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ISBN 85-86736-12-0 versión on-line

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2002

 

Aplicação da Psicanálise à Educação: o Início de um Fracasso Anunciado

 

Psychoanalysis application to education : the beginning of a failure

 

 

Christiano Mendes de Lima

Psicanalista; membro da Clínica Freudiana de Uberlândia (MG); psicólogodo CAPS Infantil da Prefeitura Municipal de Uberlândia; Mestrando na FEUSP; Professor na Unit (Uberlândia)

 

 


RESUMO

Usamos o texto de Freud conhecido como o caso do pequeno Hans para analisar porque a aplicação da psicanálise à educação pode implicar no fracasso do ato educativo, dificultando a priori o acontecimento de uma educação.

Palavras-chave: psicanálise; educação; infância.


ABSTRACT

Freud’s text known as the case of little Hans was used to analyze why psychoanalysis’ application to education can result into the failure of an educational act, turning the act of education a hard accomplishment.

Key-Words: psychoanalysis; education; childhood.


 

 

Pretendemos fazer aqui um exame do texto de Freud Análise de uma Fobia em um Menino de Cinco Anos (1909), conhecido como o caso do pequeno Hans, a partir do vértice dado pelo lugar do pai deste em sua educação. Marcaremos as linhas mestras que nos fazem crer que à medida que o pai de Hans se endereçava ao filho em nome da teoria psicanalítica e não em nome próprio; ele, com isto, abortava a possibilidade de sustentar um ato educativo junto ao filho. Procuraremos demonstrar que a autodemissão do pai de Hans, operada através deste lugar de endereçamento – a Psicanálise – foi de grande importância na construção do sintoma fóbico do menino, ou seja, em seu padecer neurótico.

***

Freud ao procurar justificar porque o tratamento de Hans foi conduzido pelo pai, sob uma espécie de "supervisão" sua, fornece-nos um bom indicativo da posição do pai diante do filho. Afirma que a análise de uma criança tão pequena só foi possível "porque a autoridade de um pai e a de um médico se uniam numa só pessoa, e porque nela se combinava o carinho afetivo com o interesse científico, é que se pôde, neste único exemplo, aplicar o método em uma utilização para a qual ele próprio não se teria prestado, fossem as coisas diferentes" (Freud, 1909, p.15). Assim, situa a relação do pai com Hans como polarizada entre o afeto paternal e o interesse científico, isto é, em um certo nível Hans se tornou o objeto de pesquisa de um pai encantado pela teoria psicanalítica. Freud diz que, a fim de reunir observações sobre a vida sexual das crianças, incitava "alunos e amigos" a coletar estes dados e afirma que os relatos que o pai fez sobre Hans logo se destacaram. Parece que o pai do menino se entusiasmou tanto pela tarefa de que Freud lhe incumbiu que fez chegar a este "os relatos (...) em intervalos regulares" (Freud, 1909, p.16). Quanto aos pais de Hans, Freud escreve: "estavam ambos entre meus mais chegados adeptos e haviam concordado em que, ao educar seu primeiro filho, não usariam de mais coerção do que a que fosse absolutamente necessária para manter um bom comportamento" (Freud, 1909, p.16). Deste modo, ficamos sabendo que os pais, adeptos da teoria freudiana, decidiram educar o filho a partir das considerações psicanalíticas.

A "relação" do pai com Hans aparece claramente mediada pela teoria psicanalítica em vários trechos dos relatórios sobre o filho que ele regularmente enviava a Freud, os quais foram publicados por este na composição de seu caso clínico. Citamos um deles a título de ilustração.

Este trecho é bastante significativo para demarcarmos onde o pai de Hans se posicionava em relação ao filho. Hans queria dormir com Mariedl, menina de 14 anos, filha do senhorio da casa da família em Gmunden, onde foram passar férias. Os pais de Hans lhe dizem que não seria possível ele ir dormir com a menina. Hans prontamente responde que iria descer e dormir com ela. A mãe lhe pergunta se ele queria realmente sair de perto dela e dormir com a menina. Ele responde que no outro dia subiria "para tomar café e fazer cocô" (Freud, 1909, p.27). Ao que a mãe retruca: "Está bem, se você quer mesmo deixar o papai e a mamãe, vá então pegar seu casaco e suas calças e ... adeus!" (Freud, 1909, p.27). Hans assim faz, mas os pais o reconduziram para junto deles. Segue-se então, no texto, um parágrafo que se refere a uma explicação psicanalítica das relações eróticas de Hans com seus pais. Em nota de rodapé, o editor diz que não se sabia ao certo se este trecho havia sido escrito por Freud ou pelo pai de Hans, mas que deduziram que deveria tê-lo sido por Freud já que havia referências "aos pais de Hans na terceira pessoa" (Freud, 1909, p.27 – nota 1). Freud, porém, "ao ser indagado, respondeu explicitamente que o parágrafo procedia do pai de Hans" (Freud, 1909, p.27 – nota 1). Parece-nos que esta confusão dos tradutores em relação à autoria do parágrafo é indicativa da própria confusão do pai acerca de seu lugar em relação ao filho: seria ele pai (refere-se aos pais de Hans na terceira pessoa), analista ou mero observador científico dos comportamentos do menino? E mais: nesta situação, quem é Hans para o pai: filho ou uma ilustração da teoria psicanalítica?

