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ISBN 85-86736-06-6 versión on-line

An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP 2002

 

Sobre uma especificidade do ensino da psicanálise na universidade: a formação de educadores

 

Elisabete Aparecida Monteiro 1

 

 

Na história da psicanálise identificamos inúmeros momentos em que a questão da transmissão da descoberta psicanalítica se constituiu em foco de reflexão. Em 1918, provavelmente em razão do Quinto Congresso Psicanalítico Internacional que ocorreu em Budapeste, Freud escreveu "Sobre o Ensino da Psicanálise nas Universidades". Em 1919, Ferenczi foi nomeado professor de psicanálise na universidade de Budapeste, onde havia uma grande agitação dos estudantes de medicina quanto à inclusão da psicanálise no currículo, movidos que estavam por uma exigência de verdade. O título do texto em húngaro significa: "Deve a psicanálise ser ensinada na universidade?". Neste texto, Freud mostrou-se a favor do ensino da psicanálise no curso de medicina descrevendo duas etapas do curso, que seriam: uma etapa elementar a todos os estudantes de medicina, onde se trataria detalhadamente das relações entre vida mental e vida física, e outra de aulas especializadas para psiquiatras. E para além do campo dos distúrbios psicológicos, Freud afirma a contribuição da psicanálise na solução de problemas da arte, da filosofia e da religião. (1919 [1918] p. 188-9)

Lendo o texto citado, é possível compreender nas palavras de Freud que assim como a universidade não dá conta de formar os profissionais em medicina, o que deve levá-los a procurar aperfeiçoamentos para suas formações, também no que se refere à psicanálise, o objetivo do ensino universitário seria de que o estudante aprendesse algo sobre a psicanálise e que aprendesse algo a partir da psicanálise.

Bem, mesmo que aparentemente a universidade se apresente como um espaço privilegiado e passível de comportar o ensino da psicanálise, ainda hoje a pergunta originariamente em húngaro permanece. Isto, podemos antecipar, se deve a uma diferença fundamental entre, por um lado, o discurso que rege o pensamento nas universidades e, por outro, o discurso psicanalítico.

Em primeiro lugar, sabemos que é o discurso da ciência que norteia o discurso universitário e, isto quer dizer que a universidade se apoia no pressuposto de que é possível construir um saber sobre a verdade. Enquanto que, e nas palavras de Mário Fleig, "o discurso psicanalítico nos evidencia que, apesar dos efeitos da verdade inconsciente estarem se revelando em ato, a cada verdade não corresponde necessariamente um saber." (1998, p. 33). Para evidenciar o mesmo distanciamento, podemos recorrer ao pensamento de Maud Mannoni quanto a especificidade da formação do analista, ressaltando a experiência analítica do aprendiz enquanto paciente e, depois, como analista: "Assim, o saber se estende de uns aos outros sem que se possa falar de comunicação. No quadro universitário, ao contrário, o ensino limita o que pode comunicar, de acordo com as regras deste quadro." (1989, p. 84). Voltaremos na questão do saber que os autores colocam.

Se Freud sublinhou a possibilidade de que os universitários aprendam algo sobre e a partir da psicanálise, talvez na polêmica sobre o ensino de psicanálise caberia uma diferenciação entre informação e formação. Tratando-se de uma informação parece enquadrar-se no contexto do ensino no estilo acadêmico, porém não formaria analistas, já que neste segundo caso há ainda a supervisão e a análise. Qual a diferença que está sendo colocada aí? Segundo Octave Mannoni, seria a de que o ensino enquanto informação não deveria causar certos efeitos particulares sobre os discípulos, pois o ensino acadêmico está organizado para defender-se contra estes efeitos, o que poderia levar a uma deformação da teoria psicanalítica, a medida em que a conduziria para certeza universitária (1982, p. 55-6). O risco de se desnaturalizar, de se desarmar e neutralizar o discurso perturbador de Freud a partir da crescente difusão da psicanálise, também é considerado por Piera Aulagnier (1986, p. 39).

Então, deve-se colocar a pergunta sobre a possibilidade de uma informação sobre a psicanálise. Isto porque, quando se pensa na transmissão da psicanálise dois importantes fatores são considerados: o ambiente transferencial em que a transmissão ocorre e o saber que se transmite e que se encontra atrelado ao inesgotável e inatingível saber inconsciente. Por isso, por não comportar estes dois fatores mutuamente supostos é que o ensino da psicanálise na universidade ainda é bastante polêmico.

