On-line ISBN 85-86736-06-6

An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP 2002

 

Quem tem medo do fracasso ?

 

Ruth Helena Pinto Cohen ¹

 

 

Dando-se ênfase à educação ministrada pela escola tem-se na repetência um dos nomes do fracasso escolar. Trata-se de um sintoma, que assola o ato educativo no novo milênio a despeito de todo avanço tecnológico e científico. Diante desse entrave, da educação formal, alguns fatores podem ser pensados como terreno fértil para acelerar esse fracasso.

Durante algum tempo tentei tirar conseqüências da tensão, entre o impossível e o necessário da educação, a partir da dinâmica transferencial na situação professor/aluno. Para tal, pesquisei algumas tensões geradoras do fracasso escolar, a partir da lógica própria do inconsciente freudiano e da lógica formal aristotélica. Como conseqüência foram levantados alguns impasses que levariam a inibições passageiras e que poderiam ser dissolvidas em sala de aula.

Continuo me perguntando, diante dos novos paradigmas da educação na contemporaneidade, se há interesse dos educadores pelas descobertas da psicanálise e o que esta indagação, encontra como possibilidades de trabalho interdisciplinar hoje. Esse específico saber poderá trazer contribuições à educação, fornecida pela escola, e o que poderá lucrar a psicanálise dessa interseção?

A rede discursiva criada por laços sociais sob os quais estamos presos, ou se quisermos conectados, faz de nós corpos virtuais, onde quase tudo pode ser resolvido pela máquina: empresas, negócios amizades, sexo, reuniões, trabalho, compras, sem sair de casa. Na rua temos como promessa, sermos ou não assaltados, mortos. As prisões, domiciliar e escolar, cada vez mais nos enclausuram, em condomínios e muros, que se erguem mais fortes que os antigos asilos para loucos numa tentativa de barrar o gozo, que se traduz por um " a mais" transbordante. Este fato, pode ser apreendido pelos psicanalistas que trabalham na interseção com a educação quando escutam alguns depoimentos de educadores. Eles se dizem reféns do tráfico de drogas e da nova ordem perversa das favelas. Por outro lado, esta situação, coabita com a apatia e indiferença dos alunos frente ao próprio fracasso escolar.

Debruçando-me sobre a tensão inerente à ação educativa, em seu aspecto formal, praticada pela escola, ou informal, ministrada pela família, busco levantar alguns pontos de impossibilidade que vêm se transformando em impotência e conseqüente fracasso da educação. Para tentar encaminhar minhas questões, sobre a etiologia do fracasso escolar, busco analisar a manipulação das promessas de gozo, inerentes às ações, políticas da educação, amparadas por uma ética de ideais universais e globalizados. Venho verificando alguns pontos, na interseção entre psicanálise e educação, que se traduzem por fracasso escolar. O mais importante até o presente momento, vem se apresentando a partir do novo paradigma da globalização, com significantes que relativizam os laços sociais e os problematizam. Dentre muitos, encontramos o paradoxo apontado pelo campo psicanalítico que faz barreira a esse ideal global, universal e impossível, trata-se da contingência lógica do não-todo, utilizada por Lacan² como uma subversão à lógica aristotélica, que deu as bases para a construção da educação formal do Ocidente. Da desarmonia do encontro com o real, da thyké, do acaso, do imprevisível, Lacan extraiu conseqüências sobre o conceito de real como algo que escapa a toda simbolização. A ruptura nas redes da globalização, o fora do sistema, traduzem o que Lacan, em sua Ética, apontou como algo equivalente à anulação da castração, da Lei, campo da Coisa, das Ding, em seu caráter estranho, unheimlich.

Os fenômenos da globalização e os veículos de informação, nos quais as crianças e adolescentes estão conectados, inscrevem-nas num espaço virtual que lhes promete gozar infinitamente no "show da vida". Assim como se consome um espetáculo de mágica, o sofrimento humano, as guerras e o sexo são ingeridos em grande escala como jogos pelas vias de comunicação de massa.

Como conseqüência de uma nova forma de laço social deparamo-nos com um quero saber nada, dos alunos e um posso fazer nada, dos educadores. Estamos diante de um professor angustiado por se sentir impotente diante da tarefa de ensinar. Seus depoimentos parecem indicar que a suposição ao saber, no mestre contemporâneo, encontrar-se imbricada a um suposto se angustiar. O fracasso escolar, dentre os novos sintomas de nossa contemporaneidade, aponta para a suposição que, um excesso, um transbordamento de angústia empurra o professor para fora da sala de aula. Não estaríamos diante de uma evasão da mestria, no sentido socrático do termo? Em contraponto, verificamos que do lado dos alunos constatamos que ao serem ameaçados de reprovação parece que este valor, não mais os afeta ou angustia.

Os sintomas da moda, ou chamados novos sintomas, produtos do neocapitalismo, parecem indicar que através da: drogadição, do consumo fomentado pela mídia, das anorexias, das bulimias, das compulsões, das síndromes de pânico e do fracasso escolar, encontram-se tentativas de reduzir a falta de objeto, com objetos no real. Talvez sejamos testemunhos do desamparo, no qual o sujeito contemporâneo está imerso sem a sustentação de uma Lei que o proteja e promova desejo pelo rastro da falta. Estamos sob a égide da presença exacerbada do objeto provocando angústia e da falta de controle de si - característico da Modernidade - e dos primórdios da Psicanálise. Uma nova maneira de gozar, aparece com o fato de que hoje, se consomem bens que não servem para nada. Não seria pertinente perguntarmos se os inúmeros programas educacionais desenvolvidos, para dar conta do fracasso escolar, fracassam porque obedecem a uma lógica submetida à ética do consumo? Este fator surge como um dado importante na pesquisa sobre o crescente fracasso escolar. A existência de uma educação baseada em uma Ética do Consumo, fomenta uma suposta igualdade entre: homens e mulheres, adultos e crianças, enquanto sujeitos consumidores. Como conseqüência temos a difusão na cultura, de uma promessa de gozo, onde quase tudo é permitido.Com isso perguntamo-nos: que economia psíquica faz com que se pague qualquer preço pelo prazer e se busque "cada vez um a mais", mesmo que o preço seja dor ou morte?

