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On-line ISBN 85-86736-12-0

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2002

 

A relação com o saber de crianças e jovens de zona rural: dados preliminares de pesquisa

 

 

Beatriz Penteado Lomonaco

Psicóloga, Doutora em Ciências da Educação (Universidade de Paris VIII), pós-doutoranda da FE-USP com bolsa da FAPESP

 

 


RESUMO

Este trabalho visa a apresentar os dados preliminares de uma pesquisa de pós-doutorado cujo objetivo é aprofundar os estudos sobre a noção de relação com o saber de alunos do Ensino Fundamental, residentes em no universo rural.

Palavras-chave: relação com o saber, ensino-aprendizagem, educação rural


ABSTRACT

This article presents post-doctoring research preliminary's data, which main goal is to deepen studies of how first grade students, residents of rural areas achieve knowledge.

Key words: knowledge, teaching-learning, rural education


 

 

Para nós que vivemos nos grandes centros urbanos, a vida no campo é associada a idéias românticas. Habituados ao conforto da vida moderna, é difícil imaginar como seria viver longe do aparato eletro-eletrônico que entulha nossas casas, de um sem-número de informações disponíveis ao alcance da mão, da multiplicidade de bens e serviços que nos cercam. Pouco sabemos das dificuldades, das crenças e desejos da população rural.

Embora tenhamos alguma experiência do mundo rural, o mesmo não ocorre em relação às escolas rurais. Mesmo aqueles que trabalham na área educacional se defrontam com a escassez de literatura sobre o tema - o que é surpreendente em um país que possui quase um terço da população vivendo fora dos centros urbanos. Além disso, regra geral, não há dados consistentes sobre a população escolar rural, nem existem políticas educacionais específicas nas secretarias estaduais ou municipais de educação.

A realidade dos municípios de pequeno porte contrasta bastante com a dos centros urbanos: em geral são comunidades que possuem vínculos mais orgânicos entre família e escola; há poucos recursos profissionais, culturais e econômicos disponíveis; os ritos e tradições culturais estão ainda presentes no cotidiano. Neste universo, algumas questões se colocam: qual é o sentido da escola nessas comunidades? Como ele é construído? Qual o papel da escola para alunos de zonas rurais? Que saberes e aprendizagens são por eles valorizados?

Essas e outras questões paralelas estão no centro dos estudos sobre o conceito de relação com o saber que têm norteado pesquisadores em vários países1. Este conceito tem sido alvo de diversas abordagens (psicologia, psicanálise, etnologia e sociologia) que tentam dar inteligibilidade às relações do(s) sujeito(s) com o saber, sua produção, sua apropriação e sua transformação. Dada a convergência significativa entre estudos de aporte psicanalítico e resultados de pesquisas sobre a relação com o saber, o diálogo entre psicanálise e a educação parece oferecer contribuições particularmente relevantes para os desdobramentos desta noção.

Os grupos de pesquisa que investigam este conceito, particularmente o de Bernard Charlot (em Paris VIII) e de Jacky Beillerot (Paris X), visam, essencialmente, compreender as múltiplas relações dos indivíduos com o aprender e, de modo mais específico, com os processos pelos quais o sujeito aprende: "relação com o saber é uma relação de sentido, portanto de valor, entre um indivíduo (ou um grupo) e os processos ou produtos do saber" (Charlot, Bautier & Rochex, 1992) ou ainda, "a relação com o saber é a relação com o mundo, com o outro e consigo mesmo, de um sujeito confrontado com a necessidade de aprender" (Charlot, 2000). Procuram ainda desvelar como opera a conexão entre o sujeito (simultaneamente, sujeito desejante e sujeito social) e saber, isto é, por quê (móbil/desejo) e para quê (objetivo) o indivíduo se mobiliza para a aprender; por fim, postulam que o aprender implica exterioridade e interioridade (a apropriação de um saber que lhe é exterior), bem como sentido e eficácia (o sujeito se apropria de um saber que exige determinadas atividades para que seja apropriado) (Charlot, 2001, p.19-22).

