiam voltar, caso isso não acontecesse, após os quinze anos ela não teria mais nada.

 

Desenvolvimento

Encontro Jhullya pela primeira vez aos seis anos e meio. Pergunto-lhe se sabe por que veio, ela me responde com um sorriso, nada de palavras.

Jhullya pega uns copos coloridos que se encaixam um dentro do outro e limita-se a encaixá-los e desencaixá-los mecanicamente repetidas vezes. De vez em quando fala: Agora coloca tudo de novo. Pergunto-lhe quem fala isso. Ela diz que é o Cadeirudo e aponta dizendo que ele está ali em sua frente. A primeira sessão resume-se neste movimento e isso permanece durante algumas sessões.

Numa determinada sessão mostro-lhe que no fundo dos copos havia desenhos de animais e que poderíamos usá-los para fazer uma história, ela toma para si a idéia, e começa a brincar falando através dos animais coisas da vida cotidiana.

Na sessão seguinte ela pega os copos-bichos, um telefone e começa a fazer com que os animais falem ao telefone um de cada vez, sua brincadeira restringe-se à repetição do chamado de um animal ao outro.

Jhullya mantém os mesmos jogos por várias sessões, caracterizados por movimentos mecanicamente repetidos. Durante as sessões ela tranca as janelas, fecha as cortinas e manda o Cadeirudo para fora.

É preciso escutar o que revela essa repetição produzida por Jhullya. Segundo Lacan, em Duas Notas sobre a criança, encontramos que o sintoma da criança ou está revelando a verdade do casal, ou está relacionado ao fantasma da mãe: "O sintoma pode representar a verdade do casal familiar. Este é o caso mais complexo, mas também o mais aberto às nossas intervenções. A articulação se reduz muito quando o sintoma que chega a dominar tem a ver com a subjetividade da mãe. Aqui é diretamente como correlativo de um fantasma que a criança está implicada." (1986, p. 13 – 14).

As entrevistas com os pais irão contextualizar e oferecer sentido aos elementos produzidos nas sessões com a criança. "(...) independentemente de quem parta a demanda é possível a análise com a criança, na medida em que ela pode demandar, a seu modo, a partir das características de seu discurso, ou seja, atravessado pelo discurso do Outro. E é justamente por essa característica de seu discurso que a análise do discurso dos pais faz parte do processo analítico com crianças" (ROSA, 2000, p. 74). Deste modo é que as entrevistas com Rosane, a mãe de Jhullya vão trazendo à luz na forma de palavras, aquilo que ela manifesta através dos jogos.

Nas entrevistas é retomado o período que antecede a descoberta da síndrome. Rosane não fala sobre o período neo-natal, mas conta que quando estava grávida ocorreu-lhe um episódio que acredita ter contribuído para o problema de Jhullya. Um homem tido como louco que morava perto de sua casa, correu atrás dela segurando uma enxada, na sua tentativa de fuga bateu a barriga, mas quando o homem se aproximou nada fez. Eu digo: Tal qual o Cadeirudo? A mãe diz que não havia pensado nisso, embora fizesse sentido, já que Jhullya depois que assistiu a novela, começou a dizer que o Cadeirudo iria pegá-la. Neste momento, Jhullya que estava supostamente entretida com a brincadeira, começa a observar a conversa. O personagem Cadeirudo na novela representava uma ameaça de violência sexual, significante que escapa à nomeação pela mãe e que aparece nas construções da filha. O Cadeirudo desaparece das sessões após o relato do acidente na gestação, marcando uma primeira separação de Jhullya do significante materno, pois o medo do homem louco é da mãe e não da filha.

Rosane relata que havia escolhido outro nome durante a gestação, Tânia, mas quando chegou ao hospital para realizar o parto, o nome Jhullya surgiu quando ela folheava uma revista, disse que achou o nome bonito, mas que não sabia porque escolheu um nome tão difícil, já que ninguém consegue escrever, nem mesmo ela. Às vezes Jhullya referia-se como Tânia, e a sua irmã Mariane, como Marcos, ou seja, o nome que teria e que sua prima recebeu, e o nome de seu primo, irmão de Tânia, que atribui à sua irmã. Supomos que além de apontar o ideal de filha, na sobrinha da mãe através de sua tentativa de nomeação, Jhullya aponta a insatisfação que representa: Para a mãe, Jhullya é um nome que não se escreve, ninguém sabe escrevê-lo, nem mesmo a própria mãe.

Há uma questão central que permeia este caso, que é a incidência do Real, ou seja a incidência de algo que é inapreensível na cadeia significante. "O real é isso em que o inconsciente se sustenta, portanto, a coisa inapreensível, este cúmulo de sentido que constitui enigma, o único quinhão de saber que se tem. Enquanto dimensão de pura existência (Há), é obstáculo do qual nada pode ser deduzido. A incessante impossibilidade de se dizer disso qualquer coisa faz com que esse existente sustente a repetição do indefinível." (Vorcaro,1997, p.68)

Houve um acidente com a mãe de Jhullya aos seis meses de gestação, o qual a mãe considera uma das causas do problema da filha. Supomos que neste período, desde o episódio do "homem louco", até os seis meses de vida de Jhullya, quando é notada através de suas manifestações, a mãe estivera subjetivamente indisponível para imantar a criança, oferecendo-lhe o brilho fálico que comumente as mães depositam em seus bebês.