Além do processo da globalização e dos paradoxos entre valores da modernidade e da atualidade, outros paradigmas, confirmam o sofrimento de experiências onde situações como o nascimento, a vida e a morte são de domínio das ciências, das tecnologias, das religiões, do poder judiciário... São formas de resistência ao trágico e a finitude do humano.

Não cabe à psicanálise tomar posições morais frente aos avanços da ciência e da educação e muito menos exaltar seus feitos. Entretanto, não se pode ficar alienado aos novos limites que se impõem ao trabalho psicanalítico. Trata-se de um desafio tentar responder desse campo, a partir de uma ética específica que visa ao sujeito particular em sua inserção na cultura.

Deixar a criança presa em um lugar de produto que sirva de sustentação para o Outro que pode ser encarnado pela Família, pela Escola ou pelo Estado, faz dela um excesso, um resto ou dejeto, sobre o qual o Mestre capitalista nada quer saber. Neste tipo de articulação, a preocupação não é com o Bem, comum à Antigüidade, mas reinar sobre objetos de consumo, mesmo que esses objetos sejam crianças. O que se encobre no discurso do mestre moderno é a divisão do sujeito ($ à a ) e a impossibilidade de um saber "todo." Vestindo essa máscara, a educação se dá como uma promessa de gozo, como alguma coisa que, um dia, poderá livrar o estudante da Lei, através de imperativos do tipo: "estude para gozar melhor no futuro".

A criança de rua, ineducada, no lugar de resto, dejeto, do que não é útil e nem produtivo, fica jogada como a real moeda brasileira sem quase valer mais nada.O seu não-saber serve à manipulação do poder, não havendo uma lei eficaz, que garanta a transmissão da castração. A educação, desta forma, encontra-se diante de impasses que estão diretamente filiados ao seu papel de passagem entre a nova família constituída de laços sociais diferenciados de parentesco e o Estado com suas leis submetidas à ética do consumo e da globalização.

Como resultado do declínio da função paterna, no âmbito familiar e no macro sistema social, têm-se filhos de pais necessários, sintomas, que não cessam de se escrever. São os pais da contemporaneidade que, ao se apresentarem como castrados, são facilmente enganados, não havendo barreira ao gozo pelo "imperativo paterno da renúncia à satisfação pulsional". "O declínio da função paterna nos confronta com as formas de angústia automáticas"³.

Para concluir mesmo sabendo que apenas indiquei algumas das muitas vertentes que podem encaminhar formas de trabalhar com os impasses que circunscrevem o fracasso escolar, como um dos sintomas da contemporaneidade, pode-se pensar que, na modernidade, a falta de objeto fez com que a psicanálise se debruçasse sobre o saber em torno de um vazio ocupando o lugar do furo no Outro simbólico. Nos tempos atuais, verificamos uma vertente da presença do objeto preenchendo esse vazio. O impossível real não travestido que mostra sua cara de objeto repugnante, como forma de consumo. Como exemplo, temos o horror que tomou conta do imaginário televisivo e das artes contemporâneas na encarnação excessiva do objeto, provocando náuseas, a partir de uma nova performance estética. Estes novos objetos formam, informam e podem também deformar os alicerces educativos das crianças.

A vertente psicanalítica aponta para as tensões geradoras de fracasso, e a lógica da educação, com seu ideal de formar alunos, encontra sujeitos divididos pela linguagem. Deste encontro faltoso não se pode recuar. Estes limites, muitas vezes traduzidos em impotência, não devem inibir a tarefa educativa. O não-saber busca um saber para dar sentido ao sem sentido da vida. No dispositivo analítico, o analista sabe que o saber lhe é apenas suposto e que se há poder, ele virá dos impossíveis freudianos, analisar, educar e governar. O bem do sujeito da psicanálise não é o Bem aristotélico ou o Supremo objeto de consumo de nossa contemporaneidade.

Na Política, seja da educação ou da psicanálise, o que comporta a dialética do dito é o fato que entre enunciado e enunciação, entre demanda e desejo, pode-se identificar um outro dizer. É com o "salve-se quem puder" que o mundo de hoje se articula, oferecendo uma mensagem imediatista de consumo aqui e agora. Do tempo que não tem tempo para compreender e, muito menos, para concluir. Estamos sobre a égide do instante do olhar.

Como responder a esse mal-estar, senão com aquilo que as crianças são mestres na arte de saber-fazer? O lúdico, o infantil, a fantasia são anteparos ao desejo do Outro devorador com sua demanda irrespondível, pois onde fracassa a educação emerge o sujeito do desejo, com o seu poder que vem da lógica do impossível.

 

 

¹ Psicanalista, Mestre em psicologia UFRJ, Doutoranda IP - UFRJ.
² Lacan, J. (1972/73). Seminário. Livro 20. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
³ Santos, T. C. (2001) "A angústia e o sintoma na clínica psicanalítica". Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. v. IV, p.106.