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On-line ISBN 85-86736-12-0

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2002

 

Grupo bad boy: como a escola pode criar espaços de exclusão

 

Group "bad boy": how school can generate an exclusion spot

 

 

Cristina Leles Silva

Psicóloga do CAPS da infância e da adolescência da Prefeitura Municipal de Uberlândia, MG.

 

 


RESUMO

Este trabalho pretende discutir como a própria escola pode, em alguns momentos, tornar-se um espaço em que se forja a exclusão de grupos.

Palavras-chave: escola; exclusão; psicanálise.


ABSTRACT

The purpose of the present essay is to discuss how school can, in some cases, become an environment which generates group exclusion.

Key–words : school; exclusion; psychoanalysis


 

 

Uma escola pública de ensino fundamental, do município de Uberlândia (MG), solicitou-nos, enquanto psicólogos, para lidar com uma sala descrita como problemática, ou, nas palavras dos professores, a sala mais "difícil" da escola. A queixa era a de que os alunos desta sala não se interessavam pela aprendizagem, visto que todos eram repetentes e que principalmente eram agressivos e violentos. Estrategicamente, esta escola resolveu colocar todos estes alunos, uns 14, numa única sala, o que contribuiu para a criação da "4ª série difícil". Os profissionais da escola diziam que "ninguém dava conta desta sala", a qual já havia trocado três vezes de professor só naquele ano letivo, contavam as proezas dos alunos e sempre apontavam os piores. Durante o trabalho que realizamos nesta escola, um fato, que será nosso objeto de discussão, chamou-nos a atenção: os alunos da referida "sala difícil" desenhavam constantemente o rosto de um garoto de uma marca conhecida como Bad Boy, o símbolo era colocado em tudo que faziam: nos cadernos, nas carteiras, nas folhas que lhes eram entregues para desenhar, etc. Diante deste fato, podemos pensar como a escola oferece um único lugar a estes alunos: o lugar de garotos maus e eles respondem a isso, seja partindo para ações ou simplesmente valendo-se do símbolo para marcar tal lugar.

Assim, a discussão deste trabalho será norteada tanto a partir de uma análise da escola enquanto lugar que cria e sustenta esta identidade grupal alienada quanto pela atitude dos alunos de, em vários momentos, responderem à demanda de exclusão desta escola, constituindo-se enquanto sujeitos à margem do processo de escolarização.

Não dispomos de dados a respeito de como estes alunos foram colocados nesta sala, mas o que podemos apontar como denominador comum no discurso da "escola" em relação a esta turma é a referência constante aos supostos lares desestruturados destes alunos: ora apontam a falta de participação dos pais na vida escolar dos filhos, ora ressaltam que estes meninos têm uma família extremamente agressiva e violenta, visto que a escola encontra-se num bairro em que são freqüentes as ocorrências de crimes ligados ao narcotráfico. Uma das professoras referindo-se a um aluno como "perdido", ou seja, sem chances de participar do processo de escolarização, explica: "também, o pai é presidiário, até já matou"; o que converge para a extrema falta de reconhecimento de qualquer ação do menino que esteja fora da visão estereotipada que se tem dele, como quando num dos grupos operativos este garoto faz uma pintura utilizando várias cores e a psicóloga comenta que ele fez uma pintura abstrata, ao encontrar a professora no corredor ele mostra a pintura e pergunta a ela o que é abstrata, a professora nem olha a gravura e diz: "é coisa que ninguém entende". Neste exemplo, podemos perceber como a professora, aqui representante de toda uma estrutura institucional, não pode reconhecer marcas de um sujeito diferente daquele que ela concebe o garoto: como menino mau, diante disto parece que não resta a ele outra coisa senão continuar desenhando Bad Boys e agindo como tal.

Podemos notar então que a escola coloca estes alunos tanto num espaço físico que os caracteriza como os ruins, ou seja, numa única sala, como principalmente lhes dá um lugar discursivo de exclusão, sendo que todas as justificativas a respeito do fracasso escolar dessas crianças são localizadas nelas próprias, seja porque, no discurso da escola, não estão interessadas em aprender, ou porque elas vêm de lares desestruturados demais que lhes selariam um destino incorrigível, já que como afirmou uma professora: "educação vem de berço, se eles não foram educados em casa não é aqui que vão ser".