No entanto, todos estudos sobre a relação com saber têm como base a realidade dos centros urbanos, havendo ainda uma grande lacuna no que se refere à população rural. Ademais, nesta população se apresentam certas articulações entre aprender "na vida"/na escola, e entre saber/aprender (aspectos bastante problematizados no conceito de relação com o saber) que a tornam ainda mais interessante como objeto de estudo.

Desta forma, o presente trabalho é uma discussão preliminar de uma pesquisa ainda em andamento, cujo objetivo central é investigar a relação de crianças e jovens em um município do interior de São Paulo (Serra da Mantiqueira) com a escola, com o saber e o aprender, a fim de compreender seu modo de vida e suas aspirações no quadro do conceito de relação com o saber.

 

O que, como e com quem trabalhamos

A pesquisa tem como foco os alunos residentes na zona rural das classes de transição do Ensino Fundamental: 4ª, 5ª e 8ª séries. Como em muitas escolas do Estado, as crianças que vivem na roça freqüentam as escolas rurais (em classes multi-seriadas) até a 4ª série. Desta forma, a passagem para 5ª série é um momento importante uma vez que passam a freqüentar a cidade cotidianamente e a fazer parte de uma instituição cuja dinâmica e organização são bastante diferentes das pequenas escolas rurais. Ainda que boa parte dos alunos de 8ª série continue seus estudos, esta série representa o final de um ciclo importante na vida dos jovens.

A pesquisa mobiliza diversos instrumentos de coleta de dados a fim de dar conta dos processos culturais e subjetivos em questão. A primeira etapa da coleta baseou-se em um "balanço de saber", na forma de uma produção de texto, conforme proposto pela equipe ESCOL (Paris VIII) e utilizado posteriormente em diversos estudos (Charlot, Bautier & Rochex, 1992; Bautier & Rochex, 1998; Charlot, 1999)2. Em nosso caso, o enunciado da redação do "balanço" foi: Desde que nasci, tenho aprendido muitas coisas: em casa, no meu bairro, na escola, em muitos lugares. Quais foram as coisas mais importantes que aprendi? Onde aprendi? Quem me ensinou?

Após a análise das redações, foram realizadas oficinas com alunos tendo como suporte atividades gráficas, jogos e discussões, pois alguns estudos (Gauthier, J. e Gauthier, L; CENPEC & Litteris, 2001) apontam para os limites da utilização de instrumentos baseados exclusivamente na escrita. Neste momento, foram investigadas as expectativas de futuro e a relação dos jovens com suas aprendizagens.

Em um terceiro momento, foram realizadas entrevistas com alunos selecionados focando, sobretudo, as relações entre saber escolar e saber cotidiano.

A última etapa do trabalho consistiu em uma conversa com um grupo de alunos de 8ª série sobre um tema que não havia sido suficientemente explorado: a vida na roça e na cidade.

A medida que as questões focalizadas se tornavam mais específicas, fomos reduzindo o número de sujeitos, procurando garantir que os alunos participantes das oficinas e entrevistas tivessem feito o "balanço dos saberes". O total de alunos participantes a cada etapa foi o seguinte:

Quadro 1 - População de estudo

instrumentos total
Balanços de saber 78 83 58 219
Oficinas 25 20 18 63
Entrevistas 15 15 15 45
Conversa coletiva - - 8 8

Foram também realizadas entrevistas com alguns pais e professores a fim de investigar o lugar que a escola e o saber ocupam no imaginário social da comunidade.

 

Conclusões preliminares

De forma geral, os resultados obtidos até o momento vão ao encontro de outras pesquisas afins, em especial no que diz respeito à importância das aprendizagens afetivas e relacionais e a cisão entre aprendizagens escolares e não-escolares.

