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ISBN 85-86736-06-6 versão on-line

An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP 2002

 

As vicissitudes da transmissão da Psicanálise a educadores

 

Rinaldo Voltolini 1

 

 

O que é e para que transmitir psicanálise a educadores, ou seja a alguém que não pretende ser analista?

A pergunta ganha relevância à medida em que se observa, não raras vezes, nas tentativas desta transmissão, quando ela se propõe, algo parecido com o que aconteceu entre os jesuítas e os índios durante a tentativa de catequização: de um lado uma fascinação com o que ouvem, do outro a permanência dos velhos hábitos.

Com o termo vicissitudes desejo marcar que o viés por onde tomarei a questão da transmissão é justamente o dos destinos possíveis dela.

De um lado as questões específicas da transmissão da psicanálise, já debatidas por Freud mas muito mais por Lacan que colocou a questão da formação do analista no centro do palco.

De outro as questões específicas do educador e seu ato (o pedagógico) que como já bem o demonstrou Millot (1987) é mesmo o oposto do ato analítico.

Cabe a Lacan o mérito de ter demonstrado que a economia da transmissão da psicanálise é mais complexa do que a economia de qualquer outra teoria científica.

Isto porque nesta transmissão joga-se a formação do desejo do analista, que implica em uma mudança de posição subjetiva diante do saber.

Ou seja, transmitir psicanálise não é percorrer os conceitos da teoria, no sentido de dominar uma técnica, como aliás, é o que ocorre em qualquer outra ciência. O físico, o matemático, o químico, não precisam se perguntar sobre seu desejo para aprenderem sobre física, matemática ou química.

Como a psicanálise não se pratica como uma técnica, aquilo que precisa um analista para sustentar seu ato é algo que ele só obtém se tiver conseguido, ao atravessar sua análise, chegar a uma posição diferente com relação ao saber.

Mas e o educador? Certamente ele não vai buscar na psicanálise as condições para sustentar um ato analítico pois não é disso que seu trabalho se faz.

Mas o que ele busca então na psicanálise? Esclarecimento sobre o ato que ele produz, o pedagógico.

Só que nesta perspectiva corre-se o risco de que nada da psicanálise seja transmitido já que os conceitos analíticos estão intrinsecamente ligados ao campo da experiência analítica e quando transportados para outro campo já não dizem mais a mesma coisa.

Paradoxo este que poderíamos resumir assim: o educador não busca ser analista mas ao buscar a psicanälise o que aprende dela?

Os conceitos psicanalíticos tomados de empréstimo para esclarecer a experiência em outro campo, ou seja, aquilo que se inscreve sob o mote do Freud explica! não deixa de ser uma proposta problemática.

Além do problema clássico da importação conceitual que marca que um conceito transportado de um contexto epistemológico a outro, sofre alterações daquilo que ele circunscreve, temos o problema da intenção ética e/ou política intrínseco a essa importação e que é, em geral, o da normatização.

É complicado esperar dos conceitos psicanalíticos que se possa usá-los para viabilizar práticas normativas como as da Pedagogia.

Basta lembrarmos toda a discussão sobre a ego-psychology que foi justamente a tentativa de usar a psicanálise num projeto de normatização psicológica.

A experiência analítica está toda ela comprometida não com o normal mas com a verdade singular.

Não é de se estranhar, portanto, que essa vertente da relação da psicanálise com outros campos do saber, a do Freud explica!, encontrou objeções veementes e não pode ser praticada hoje em dia sem receber a acusação de ingenuidade e banalização.

Mas a presença, ainda maciça, de tentativas deste gênero, não deve nos levar a pensar, erradamente de que isto se deva só a uma formação deficitária por parte daqueles que o praticam.

Há um outro fator, mais decisivo na determinação do resultado deste tipo de transmissão, e que está do lado daquele que ouve e recebe esta transmissão já que ao se falar de transmissão é importante não se ocupar só daquele que transmite.

Refiro-me ao fator institucional, ou seja, ao fato de que este professor que ouve a psicanálise tem, em geral, uma inserção institucional que não é sem efeito na determinação de como irá ouvir.

Os lugares pré-interpretam, alude Lacan quando inaugura um novo espaço para seus seminários(o do direito), se referindo especificamente ao destino que havia sido dado ao seu ensino no espaço anterior (o da medicina).

"O lugar sempre teve seu peso para estabelecer o estilo do que chamei de manifestação, sobre a qual não quero perder a oportunidade de dizer que tem relação com o sentido corrente do termo interpretação. O que disse por, para e na assistência de vocês está, em cada um desses tempos – definindo-o como lugares geográficos -, sempre já interpretado. (1969-1970 p. 14)

Ele comenta nessa ocasião, que seu ensino tinha dado a oportunidade das pessoas perguntarem o que aquilo tudo tinha a ver com Medicina.