Quando Hans apresenta sua fobia, que aparece inicialmente sob a forma de medo "que um cavalo vá mordê-lo na rua" (Freud, 1909, p.33), o pai tampouco consegue encontrar seu lugar. Diz que o filho apresenta um distúrbio nervoso e lamenta o fato de que ele e sua mulher não têm "sido capazes de encontrar meio algum de corrigi-lo" (Freud, 1909, p.33). A seguir passa tecer hipóteses psicanalíticas para explicar o sintoma do filho: a ternura da mãe favoreceu a eclosão da fobia porque Hans teve uma sobrecarga de excitação sexual, etc..

A respeito desta tal ternura excessiva o pai nos dá várias indicações. Examinemos um destes relatos do pai sobre Hans: "à noite, deitado na cama, ele ficava habitualmente muito sentimental. Certa vez, fez uma observação, algo como ‘imagine se eu não tivesse uma mamãe’ ou ‘imagine se você fosse embora’; não posso lembrar-me com precisão das palavras. Infelizmente, sempre que ele mergulhava em um sentimentalismo desses, sua mãe costumava levá-lo para a cama com ela" (Freud, 1909, p.34). Aqui o pai lamenta a atitude da esposa, mas podemos perguntar: onde estava ele no momento em que ocorre este idílio entre a mãe e seu filho, onde transborda o que o próprio pai chamou de ternura e que na realidade é pura sedução mútua? Ele estava observando, anotando o romance de seu filho com a mãe. Enquanto ele registrava tudo, o filho afundava-se nas águas sombrias do Desejo do Outro, siderado pelo modo sedutor com que a mãe respondia às suas seduções. A única chance do menino é construir o sintoma fóbico para colocar o pai em seu lugar: aquele que serve de anteparo ao Desejo do Outro. Sabemos que Freud, em sua análise, remonta a fobia de cavalos de Hans a sua relação com o pai na conjuntura edípica, ou seja, Hans precisa "amedrontar-se com o pai, para valorizá-lo" (Calligaris, 1986, p.30). Assim, o mecanismo de produção do sintoma fóbico e de seu correlativo objeto consiste em uma inflação imaginária do pai para que este possa fazer frente à Demanda do Outro, para que possa operar a partir de seu lugar na configuração edípica. A relação entre o objeto fóbico e o lugar do Pai, enquanto simbólico, no Édipo é destacada por Lacan quando diz: "estes objetos têm, com efeito, uma função bem especial, que é suprir o significante do pai simbólico" (Lacan, 1956-1957, p.234), ou seja, o Nome-do-Pai. Ocorre que esta suplência é conseguida através da articulação entre os registros do imaginário e do simbólico, pois como dizíamos acima há inflação imaginária do pai para suprir o Nome-do-Pai, significante que o fóbico sente ser inconsistente, insuficiente para barrar a Demanda do Outro. Assim, na fobia de Hans, o cavalo é o objeto em torno do qual se produz uma reorganização de sua realidade psíquica, ao preço do sintoma, ao servir de anteparo à Demanda objetalizante do Outro. No caso de Hans, podemos notar claramente que o pai está impedido, ao menos parcialmente, de operar enquanto tal, ou seja, de fazer valer sua palavra, devido a sua autodemissão do ato educativo: ao se endereçar ao filho a partir da psicanálise, deixa-o entregue à Demanda do Outro. A fobia o defende de se apagar enquanto sujeito e perder-se como objeto nesta Demanda.

A idéia de que o cavalo, significante fóbico, é uma inflação imaginária do pai para que este possa fazer frente à Demanda objetalizante do Outro, aparece claramente quando Freud diz, sobre Hans, que "seu medo de cavalos foi-se transmudando gradativamente em uma compulsão para olhá-los" (Freud, 1909, p.39), sobre o que Hans dizia: "tenho que olhar para os cavalos, e aí fico com medo" (Freud, 1909, p.39). Por que Hans precisava se amedrontar com os cavalos? Por que o Pai não conseguia defendê-lo da Demanda do Outro? Será necessário recolher no texto freudiano algumas balizas para respondermos esta questão.