Em estudo semelhante com população urbana da capital paulista (CENPEC e Litteris, 2001), já se apontava a valorização de saberes relacionados às questões ético-morais e do espaço familiar, assim como a opacidade dos saberes escolares. Todavia, existem diferenças significativas em relação ao nosso trabalho.

Nos textos por nós analisados, não há uma rejeição explícita ou implícita da escola ou dos professores, como na pesquisa acima citada. Quando a escola aparece, ela é um bem, um valor inquestionável. Embora seja bastante claro que a escola é, sobretudo, um "passaporte para o futuro", ela é bastante valorizada (ainda que de modo genérico), e seus saberes são pouco relacionados ao cotidiano das crianças. Na maior parte dos textos, aprender na escola tem um caráter instrumental - é através dela que se pode ter uma "vida melhor". Nesse sentido, as redações convergem para o primeiro trabalho da equipe ESCOL (Charlot, Bautier, & Rochex, 1992), segundo o qual, para uma parcela significativa de estudantes franceses, ir à escola faz mais sentido do que o saber nela adquirido; havendo, assim, uma relação mais forte com a escola do que com o saber.

Dentre os principais aspectos ressaltados nas redações dos alunos, "aprender a ler e a escrever" parece ser o maior ganho que a escola lhes oferece3. Ainda que estes alunos estejam em um processo de aprimoramento da leitura e da escrita, esta é apenas uma das competências/conhecimentos passíveis de serem apropriados nesta instituição. Todavia, ler e escrever são mais lembrados como habilidade do que como função (os sentidos e usos no cotidiano ou na vida). Encontrando dados semelhantes na República Tcheca, Stech (2001) aponta que "ler e escrever" para os jovens significa mais do que se apropriar de habilidades, mas ingressar em uma cultura escrita, o que parece ser também nosso caso.

Nossos dados mostram que na escola, as crianças aprendem "as matérias", um conjunto opaco de conhecimentos pouco articulados, mas que possuem uma importância intrínseca. Para aprender estes conhecimentos é preciso ir até o fim dos estudos e descobrir, na vida adulta, qual sua função. Existe, portanto, diferenciação entre os saberes escolares e os não-escolares (ou anteriores à escola), assim como entre as atividades de aprendizagem, mas tudo indica que não há continuidade, integração ou intersignificação (Charlot, 2001) entre os diferentes saberes e suas formas de aprender.

O conjunto de valores que aparece nas redações das crianças, expressa, de forma incisiva, conformidade, adaptação às regras de convívio social, e respeito à autoridade ou ao outro. Em relação à escola, os alunos solicitam mais autoridade, mais disciplina e muitos ressaltam que estas seriam as melhores qualidades de um bom professor. O caráter moral-religioso impregna fortemente as redações infantis (e é na zona rural onde mais aparecem), reflexo da sociedade local, bastante influenciada pela Igreja Católica. Nesse sentido, nossa amostra parece revelar um aspecto pouco observado em outros trabalhos: a religiosidade como um valor importante para as crianças e as regras religiosas perpassando as relações familiares e comunitárias.

Parece-nos que face ao enfraquecimento das interdições e valores sociais, os jovens procuram se balizar por princípios éticos básicos que medeiam as relações sociais e que lhes permitem dar acabamento à própria identidade.

Um outro aspecto que merece atenção nas redações é um número bastante alto de menções relativas às aprendizagens básicas e/ou habilidades específicas. De fato, andar, falar e comer (de longe as mais evocadas), antecedem a maioria das aprendizagens do ser humano e são pré-requisitos para muitas, mas é interessante que sejam tão evocadas entre alunos que já deixaram a primeira infância há um certo tempo. Observa-se, portanto, que estas habilidades físicas, concretas, são recuperadas e valorizadas pelas crianças, assim como as pessoas que as ensinaram (em geral, o pai e a mãe).