"Será que deveria consistir apenas em algum ato de referência, não disse reverência, a termos considerados sagrados porque eles mesmos estão situados bem no centro, no âmago do ensino médico? Deveria eu ter indicado, para que este ensino fosse médico, que talvez um belo dia sejam encontradas causas endócrinas para a neurose?"(idem, p. 22)

Lacan chamou de aquilo em que estão imersos meus ouvintes ( ídem p. 22) exatamente o problema da inserção institucional e que deve ser pensado em termos de discurso, já que cada instituição se sustenta discursivamente.

O que aqui se coloca é exatamente o fato de que a pertença a um certo discurso sobredetermina a escuta e cria espontaneamente uma resistência ao que emana de outro discurso.

Aqui ganha toda importância e dimensão nossa pergunta inicial: o que é e para que transmitir psicanálise a educadores?

Isto porque aquilo em que estão imersos os educadores não é a psicanálise.

Que aqui não se corra o risco de se achar que seria desejável que eles estivessem imersos na psicanálise, mas serve apenas para marcar um destino que pode ter essa transmissão.

Convém nos determos um pouco sobre este ponto.

A instituição educacional está fundada sobre um princípio bem específico, que é o que lhe faculta a existência: o de transmitir um legado cultural.

Se tomamos a evolução histórica do saber pedagógico, podemos verificar que as idéias que se sucederam no matizamento das práticas pedagógicas não mantinham uma relação lógica de sucessão. Não se pode dizer que a cada virada histórica havia uma superação epistemológica da era anterior.

Mas algo persiste sem alteração em todas essas viradas e permanece vigente em todas as idéias que marcaram época e se impuseram como o matiz de práticas pedagógicas: a promoção e a sustentação de uma imagem ideal de homem.

Toda vez que uma teoria qualquer ( por exemplo a de Piaget ou Vigotski) é tomada pelo discurso pedagógico não se pode escapar de tomá-la para responder a uma pergunta inevitável: qual seria a imagem ideal de homem? E sua outra pergunta correspondente: o que se deve fazer para viabilizar isto?

Tal é a economia do discurso pedagógico que não é de se estranhar que Maud Manoni (1988) tivesse observado a semelhança entre a cena pedagógica e a cena familiar, já que é de ideal de homem que estamos falando.

É a presença constante desse deva-ser atribuído tanto àquele que ocupa o lugar de aluno como àquele que ocupa o lugar de professor, que é a marca distintiva do discurso pedagógico.

Não é difícil de notar que reside aí o ponto principal de resistência ao discurso analítico uma vez que neste último não há espaço de convivência pacífica com a sustentação de ideal de homem.

Se considerarmos que aquilo em que estão imersos meus ouvintes é o discurso pedagógico também não é de se estranhar que a transmissão da psicanálise neste registro encontre o destino de qualquer outra teoria que por aí passe, ou seja, o da sustentação de uma imagem ideal de homem.

Não é raro observar isto; frases como devemos criar no aluno o desejo de saber; o importante é encontrar os caminhos de sublimação, etc.

Um outro destino também é o de que tal transmissão se depara com a mesma invectiva que encontrou Lacan entre os médicos, a de que se diga que isso não tem nada a ver com Pedagogia. Algo que também não é raro de se encontrar.

Haveria aqui que avançar na discussão da proposta da transmissão da psicanálise a educadores.

Freud implica

Como dizíamos, o paradoxo em que a transmissão da psicanálise a educadores se sustenta é o seguinte:

Se a transmissão da psicanálise não pode se dar só pelo ensino conceitual sem uma experiência com o inconsciente, como falar em transmissão da psicanálise a sujeitos que não pretendem ser analistas e que na maioria das vezes não passam por uma análise pessoal?

Deveríamos propor então, como aliás já se fez, que todos os professores façam análise?

Não duvido, nem um pouco, de que passar por uma análise interfere em como este sujeito ao colocar-se como professor, se porta diante dos alunos. Mas propor isto como solução para a transmissão da psicanálise a educadores, me parece sob vários ângulos um tanto abusivo.

Primeiramente porque seria autoritário pré-indicar análise às pessoas, ainda mais se se pretende dizer que por ela ter escolhido ser professor, isto implica que ela se analise. Não tardaria a que uma proposta como essa caísse em descrédito. Depois, porque a mudança subjetiva que em uma análise se acaba por atingir, embora interessante, não resolve ela mesma os problemas da Educação.

