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ISBN 85-86736-06-6 versión on-line

An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP 2002

 

Clínica psicopedagógica ou psicologização do cotidiano escolar? Delimitando dois campos distintos.

 

Kátia Cristina Silva Forli Bautheney 1

 

 

Qual a origem do mal-estar que acompanha a prática psicopedagógica?

Primeiramente, não podemos falar em prática psicopedagógica como uma atividade singular. Sob o rótulo de psicopedagogia encontramos diferentes ações, embasadas em variadas construções teóricas, provenientes de diferentes campos epistemológicos. Como afirma Bossa (2000), a psicopedagogia é, em sua natureza gerada por campos interdisciplinares, o que na prática acaba por se manifestar numa falta de identidade do papel do psicopedagogo, diversidade e superficialidade das questões teóricas da área, e atendimentos "clínicos" irresponsáveis com conseqüências danosas para os pacientes em questão.

Por trás de uma denominação interdisciplinar encontramos por vezes uma prática disciplinar específica camuflada pelo nome de ´atendimento psicopedagógico`. Assim, mesmo sem a formação, muitos profissionais arriscam-se no campo da psicometria, psicomotricidade, psicanálise, lingüística, etc, quando não se faz uma miscelânea de técnicas de diferentes áreas...

Pode ocorrer também o encaminhamento de pacientes para outros profissionais, como neurologistas, fonoaudiólogos e psicólogos, engrossando-se o círculo de cuidados aos quais este sujeito estará exposto, e indicando também aqui que a causa da insegurança do psicopedagogo reside no fato do mesmo não encontrar um corpo teórico organizado que oriente sua prática.

Não podemos deixar de apontar que o surgimento da psicopedagogia pode ser situado historicamente tanto no campo da psicologia como no da pedagogia como uma peça na engrenagem social com uma função de tamponamento no que diz respeito ao processo do insucesso escolar.

Desta forma, somos instigados a analisar até que ponto a falta de um campo epistemológico da psicopedagogia não está relacionada a esta estrutura de mascaramento de interesses políticos no âmbito educacional, e ao próprio paradoxo oriundo desta prática, que procura extirpar o fracasso escolar, mas que pressupõe sua existência para se constituir.

Este será um meio para entender o aumento da demanda de atendimentos especializados por parte da escola, que elegeu a psicologia como O fundamento da educação, e o discurso psicopedagógico como o detentor das verdades sobre as falhas no sistema. Pretendemos investigar os motivos (escusos) para a obturação destas falhas, e o modo como a mesma se processa.

Michel Foucault (1994), em sua obra Doença Mental e Psicologia sustenta a tese de que o reconhecimento da loucura como doença mental deu-se em decorrência do processo de valor da mesma na sociedade, alterado ao longo do tempo por questões sociais e legitimado, a partir do século XVIII pela medicina e posteriormente pela psicologia.

Diferentemente do período medieval, onde a convivência com a loucura era tolerada, no século XVII os loucos vão ser confinados, juntamente com toda sorte de "ociosos", como os idosos, os desempregados, as prostitutas e os doentes.

Entretanto, o advento da Sociedade Industrial no século XVIII, restringe o confinamento apenas aos que não podem trabalhar, no caso os loucos, introduzindo aí a questão do tratamento de caráter médico para os mesmos, que terá reforço, a partir do século XIX pelos saberes do âmbito da psicologia.

Foucault (1970) citado por Motta (1999) aponta que o domínio das atividades humanas se manifesta em quatro eixos: No trabalho (produção econômica), na sexualidade e na família (reprodução da sociedade), na linguagem e nas atividades lúdicas (jogos e festas). Destaca também que o critério mais empregado atualmente para considerar a loucura seria a inaptidão do sujeito para o trabalho. Questionamo-nos se não seria também a incapacidade de produção (conforme os referenciais escolares) o fator responsável pela rotulação do insucesso escolar.

Através do estudo da produção de Foucault sobre a loucura, percebemos a possibilidade do estabelecimento de um paralelo entre a mesma e a questão do fracasso escolar, acompanhando a evolução do conceito na ótica da medicina, da psicologia e da pedagogia, o que daria a base de análise do surgimento da psicopedagogia como um resultado deste processo.

