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On-line ISBN 85-86736-06-6

An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP 2002

 

Magistério e sofrimento psíquico: contribuição para uma leitura psicanalítica da escola

 

Cláudia Murta 1

 

 

Há alguns anos trabalhando em projetos de formação continuada de professores, meu interesse e disposição em escutar as pessoas tem-me possibilitado acolher e registrar as mais diversas queixas e relatos de sofrimento de professores.

Quando encontram uma oportunidade, e sentem que podem confiar na pessoa que os escuta, eles falam de si. Costumam dizer, de saída, que são felizes com a escolha de ser professor. Misturam suas histórias pessoais com acontecimentos da vida profissional, histórias de seus filhos com as de seus alunos. Aos poucos, não raro, choram, contam de suas raivas, decepções e ressentimentos. Revelam uma outra face da sua vida de professores: falam em angústia, escuridão, doença, dor. Descrevem o magistério como um lugar de sofrimento.

Que mal-estar é esse que tem se apresentado insistentemente no âmbito da escola?

Na última década, o tema do sofrimento ou mal-estar docente tem sido objeto destacado de análise no campo da educação.

Codo (1999), estudando a saúde mental e o trabalho do professor, referiu-se a uma síndrome de desistência do educador, que pode levar à falência da educação: o 'burnout'.

O burnout é uma espécie de resposta ao stress laboral crônico. Ele é expressão do sofrimento psíquico e da deterioração afetiva da pessoa, que prejudica sua relação com o trabalho, com as instituições ou organizações, com as outras pessoas.

Segundo Codo e Vasques-Menezes (1999), o burnout "é uma síndrome através da qual o trabalhador perde o sentido da sua relação com o trabalho, de forma que as coisas já não o importam mais e qualquer esforço lhe parece ser inútil. Esta síndrome afeta, principalmente, profissionais da área de serviços quando em contato direto com seus usuários. Como clientela de risco são apontados os profissionais da educação e saúde, policiais e agentes penitenciários, entre outros. Schaufeli et al. chegam a afirmar que este é o principal problema dos profissionais de educação" (p. 238).

Diniz (1998), em seu estudo sobre o sofrimento de mulheres-professoras das séries iniciais do ensino fundamental, refere-se a um insuportável vivido por elas na educação. A subjetividade da mulher nessa profissão foi estudada por essa autora a partir das queixas de professoras, queixas que revelam sua vivência de um profundo mal-estar.

Na escola, as professoras se queixam das condições de trabalho, dos alunos, do salário. Mas nos consultórios, para os médicos que lhes concedem licenças para tratamento de saúde, as queixas e sintomas apresentados mais frequentemente são outros: "diarréia, pressão alta, vômito, dores na nuca, na cabeça, na coluna, nas costas, dormência nas mãos, irritabilidade, choro fácil, depressão, ansiedade, insônia" (p. 203).

As professoras queixam-se de que sofrem e adoecem. Quando adoecem, afastam-se da sala de aula e, às vezes, definitivamente, da escola.

Diniz investigou o adoecimento mental de professoras em desvio de função2. Em sua pesquisa ela procurou, nos laudos que concederam licença médica às professoras, as explicações clínicas que justificaram o afastamento das mesmas de sala de aula: os transtornos mentais aparecem como o segundo motivo mais frequente para a concessão de licenças médicas aos educadores da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte, revela a sua pesquisa.

Mas a escola é essencialmente, do ponto de vista sociológico, o lugar do ordenamento, da estabilidade, do controle, da transparência, da não-contradição. Por isto, nela, o mal-estar, o conflito, a desordem, o desequilíbrio são recusados. A escola resiste em reconhecê-los e acolhê-los, pois teme ser desestabilizada por eles.

Mas essa negação de qualquer mal-estar, pela escola, tem consequências: "a instituição, quando sutura o mal-estar, transforma-se [ela mesma] em fonte de mal-estar" (Diniz, 1998, p.205).