Não há qualquer possibilidade de verificação objetiva da psicanálise, ou melhor, não é possível estabelecer uma construção teórica sobre o inconsciente nos moldes da ciência positiva, esta, por sua vez, prezada pelo discurso universitário. Muito superficialmente poderíamos dizer que o conhecimento sobre o inconsciente não carrega consigo uma lógica preestabelecida que possibilite um saber a priori sobre suas produções.

Lacan ensinou psicanálise "na universidade" e, como sabemos, procurou formalizar o ensino sobre o inconsciente nos moldes dos ideais da ciência oficial, adotou as proposições da ciência lingüística e criou os matemas, chegando a buscar a fórmula axiomática da psicose, da neurose e da perversão (Roudinesco, 1977). Mesmo assim, é possível afirmar que Lacan não adulterou o ensino sobre o inconsciente. Cabe lembrar que Lacan foi o único a dizer que não era lacaniano, negando-se a ocupar a posição de Amo que efetivamente sabe, não atendendo, assim, a demanda universitária.

A aproximação da psicanálise com outros saberes participou dos planos de Freud. Basta lembrarmos que a esperança de que o esclarecimento trazido pela psicanálise pudesse alcançar a profilaxia mais radical das neuroses acompanhou-o por um longo tempo, como podemos verificar em "As Perspectivas Futuras da Terapêutica Psicanalítica" de 1910, mas se revelou um engano, quando se reconheceu uma tendência "natural" do homem à neurose, ou ainda, a necessidade da repressão no desenvolvimento da civilização. Atualmente, permanece o interesse em estabelecer contribuições psicanalíticas a outros campos do conhecimento, dentre eles a educação. No entanto, também permanecem dúvidas sobre a maneira pela qual tais contribuições possam acontecer.

Há, naturalmente, o que se aprender do conjunto teórico estabelecido na obra psicanalítica desde Freud. No entanto, a teoria psicanalítica não se localiza no rol dos saberes diretamente aplicáveis, no sentido em que não oferece previsões e domínios técnicos da realidade. Como diz Maria Lúcia Romera: "Mas, se ao cavalo selvagem não se faz a domagem, ao inconsciente não se ditam regras, não se o normatiza e ele aparece, exigindo vitória." A psicanálise, o estudo do inconsciente, trabalha com um saber a posteriori, desta forma se distancia da pretensão de controle científico. Em outras palavras, há uma particularidade no ensino da psicanálise, isto é, para além da escrita psicanalítica há uma "reinvenção" ou uma produção da teoria na realidade, o que Maud Mannoni define como teoria fictícia (1989).

Parece ser possível afirmar que é justamente devido ao seu caráter fictício que se torna dificultoso precisar a "natureza" da contribuição da psicanálise ao campo educativo. Dizemos isso levando em consideração que a formação de educadores se encontra predominantemente nos limites dos saberes universitários, portanto, se constitui num apanhado de discursos que se pretendem científicos, racionais, lineares, cujas leituras da realidade abrem possibilidades de orientações para as práticas escolares e rejeitam a idéia do não saber.

Há uma preocupação evidente na pedagogia de hoje em alcançar os acertos e evitar os erros. Isso conduz a uma crença na possibilidade de controle dos resultados, oferecido, como sabemos, pelas descobertas científicas. Os pedagogos de hoje estão convictos de que o conhecimento científico possa trazer controles sobre a aprendizagem, a disciplina e o desenvolvimento, isto é, que possa garantir, como diz Mireille Cifali, o "fazer bem" (1999, p.139).

A certeza sobre a existência de um domínio que garanta o "fazer bem" é gerada pela lógica do discurso universitário, onde a pedagogia está mergulhada. Assim, aquilo que a pedagogia de hoje compreende como educação, a saber, a aplicação de preceitos científicos que ofereçam o controle da aprendizagem, respeita uma racionalidade marcante, enquanto que o ensino da psicanálise conta com os pontos de não saber inerentes à relação do sujeito com o desejo.