Analisando artigos publicados na revista Psicopedagogia no período de 1991(nº21) até 1999(nº50), acerca do objeto de estudo da psicopedagogia, e conseqüentemente do papel do psicopedagogo, percebemos que o termo psicopedagogia é empregado indistintamente para indicar duas referências; primeiramente define-se psicopedagogia como um trabalho que procura escutar o que há por trás do sintoma apresentado por um aluno ou instituição, trabalho este que Alícia Fernandéz (1993) indica três vertentes: devolver ao sujeito a autoria do pensamento, investimento para que surja a manifestação do desejo de saber, e possibilitar que ocorra a percepção da função positiva da ignorância.

De forma diferente, a palavra psicopedagogia é utilizada numa associação a uma certa "ortopedia pedagógica", que viria tapar os buracos deixados pelo processo educacional, servir como instrumento de legitimação do fracasso escolar, desviando assim a responsabilidade do mesmo para o sujeito, isentando desta forma o sistema educacional.

Tal concepção faz eco a uma crença na qual o qual o discurso pedagógico se apóia, crença esta que elegeu a Psicologia como O fundamento da educação, sendo que este campo foi tomado por idéias de cunho psicológico, o que Lajonquière (1999) chama de ´processos de psicologização do cotidiano escolar`, que descreveriam a infiltração de idéias do âmbito psicológico determinando a direção da prática pedagógica, o que a afastaria de seu objetivo, ou seja, a transmissão do conhecimento. Como exemplos deste processo podemos citar a crença na existência de capacidades maturacionais que precisam ser estimuladas, levando o aluno (expressão muito usada em planejamentos de professores) ao desenvolvimento. Ou mesmo no que diz respeito a uma teoria dos afetos, cuja máxima está presentificada no esforço de não "traumatizar o aluno", que é apresentado, dentre outras formas no trabalho com atividades essencialmente prazerosas. Além disso, não podemos deixar de citar os diversos rótulos onde alunos são encaixados, como "hiperativo", "agressivo", "indisciplinado", etc...

O processo de psicologização do cotidiano escolar no Brasil não é um fenômeno recente. Jurandir Freire Costa (1999) em seu livro Ordem Médica e Norma Familiar aponta que a partir do século XVIII a administração portuguesa sentiu dificuldades em conter a violência e displicência da massa popular para com as autoridades, objetivo este que nem a polícia conseguiu alcançar, sendo preciso então a busca de novas estratégias que permitissem o controle. Uma alternativa encontrada foi a introdução do discurso e das idéias da medicina social, com sua política higiênica, que conseguiu atingir o objetivo de contenção das massas através de um registro simbólico, com a introdução de normas na forma de viver do povo.

A busca pela normatização do modo de vida da população foi sendo inserida paulatinamente através do controle do corpo, das famílias e dos costumes. A política higienista, que mais tarde encontrou na psicologia uma aliada na divulgação de suas idéias e práticas, percebeu que a consolidação de seus paradigmas só poderia ocorrer através de uma inculcação sistemática de idéias, ou seja, pela educação, já que a mesma apresentava uma fundamentação teórica organizada: a pedagogia. Esta por sua vez encontrou na psicologia um status científico que por muito procurava, e tinha uma dupla função: coerção e controle, cabendo a ela indicar possíveis desvios no "fluxo normal do desenvolvimento".

Em seu livro Infância e ilusão (psico) pedagógica, Leandro de Lajonquière (1999) pontua que a inundação das idéias de cunho psicológico, mais notadamente da vertente da psicologia do desenvolvimento está permeando a prática docente e os fundamentos pedagógicos (vide PCNs). A imersão do cotidiano escolar num contexto de psicologização permite uma confusão por parte dos sujeitos envolvidos no processo pedagógico, no que diz respeito ao objeto da educação. Os testes, encaminhamentos, planos de aula com o objetivo de desenvolver esta ou aquela capacidade maturacional indicariam o esvaziamento do ato educativo, que é transmissão do legado da cultural acumulado pela humanidade ao longo dos anos.