Melhor faríamos, me parece, se aprofundássemos numa observação de Freud, aquela que aliás é sempre a mesma, por já ter se tornado canônica, entre aqueles que a partir da psicanálise pretendem falar sobre Educação: a dos três ofícios impossíveis, governar, educar e psicanalisar.

Há aí uma nuance que proponho aprofundar: o princípio que faz Freud alinhar estes três ofícios. E nós sabemos que Freud não os põe aí aleatoriamente e que nem tampouco poderia intercambiá-los por qualquer outro.

O que os alinha é justamente a relação com o impossível.

O passo a mais a ser dado é o de perguntar se ao partirmos deste princípio de alinhamento não poderíamos postular de que haveria algo em comum na formação do psicanalista e do educador sobre o que valeria a pena refletir no sentido de indicar caminhos para a questão da transmissão.

Ambos em sua formação e seu trabalho tem que responder a uma certa relação com o impossível.

Mas neste ponto podemos notar que as respostas que psicanalista e educador dão a este impossível diferem significativamente.

Enquanto o educador, como dizíamos acima, promove uma imagem ideal de homem, sustentada por um discurso pedagógico, o psicanalista tenta justamente fazer tal imagem sucumbir, já que a toma como produzindo no sujeito que a sustenta uma impotência que caracteriza justamente a neurose.

Tal manejo não pretende extinguir o impossível transformando-o em possível, mas antes, tornar o próprio possível em algo visível, tirá-lo da precariedade em que fica pela idealização com o impossível.

Algo que poderíamos resumir como estabelecer uma relação produtiva com o impossível. O produtivo aqui não tem o sentido capitalista de pôr objetos no mundo, mas serve para marcar a idéia de movimento, criação, coisas que tendem a ficar paralisadas na condição repetitiva da neurose.

Para o educador, ao ter seu trabalho tensionado a partir de um ideal pedagógico, é freqüente que o tome no lugar da impotência, ora sua, ora do Estado, ora dos pais dos alunos, etc,mas sempre apontando uma impotência.

Daí ser mais ou menos inevitável que ao transitar por esta ordem discursiva a psicanálise seja demandada como um Freud explica! ou seja como uma tentativa a mais, no caminho de combate a impotência.

Mas o mais característico da transmissão da psicanálise melhor se inscreveria sob o mote do Freud implica!

Isto expressa melhor a idéia de que é necessário uma mudança subjetiva e de posição em relação ao saber, pois trata-se mesmo de que o sujeito se reconheça implicado exatamente ali onde, em um momento anterior, não se reconhece participando.

Quando Freud insistiu sobre a necessidade de passar por uma análise para aqueles que pretendiam ser analistas, não o fez por razões dogmáticas ou mesmo corporativistas. O fez porque reconheceu que a psicanálise não é um saber de conteúdo fechado de A a Z, e sim uma forma (ética) de se posicionar frente ao humano.

Pois bem, poderíamos postular que o que da psicanálise interessaria transmitir a educadores seria exatamente esta "relação produtiva com o impossível".

Algo que não se faz falando sobre psicanálise (embora isto possa ser utilizado como um meio e não como um fim em si mesmo) mas fazendo os educadores falarem não de suas queixas (posição paralisante) mas marcando suas interrogações, dúvidas pois nelas estão os germes, o potencial de questionamento do ideal.

Transformar as queixas em enigma, poderíamos aludir ao que se passaria neste caso.

Penso que para isso, é claro, seria desejável que tal analista dominasse a questão conceitual do campo educativo ( e isto aqui tem mais relevância do que o próprio domínio conceitual erudito sobre a psicanálise) no sentido de que isto o ajuda a lidar com os impasses discursivos que aí se colocam.

Esta é uma discussão que teremos aqui, que deixá-la incompleta, já que a intenção deste texto é traçar distinções sobre os destinos que pode tomar a transmissão da psicanálise dependendo da posição discursiva em que ela é tomada.

Foi neste sentido que a distinção dos motes Freud explica e Freud implica serviu-nos antes de mais nada para marcar duas posições discursivas, a primeira inscrita no discurso universitário e a segunda no discurso analítico.

 

Bibliografia

LACAN, J. (1969-1970) O Seminário, livro 17 "O avesso da psicanálise" (A Roitman, trad.).Rio de Janeiro, RJ: JZE

MANNONI, M. (1988) "Educação Impossível" (A Cabral, trad.)Rio de Janeiro, RJ:Francisco Alves

MILLOT,C. (1987) "Freud antipedagogo" (A Roitman, trad.).Rio de Janeiro, RJ:JZE

 

 

1 Psicanalista; Professor da UNIB e Unicapital; Professor convidado nos Cursos de Extensão da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida do IPUSP.