Fontoura (1992), ao procurar compreender o ser professor de História do ensino secundário em Portugal, interrogando pelos motivos que levaram alguns desses profissionais a essa profissão e a nela permanecerem, também se refere a um mal-estar dos professores. Esse mal-estar, segundo Fontoura, está relacionado à crise atual da educação frente a um mundo de rápidas e contínuas transformações sociais, econômicas, políticas e culturais, que leva a uma crise de identidade na profissão docente.

No meio dessa crise vivida na profissão, não sem sofrimento, o professor pergunta-se: fico ou vou-me embora? Incerteza entre dois caminhos em que mesmo a alternativa de ficar não descarta a assunção de uma certa desistência do trabalho docente.

Esteve (1999), também analisa o tema mal-estar docente, expressão assim por ele definida: "um conceito da literatura pedagógica que pretende resumir o conjunto de reações dos professores como grupo profissional desajustado devido à mudança social" (p. 97). Esteve prossegue: "A expressão mal-estar docente (malaise enseignant, teacher burnout) emprega-se para descrever os efeitos permanentes, de caráter negativo que afetam a personalidade do professor como resultado das condições psicológicas e sociais em que exerce a docência, devido à mudança social acelerada" (p. 98).

Para Esteve, esse mal-estar está articulado ao intenso processo de mudanças sociais que vêm ocorrendo em todo o mundo nos últimos anos e às dificuldades da escola em caminhar pari passu a esse processo. Os professores são parte de um quadro de profundas mudanças sociais, situação que corresponde a mudanças não menos profundas na educação e no desempenho exigido da profissão docente.

Esteve indica as principais consequências do mal-estar docente, organizadas e apresentadas a seguir em ordem crescente do ponto de vista qualitativo, e decrescente do ponto de vista quantitativo, ou seja, do número de professores afetados: "1. Sentimento de desajustamento e insatisfação perante os problemas reais da prática do ensino, em aberta contradição com a imagem ideal do professor; 2. Pedidos de transferência, como forma de fugir a situações conflituosas; 3. Desenvolvimento de esquemas de inibição, como forma de cortar a implicação pessoal com o trabalho que se realiza; 4. Desejo manifesto de abandonar a docência (realizado ou não); 5. Absenteísmo laboral, como mecanismo para cortar a tensão acumulada; 6. Esgotamento, como consequência da tensão acumulada; 7. "Stress"; 8. Ansiedade; 9. Depreciação do eu. Autoculpabilização perante a incapacidade de ter sucesso no ensino; 10. Reações neuróticas; 11. Depressões; e 12. Ansiedade, como estado permanente associado em termos de causa-efeito a diagnósticos de doença mental" (Id., p. 113).

Dejours (1994), analisa as relações existentes entre trabalho, prazer e sofrimento a partir da organização do trabalho. Para ele, existe um "paradoxo psíquico do trabalho": este é, para uns, fonte de equilíbrio; para outros, causa de fadiga e sofrimento.

Em uma abordagem econômica do funcionamento psíquico, Dejours considera que, para constituir-se como fonte de equilíbrio, a tarefa executada no trabalho deve proporcionar ao trabalhador a descarga apropriada de sua energia psíquica acumulada. O trabalho é equilibrante quando possibilita a diminuição da carga psíquica e é fatigante quando obstaculiza essa diminuição. Daí a importância, para a saúde psíquica do trabalhador, de um trabalho livremente escolhido ou livremente organizado, uma vez que as vias de descarga, nesses casos, vão estar mais adaptadas às necessidades do trabalhador.

Essa conclusão de Dejours traz à tona a questão da "livre escolha do ofício". Na impossibilidade de uma livre escolha, e se não é mais possível ao trabalhador ao menos o rearranjo da organização de seu trabalho, advém o sofrimento, ele diz. É que, não encontrando possibilidade de descarga, a energia pulsional fica acumulada, provocando sentimento de desprazer e tensão. Essa energia fixa-se no corpo, num processo de somatização da carga psíquica acumulada, podendo desencadear graves perturbações. Se não houver, no modo de organização do trabalho, oportunidades imediatas de descarga da energia pulsional, produzem-se patologias. Dependendo da estrutura mental do indivíduo, duas modalidades de patologias são possíveis: a descompensação psiconeurótica e a descompensação somática.