O outro uso do conceito de psicopedagogia, relacionado a uma prática na qual o sujeito possa extrair benefícios, segue um caminho diferente daquele apresentado num contexto de psicologização do cotidiano escolar, e acreditamos aqui em um diálogo com a psicanálise. Encontramos nos referenciais psicanalíticos uma fundamentação que permitiria a diferenciação entre psicopedagogia e técnica de ajustamento, uma vez que a psicanálise se constitui como uma prática que rejeita qualquer tentativa de aprisionamento do sujeito em uma determinada posição, como por exemplo, a rotulação do mesmo a partir de um diagnóstico fechado.

Em seu texto "Sobre a Psicanálise´selvagem`" (1910), Freud condena uma prática que sob a fachada de psicanálise se identifique com um tipo de aconselhamento, uma vez que não é possível a aquisição de um saber sobre o outro. Pondera que ao aconselhar, o paciente será levado a acreditar que é o analista o possuidor de uma verdade inquestionável, o que resultará, por vezes, na cristalização do mesmo em uma posição. Tal fato deve ser levado em conta a partir da constatação da existência do inconsciente, com uma lógica de funcionamento livre de doutrinações, e passível de resistência interna.Sendo assim, o que sabemos sobre o outro é apenas uma suposição, e não uma verdade.(1)

A contribuição a ser dada pela psicanálise à psicopedagogia poderia ser compreendida desde o campo da ética, uma vez que prega o respeito à palavra do sujeito, à sua singularidade e à verdade de seu discurso, havendo um deslocamento de um lugar de Saber total e completude, e uma orientação do mesmo para sua verdade, colocando-o no campo dos faltosos, de sujeitos do desejo, daqueles que estão buscando respostas, dentre outras formas pelo processo de escolarização.

Não podemos negar que independente da forma como o sistema educacional escuta e encaminha as dificuldades apresentadas pelos seus alunos, há sujeitos que apresentam dificuldades que estão além das questões escolares. Nos interrogamos também como seria o exercício de uma prática que rejeitasse sua fundamentação no campo do saber essencialmente psicológico. É possível o trabalho com alunos em dificuldades sem que esta prática seja associada ao processo de psicologização do cotidiano escolar?

A definição de sujeito na psicanálise permite que a situemos na contramão das propostas de ortopedia pedagógica, e o estabelecimento de uma clínica do aprender dentro de referenciais psicanalíticos cumpre uma dupla função: escuta singular dos sintomas apresentados e liberação da escola da tarefa de agir como uma clínica, desviando-se do ato educativo propriamente dito.

A diferenciação de uma prática psicopedagógica que respeita a singularidade do sujeito do processo de psicologização do cotidiano escolar, torna-se relevante ao constatarmos a situação do sistema educativo, que mantém altos índices de repetência e evasão, e que continua, através de seus sistemas de exclusão (ao que eu incluímos os encaminhamentos a diversos profissionais-principalmente aqueles de ordem psi), permitindo a cristalização das estruturas sociais. Basta vermos quão inócuas são as diversas tentativas de reverter a situação, como a implantação das classes de aceleração, orientação, projetos de inclusão que acabam de certa forma por deslegitimar o poder do professor e alimentar o caos no sistema educacional, uma vez que há uma perda do foco da educação. Novamente é uma tentativa de 'curar' o sintoma sem compreender suas causas.

 

Nota:
1) No texto Freud critica um jovem médico que antecipa o prognóstico acerca dos sintomas de angústia de uma mulher, indicando que seus problemas estariam relacionados a uma falta de satisfação sexual, em decorrência da ausência do marido, e aponta a ela três soluções: reatar o casamento, arrumar um amante ou masturbar-se; soluções estas que acabam por acentuar os sintomas de angústia da mesma.

 

Referências bibliográficas:

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1 Especialista em Psicopedagogia pelo Sedes Sapientiae; mestranda da Faculdade de Educação da USP.