Outra enunciação de fantasia por parte de Hans nos aponta o efeito pacificador que poderia produzir nele a interdição que deveria ser posta em ato pelo pai. O conteúdo da fantasia nos mostra que Hans pede, já que é o "autor" da fantasia, que o pai interdite a relação incestuosa entre a mãe e ele. Conta para o pai: "De noite havia uma girafa grande no quarto, e uma outra, toda amarrotada; e a grande gritou porque eu levei a amarrotada para longe dela. Aí, ela parou de gritar; então eu me sentei em cima da amarrotada" (Freud, 1909, p.47). Quando o pai lhe pergunta se ele havia ficado com medo, Hans responde: "não. É claro que não!" (Freud, 1909, p.47). Na seqüência das respostas às indagações do pai, o menino esclarece que pegou a girafa amarrotada com a mão e sentou em cima dela quando a girafa grande já se havia afastado. Diz também que a girafa grande estava gritando porque ele estava levando a girafa pequena para longe. A articulação desta fantasia com a relação de Hans com a mãe mostra-se na seqüência do diálogo quando o menino pede para o pai, que durante a conversa com o filho escrevia o diálogo para mostrar a Freud (a psicanálise está o tempo todo entre pai e filho), para escrever também que "a mamãe tirou a camisa" (Freud, 1909, p.48). Esta é uma referência a uma fantasia em que aparece a conexão entre a masturbação da criança e o acesso visual ao corpo da mãe. Por fim, o próprio pai interpreta a fantasia do filho e Freud a ratifica: a girafa grande representaria o pai e a pequena, amarrotada, a mãe. Supõe que a palavra "amarrotada" se refere aos genitais da mãe. Acrescenta que esta fantasia do filho tem relações com o que acontece pela manhã quando Hans entra no quarto dos pais e a mãe o leva para a cama. Diz o pai: "em resposta a esse procedimento, invariavelmente passo a admoestá-la para não levá-lo consigo para a cama (‘a girafa grande gritava por que eu tirei a amarrotada de perto dela’); e ela responde, às vezes sem dúvida com certa irritação, que tudo é uma bobagem, que afinal um minuto não conta, e assim por diante. Desse modo, Hans fica com ela por um instante. (‘Aí a girafa grande parou de gritar; e então eu sentei em cima da amarrotada’)" (Freud, 1909, p.49). Freud diz que a esta interpretação do pai só teria que acrescentar que estava em jogo na fantasia um desafio em relação ao pai e a satisfação de triunfar sobre este. Como se Hans dissesse: "grite quanto quiser! Não adianta, porque a mamãe me leva para cama, e a mamãe é minha" (Freud, 1909, pp.49/50).

Vejamos: podemos pensar que através deste desafio feito ao pai, Hans constata a impotência deste em fazer sua palavra valer em relação à mãe. O pai a admoesta para não levar o filho para a cama, mas suas palavras são em vão: não fazem Lei para a mãe, não são suficientes para barrar a cena de sedução materno-filial que se desenrola diante de seus olhos ... e o pai observa, anota e informa Freud. Podemos pensar que suas palavras são insuficientes para fazer Lei para a mãe porque são endereçadas a ela a partir do lugar fornecido pela teoria psicanalítica e suas formulações sobre o complexo de Édipo. O pai não fala em nome próprio, mas em nome da psicanálise. Seu desejo de homem junto a sua mulher não é colocado em jogo, a interdição do romance entre mãe e filho só poderia operar se fosse formulada a partir do desejo. Hans sabe da impotência do pai em dominar a Demanda da mãe, em servir de anteparo para que esta não o reduza a um objeto. Diante da constatação desta impotência, Hans promove uma inflação imaginária do pai, amedronta-se com os cavalos, que são um deslocamento deste a fim de, como aponta Calligaris (1986), valorizá-lo. Amedrontar-se com os cavalos é imperioso para Hans que passa a ter que olhá-los para sentir medo: o medo o defende da angústia suscitada pelo confronto com a Demanda do Outro que poderia fantasmaticamente destituí-lo de sua posição de sujeito, reduzindo-o a um objeto com o qual gozar. Lacan observa que Freud "sublinha desde o começo da observação que convém separar corretamente a angústia da fobia. Se existem aí duas coisas que se sucedem, não é sem razão: uma vem em socorro da outra, o objeto fóbico vem preencher sua função sobre o fundo da angústia" (Lacan, 1956-1957, p.211). Assim, a angústia é primária e se refere ao confronto com a Demanda do Outro que aponta para a redução do sujeito a um objeto de gozo do Outro. O objeto fóbico aparece na seqüência e sua função é clara: é o pára-gozo do Outro, um ponto-de-basta suplementar ao pai simbólico.

No caso de Hans, o pai não conseguia se colocar enquanto tal na medida em que demandava do filho que viesse ilustrar a teoria psicanalítica sobre a sexualidade infantil. Ao invés de promover um aplacamento da angústia servindo simbolicamente de anteparo frente à Demanda do Outro, o pai se punha a demandar do filho que se tornasse um objeto exemplar da teoria freudiana.

Assim, na medida em que o pai de Hans procurava ilustrar com o menino a teoria freudiana acerca da sexualidade infantil, acabava por elidir uma dimensão fundamental da ética que deveria permear a educação de crianças: impedia-se de questionar sobre o desejo que anima o próprio ato educativo. Portanto, a educação de Hans ocorre em nome da moral, na medida em que o menino era chamado a encarnar o ideal da teoria psicanalítica. Hans responde a isto com seu sintoma.

 

Referências bibliográficas

CALLIGARIS, C. (1986). A Questão do Fantasma na Clínica Psicanalítica. Salvador: Cooperativa Cultural Jacques Lacan.

FREUD, S. (1909). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, trad.) (Vol. 10, pp. 11-154). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1990.

LACAN, J. (1956-57). O Seminário – Livro 4: a relação de objeto. (D. D. Estrada, trad.) Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor, 1995.