Como observa Ricardo Rodulfo (1990), antes mesmo do nascimento, os pais costumam construir uma rede de significantes em torno do bebê, escolhendo nomes e idealizando como e o que serão e isso se estende após o nascimento, como a oferta de um lugar a ser ocupado pela criança. Entretanto para Jhullya, o nome escolhido durante a gravidez - Tânia - não lhe foi dado, outro nome surgiu quando a mãe estava no hospital. Talvez a mãe já não soubesse como lhe chamar, por não saber como nasceria o bebê a partir do acidente. Usando uma metáfora bem simples, é como se a roupinha preparada durante a gestação para a chegada do bebê, tivesse que ser posta de lado, pois não serviria ao corpinho do bebê que nasceu com defeito. O acidente que posteriomente foi nomeado pela mãe como um dos agentes responsáveis pela síndrome de West, provavelmente deixou em suspenso toda a rede de significantes tecida durante a gestação, já que esperava-se algum efeito proveniente do acidente, entretanto não se sabia qual.

Por outro lado, o diagnóstico médico deu à Jhullya um significante, o nome da síndrome, que seria como uma segunda roupa, e que traz a linhagem paterna por estar relacionada à esterilidade do pai. Jhullya identificada a este lugar, o da criança deficiente como é chamada pela mãe, pôde ultrapassar de modo singular o mandato médico. Assim como seu pai que desafiando a medicina deu-lhe a vida, ela pôde andar e falar, contradizendo o prognóstico da ciência. De algum modo, o significante da síndrome fez suplência àquele que ficara de fora da cadeia e introduziu singularmente uma referência ao nome do pai a partir da insuficiência, o que possivelmente contribuiu para a saída de Jhullya da condição de autista.

Mas será que é apenas o significante da síndrome que se cristaliza e repete nas manifestações de Jhullya? O que aparece na forma de repetição?

Segundo Rosa: "O comportamento como repetição presentifica o que não pode ser rememorado. Presentifica a repetição, já definida aqui como agir algo não elaborado da história dos pais. Neste caso, a repetição opera-se, não pelo ideal do ego, mas pela via do gozo e da identificação imaginária. Retoma-se a noção da constituição da subjetividade, apoiada na relação identificação-alteridade, para compreender como a história dos pais é apropriada pelo filho." (2000, p. 142).

A construção do desejo de Jhullya está referida ao pai, através de seu mandato de superação, o pai embora não pudesse teve uma filha, é desse pai que ela tem notícia pelo discurso da mãe. Nas sessões Jhullya passa a produzir tentativas de uma escrita de sua história através de desenhos. E seu nome, aquele que ninguém escreve, nem mesmo sua mãe, ela passa a ler nos grafismos que produz, avançando no sentido de saber sobre seu desejo. É a partir deste momento da tentativa de separar-se do significante da síndrome, tomado pela mãe para recobrir e justificar seu medo do crescimento da filha, que a mãe mostra-se resistente à possibilidade do ingresso de Jhullya à escola.

Caberia portanto retomar o que Lacan considerou a respeito da criança em relação à verdade materna: "Ao substituir-se a esse objeto, ela satura o modo de falta no qual se especifica o desejo (da mãe), qualquer que seja sua estrutura particular: neurótica, perversa ou psicótica. Ela aliena em si todo acesso possível da mãe à sua própria verdade, dando-lhe corpo, existência e mesmo exigência de ser protegida". (1986, p. 13-14).

Na continuidade do processo analítico Jhullya é encaminhada para a escola e a mãe que até então não acreditava na possibilidade da filha, passa a investir no desejo desta e a superar sua resistência e falar diante da analista. Com a questão escolar em pauta, o pai se apresenta e se incumbe de cuidar pessoalmente para que essa porta não se feche. Essas mudanças produzem angústia na mãe, ela tem medo, este é o seu fantasma, permitir que sua filha caminhe além de seu corpo, que ela cresça. Assim a mãe começa a falar sobre seu medo do crescimento da filha, mas agora articulado à sua própria história.

Jhullya que até então era referida a partir da síndrome, passa a não mais necessitar do uso da medicação e recebe alta médica. Para a mãe esta nova condição de Jhullya, sem o significante da síndrome, causa-lhe um pavor que deve ser nomeado. A deficiência velava uma construção imaginária da mãe que precisa ser desconstruída. Não é sem dificuldades, mas a mãe passa a se implicar com sua própria história, que revela o que Jhullya repetia nos jogos e estava encoberto pelo significante da síndrome. Antes dos quinze anos, a mãe estivera desamparada e não podia defender-se dos abusos sexuais provocados por seu cunhado. O fantasma do crescimento da filha que fora encoberto pela síndrome começa a ser desvelado. Para a mãe neste momento resta falar para nomear sua angústia. Quanto a Jhullya, procura construir sua própria história. Na escola passa a assimilar conceitos e já está se alfabetizando. Na análise se utiliza de jogos que pedem regras e procura seguí-las e jogos de mímica, pois brincando de imitar, coloca em oposição a fantasia e a realidade elaborando sua saída da captura imaginária pelo Outro.

 

Bibliografia

LACAN, J. (1986). Duas notas sobre a criança, Ornicar? Revista do Campo Freudiano, n. 37, abril-junho, p. 13 – 14.

RODULFO, R.(1990). O brincar e o significante: um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce, Porto Alegre: Artes Médicas.

ROSA, M. D.(2000). Histórias que não se contam: O não-dito e a psicanálise com crianças e adolescentes. Taubaté, São Paulo: Cabral Editora Universitária.

VORCARO, A. M. R. (1997). A criança na clínica psicanalítica, Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

 

 

1LEPPPI Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas da Psicose na Infância - USP
2 CEPAC, Associação Criança Especial de Pais Companheiros - Jacareí/SP