Podemos deduzir daí a distância entre o discurso pedagógico e o discurso psicanalítico. Quando pensamos no educar, antes pensamos em quem educamos e o que transmitimos. Em primeiro lugar, a psicanálise possui uma determinada concepção de sujeito que se distancia do modelo científico, portanto, dos pressupostos da pedagogia (Ferretti, 1997). Em segundo, para a psicanálise a transmissão de conhecimentos não ocorre isoladamente da transmissão de um "certo" saber, tampouco pode ser pensada alheia à transferência. A educação, segundo a psicanálise, ocorre quando o sujeito (que é sempre sujeito do desejo) supõe a um outro o saber sobre seu desejo (a transferência), portanto, atribuindo ao outro o poder de revelar-lhe aquilo que lhe falta (o objeto a), que o coloca na posição desejante. Se por um lado não há saber sobre o desejo, é esta posição de dependência em relação ao outro que coloca o sujeito em condição de participar da transmissão.

A maneira psicanalítica de compreender a educação diverge do discurso racional da pedagogia, pois o processo ensinar-aprender, segundo a psicanálise, está submetido aos aspectos históricos singulares da constituição subjetiva de cada um dos envolvidos, isto quer dizer que o ensino da psicanálise, como qualquer outro, assume uma ou outra configuração dependendo do sujeito para quem for dirigido.

Daí, das proposições psicanalíticas sobre como se processa o ensinar, da revelação da transferência como estrutura da ação educativa, da reflexão em torno da afirmação freudiana sobre a impossibilidade de educar (juntamente com outras duas profissões: curar e governar) que a pedagogia pode extrair a contribuição psicanalítica. No entanto, parece que, muitas vezes, não lhe é interessante, já que não pode reverter tal conhecimento em algum método, algum controle da realidade, pois aprendemos com Freud que não há controle do professor sobre aquilo que ensina, tampouco sobre o aluno.

Mireille Cifali, em "L’Infini Éducatif: Mise en Perspective" (1986), de maneira muito interessante, recupera as tentativas de contribuição ao campo da educação que partiram do segmento tradicionalmente mais céptico, mais supostamente científico da história da psicologia, representada por William James e, também, por Claparède. Em seu estudo, mostra como os esforços em retirar a educação do rol das artes a fim de conceder-lhe o status de ciência resultaram em conclusões surpreendentes, tais como: de que a psicologia científica não é capaz de oferecer a ajuda que os pedagogos esperam dela, ou ainda, de que apenas uma pesquisa da verdade, afastada de um ceticismo estéril poderia no futuro criar perspectivas para fortalecer a educação. Situando-nos no futuro em relação a estes autores, verificamos que no campo da educação segue a ausência de regras fixas, de dogmas, a impossibilidade de previsões e métodos que garantam o sucesso da educação. Por uma (simples?) razão, a educação é fundamentalmente um encontro com o outro. Cada outro traz uma realidade desconhecida, um mundo de incertezas.

Trabalhamos na dissertação de mestrado com o tema da transferência, nesta ocasião concluímos que o encontro entre professor e aluno não se restringe no encontro entre dois outros, mas no encontro entre vários outros que habitam a subjetividade do professor e outro tanto de outros que habitam a subjetividade do aluno. Em suma, o conceito psicanalítico de transferência revela a impossibilidade de existir um controle dos efeitos produzidos pelo encontro educativo.

No mesmo texto de Cifali, podemos extrair uma preciosa reflexão: "Ninguém reduzirá no futuro esta impossibilidade, nosso progresso somente será de entendê-la não como uma infelicidade mas como constitutiva da nossa relação ao outro-sujeito." (1986, p. 154).

Podemos retornar à questão do ensino da psicanálise na universidade, especialmente na formação de educadores. A mesma distância que se coloca entre a concepção de educação da psicanálise e da pedagogia, se coloca também entre os discursos psicanalítico e universitário, isto é, podemos pensar em informar, seja psicanálise ou qualquer outra disciplina, sem educar? Ou melhor, há possibilidade de se transmitir algo sem estar subjetivamente implicado no processo? É possível transmitir uma informação sem causar efeitos na subjetividade do outro? No texto "Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar" (1914) Freud indica que a figura do professor não passa desapercebida, sendo admirado, criticado ou rejeitado, efeitos que apontam para o seu lugar na economia psíquica do aluno, não para a sua pessoa.

As questões ora colocadas situam-se em torno de uma que nos orienta: a contribuição que a psicanálise pode oferecer à pedagogia segue na contramão do que esta última anseia, sendo que isto já está previsto desde o momento em que se pensa na especificidade do ensino da psicanálise.

 

Bibliografia

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1 Doutoranda da Faculdade de Educação da USP.