Muitas das aprendizagens cotidianas mencionadas se referem a atividades próprias do meio rural: plantar, roçar, cuidar de animais, andar a cavalo, dirigir trator, etc. Elas estão presentes na vida dos alunos e fazem bastante sentido em seu cotidiano. Ainda assim, as entrevistas e oficinas mostram que as atividades ou profissões relativas ao meio rural são muito pouco valorizadas pelos alunos, o que não deixa de causar certa preocupação tanto do ponto de vista subjetivo (notadamente em relação à construção da identidade), como objetivo (uma vez que suas perspectivas profissionais são bastante restritas).

Sabemos que a aprendizagem não se resume à apropriação de conhecimentos, mas também de significados, de marcas simbólicas (Lajonquière, 1999). Aprender permite ao indivíduo inscrever-se na história pois, apropriando-se dos saberes de seu mestre, o aprendiz passa a ter uma dívida simbólica com a tradição cultural que o assujeita. Nesse sentido, os aprendizados e saberes evocados pelos alunos parecem indicar pontos de conflito entre a cultura de origem e as perspectivas de vida, entre o desejado e o possível, entre a escola e a vida, entre o mundo em que vivem e aquele que apenas vislumbram pela TV... Todos estes aspectos serão objeto de análise ao longo da pesquisa.

 

Bibliografia

BAUTIER E. & ROCHEX, J-Y. (1998), L'expérience scolaire des nouveaux lycéens. Armand Colin, Paris.

BEILLEROT, J. BLANCHARD-LAVILLE, C.; MOSCONI, N. et al. (1996) Pour une clinique du rapport au savoir, Paris, Harmattan.

BEILLEROT, J., BLANCHARD-LAVILLE, C., BOUILLET, A. et al. (1989), Savoir et rapport au savoir - Elaborations théoriques et cliniques. Paris, Ed. Universitaires.

CENPEC & Litteris (2001),"O jovem, a escola e o saber: uma preocupação social no Brasil" in Charlot, B. (org.). Os Jovens e o saber - perspectivas mundiais. Porto Alegre, ArtMed.

CENPEC, (1999), Coleção Jovens e Escola Pública, 3 volumes, São Paulo.

CHARLOT, B. BAUTIER E. E ROCHEX J-Y, (1992), École et savoir dans les banlieues et ailleurs, Armand Colin, Paris.

CHARLOT, B. (1999) Le rapport au savoir en milieu populaire: une recherche dans les lycées professionnels de banlieue. Anthropos, Paris.

CHARLOT, B. (2000) Da relação com o saber, Porto Alegre, ArtMed.

CHARLOT, B. (org.) (2001),Os Jovens e o saber - perspectivas mundiais. Porto Alegre, ArtMed.

GAUTHIER, J. & GAUTHIER, L. (2001), "A relação com o saber de alunos, pais e professores de escolas da periferia de Salvador, Bahia - estudo sociopoético" in Charlot, B. (org.) Os Jovens e o saber - perspectivas mundiais. Porto Alegre, ArtMed.

LAJONQUIERE, L. (1999), Infância e ilusão (psico)pedagógica. São Paulo, Vozes.

ROCHEX J-Y (1995), Le sens de l'expérience scolaire, Paris, PUF.

STECH, S. "O que significa aprender para os alunos tchecos? Balanços do saber no início dos anos 90" in CHARLOT, B. (org.) (2001), Os jovens e o saber - perspectivas mundiais. ArtMed, Porto Alegre, p. 147.

 

 

1 O mais recente livro organizado por Bernard Charlot (2001) apresenta resultados de pesquisa sobre a relação com o saber realizadas na França, na República Tcheca, na Tunísia, na Grécia e também no Brasil.

2 O enunciado original da produção de texto francesa era: "Tenho____anos. Desde que nasci, aprendi muitas coisas; em casa, no bairro, na escola, em muitos lugares. O que me ficou de mais importante? E agora, o que espero?"

3 Ressaltamos que as atividades "ler, escrever e calcular", representam 60,6% das ocorrências na categoria denominada Atividades Intelectuais e Escolares (AIE).