Como poderíamos pensar essa relação entre trabalho e sofrimento no âmbito da profissão docente, em que a organização do trabalho, numa primeira análise, não parece ser assim tão rígida e autoritária?

Deve-se observar que não há, na literatura até aqui indicada, indícios de que o mal-estar dos professores esteja ligado exclusivamente a fatores conjunturais (mais imediatos) da educação. Antes, as análises mais frequentes sugerem ser mais plausível levantar-se a hipótese de que este mal-estar seja uma manifestação de um mal-estar mais estrutural da educação que, por sua vez, nos remete ao estrutural "mal-estar na civilização", já apontado e analisado por Freud (1930).

Por que tanto adoecem os professores no exercício do magistério? Por que o inevitável, muitas vezes, é a construção de uma relação de sofrimento com o trabalho? Por que muitos desistem e a que custos emocionais outros permanecem?

Em meio a essas perguntas, uma pista a seguir: a consideração do sofrimento psíquico no magistério como um sintoma que denuncia, por sua vez, um mal-estar na educação, e o correspondente conflito vivido pelos professores na escola.

É minha hipótese que o sofrimento dos professores, as suas queixas frequentes quanto ao insuportável trabalho docente e, no limite, o seu adoecimento expressam, sintomaticamente, a situação de abandono em que se encontra a escola; sugerem uma certa desistência da educação enquanto projeto de preparação de crianças e jovens para que encontrem o seu lugar no mundo adulto. Desistindo da realização do projeto educativo, os professores, na verdade, estariam se demitindo de sua posição de educador e, em decorrência, renunciando ao ato educativo, como diz Lajonquière (1999). São as crianças, na escola, que mais sofrem os efeitos de tais posturas.

O sintoma deve ser interpretado como um substituto, disfarçado e deformado, de um desejo, de uma idéia reprimida, de algo que, inconscientemente, os professores negam em si mesmos; resultado de uma elaboração psíquica, ele é a expressão de um conflito. Enquanto tal, o sofrimento psíquico de professores deve ser tomado como expressão de um conflito por eles vivido no âmbito dessa profissão, situação que, por sua vez, denuncia um mal-estar mais profundo e abrangente.

Uma vez que o sofrimento psíquico dos professores pode ser tomado como um sintoma, ele pode ser interpretado como uma formação de compromisso (acordo de conciliação) que lhes possibilita sua permanência nessa profissão. Conviver com o sofrimento, e com tudo o que, negativamente, ele desencadeia, talvez seja a única maneira encontrada por alguns professores para lidarem com seus conflitos, seus dilemas.

No entanto, se o sofrimento pode ser tomado como um sintoma, não é o sintoma o que importa focar, mas o seu significado, ou seja, aquilo que, com ele, o sujeito está dizendo. O que é que não se comunica com palavras mas se imobiliza num sintoma? (Mannoni, 1980).

Françoise Dolto (1980) nos lembra: "o que importa não são os sintomas (...), mas o que significa, para aquele que vive, exprimindo tal ou qual comportamento, o sentido fundamental da sua dinâmica assim presentificada e as possibilidades de futuro que, para esse sujeito, o presente prepara, preserva ou compromete" (p. 12).

Daí, desde o primeiro momento, a importância da escuta. Escutar os professores. Deixá-los falar. Ainda que eles não se reconheçam no que falam; ainda que o sofrimento do qual se queixam padecer seja julgado como provocado por um outro, que não também eles próprios; ainda que eles não se vejam implicados na produção desse sofrimento.

Dolto (1980) ressalta que a escuta psicanalítica permite que as angústias e as demandas de ajuda "sejam substituídas pela questão pessoal e específica do sujeito que lhe fala [ao psicanalista]" (p. 12).

Se não cabe propor uma psicanálise coletiva dos professores na escola, cabe sim alertar para a necessidade que as pessoas têm de ser ao menos escutadas em seu trabalho. É preciso que um espaço de escuta seja criado na escola, para que os seus profissionais – pessoas responsáveis pela formação de outras pessoas – possam, ao serem ouvidos, ouvir a si mesmos. E com isso possam deixar falar um outro sujeito, o sujeito do desejo; do desejo que está "na origem da escolha profissional e na raiz do mal-estar que faz sintoma" (Almeida, 2000, p.48).

Parece que está fazendo falta indagar: qual é o lugar do desejo e do sujeito do desejo, na profissão docente? (Dejours & Abdoucheli, 1994).

Que o sofrimento faça, inevitavelmente, parte da vida – como o conflito psíquico, segundo Freud, é inerente à condição humana –, nem por isso a escola precisa ser um lugar de sua produção (ou de sua manutenção) numa intensidade que beira o insuportável, numa desmedida que produz adoecimento. Há que se apostar na possibilidade da escola como um lugar predominantemente de vida, de crescimento, de construção, não obstante suas contradições, seus paradoxos, suas ambiguidades.

No mínimo, concordando com Diniz (1998), é preciso que se construa um espaço de saúde na escola, para que os professores não continuem fugindo de si mesmos por meio do adoecimento.

Talvez o que os professores mais precisem, fundamentalmente, na escola, seja apenas de uma "presença humana que escute" (Dolto, 1980, p.13).

 

Bibliografia

ALMEIDA, Sandra (2000). Sintomas do mal-estar na educação: subjetividade e laço social. In: Anais do II Colóquio do Lugar de Vida / LEPSI, Usp. São Paulo. 

CODO, Wanderley (org.) (1999). Educação: carinho e trabalho. Petrópolis, RJ, Vozes / Brasília: Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, Universidade de Brasília, Laboratório de Psicologia do Trabalho.

CODO, Wanderley e VASQUES-MENEZES, Iône (1999). O que é burnout? In: CODO, Wanderley (org.). Educação: carinho e trabalho. Petrópolis, RJ, Vozes / Brasília: Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, Universidade de Brasília, Laboratório de Psicologia do Trabalho.

DEJOURS, Christophe (1992). A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo, Cortez – Oboré.

DEJOURS, Christophe e ABDOUCHELI, Elisabeth (1994). Desejo ou motivação? A interrogação psicanalítica do trabalho. In: DEJOURS, Christophe, ABDOUCHELI, Elisabeth e JAYET, Christian. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola Dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo, Atlas.

DINIZ, Margareth (1998). De que sofrem as mulheres-professoras? In: LOPES, Eliane Marta Teixeira Lopes (org.). A psicanálise escuta a educação. Belo Horizonte, Autêntica.

DOLTO, Françoise (1980). Prefácio. In: MANNONI, Maud. A primeira entrevista em psicanálise. Rio de janeiro, Campus.

ESTEVE, José M. (1995). Mudanças Sociais e função docente. In: NÓVOA, Antonio (org.) Profissão Professor. Lisboa, Porto Editora.

______________. (1999) O mal-estar docente: a sala de aula e a saúde dos professores. Bauru, SP, EDUSC.

FONTOURA, Maria Madalena (1992). Fico ou vou-me embora? In: NÓVOA, Antonio (org.). Vidas de professores. Lisboa, Porto Editora.

_______________(1930). O mal-estar na civilização. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro, Imago, 1996, v. XXI.

LAJONQUIÈRE, Leandro de (1999). Infância e ilusão (psico) pedagógica: escritos de psicanálise e educação. Petrópolis, RJ, Vozes.

MANNONI, Maud (1980). A primeira entrevista em psicanálise. Rio de janeiro, Campus.

 

 

1 Pedagoga, Mestra em Educação, Professora da Universidade da Amazônia - Unama e da Universidade do Estado do Pará - UEPA.
2 Há professores que, por indicação de perícia médica, são deslocados da atividade em sala de aula para outras atividades na escola, caracterizando o que se denomina desvio de função.