A respeito da instituição escolar podemos nos reportar a Foucault (2002) que aponta como as instituições da sociedade moderna, seja a prisão, o hospital psiquiátrico ou a escola, obedecem aos mesmos princípios de funcionamento. Embora temos a noção de que cada escola tem sua singularidade (Machado & Souza, 1997), estes princípios enunciados por Foucault podem ser constados no exemplo que nos propomos a examinar. O autor aponta que estes princípios de funcionamento se baseiam num tipo de poder característico de nossa sociedade o qual ele denomina como panoptismo. Nas palavras do próprio autor: "no panoptismo passa-se a ter a vigilância permanente sobre os indivíduos por alguém que exerce sobre eles um poder – mestre-escola, chefe de oficina, médico, psiquiatra, diretor de prisão – e que, enquanto exerce este poder, tem a possibilidade tanto de vigiar quanto de constituir, sobre aqueles que vigia, a respeito deles um saber. Um saber que tem agora por característica não mais determinar se alguma coisa se passou ou não, mas de determinar se um indivíduo se conduz ou não como deve, conforme ou não a regra, se progride ou não, etc. Esse novo saber não se organiza mais em torno das questões ‘isto foi feito? Quem o fez?’; não se ordena em termos de presença ou ausência, de existência ou não existência. Ele se ordena em torno da norma, em termos do que é normal ou não, correto ou não, do que se deve ou não fazer" (Foucault, 2002, p.88). Ou seja, no panoptismo a vigilância sobre os indivíduos se exerce ao nível não do que se fez, mas do que se é, não do que se faz, mas do que se pode fazer. Quando nos reportamos a esta sala de 4ª série podemos perceber a marca deste tipo de poder exercido pela instituição escolar que agrupa os alunos não pelo que fazem ou deixam de fazer, mas antes, pelo que supostamente são e, principalmente, pelo que podem vir a ser. Este procedimento institucional fixa-os numa condição de serem desvios do padrão do bom aluno e boa pessoa.

O surgimento da instituição escolar moderna é ainda tratado por Ariès (1978), que aponta que esta instituição é baseada num novo sentimento ou idéia de infância diferente de como esta era representada nas sociedades medievais. De forma breve, pode-se dizer que na Idade Média não se tinha a escola como um lugar específico para a infância, o ensino era destinado a todos aqueles que se interessassem e não havia nem a hierarquia de classes que encontramos hoje e nem a correspondência entre classe e idade. Assim, numa mesma classe, poder-se-ia encontrar alunos de várias idades, desde crianças até adultos. Nas palavras do autor, "a escola medieval não era destinada à criança, era uma espécie de escola técnica destinada à instrução dos clérigos, jovens ou velhos" (p.187). E, por outro lado, o mestre destas escolas não se interessava pelo comportamento de seus alunos fora da sala de aula. Segundo Ariès, a idéia de uma escola voltada para a preparação e formação da criança para a vida adulta é uma criação da sociedade moderna na qual o mestre teria a responsabilidade moral sobre seus alunos, esta ‘nova’ escola introduz ainda uma nova regra de disciplina, o que "completou a evolução que conduziu, da escola medieval, simples sala de aula, ao colégio moderno, instituição complexa, não apenas de ensino, mas de vigilância e enquadramento da juventude" (Ariès, 1978, p.170).

A instituição escolar moderna não se encarrega somente de agrupar os alunos em classes pela idade, mas também destina ensinos diferenciados à camada burguesa e às classes populares da sociedade. A escola única, do Antigo Regime, "foi substituída por um sistema de ensino duplo, em que cada ramo correspondia não a uma idade, mas a uma condição social: o liceu ou o colégio para os burgueses (ensino longo e clássico) e a escola para o povo (um ensino inferior e exclusivamente prático)" (p.192), marcando as diferença do tratamento escolar destinado à criança burguesa e à criança do povo, o que podemos notar claramente em nossas escolas atuais que, apesar do slogan "escola para todos", marginaliza as crianças que seriam supostamente inaptas para a aprendizagem, porque são provenientes de meios pobres, delinqüentes ou desinteressados e, portanto, inadequados ao ideal que se tem do bom aluno e de sua família.

Desta forma, podemos pensar que a criança entra na escola pois este é o lugar que a sociedade moderna dá à infância, sendo que a própria lei assegura a obrigatoriedade da escola a todas elas, e estas crianças passarão ao grupo de alunos, enquadradas neste último pela própria instituição que irá ainda agrupar esta ou aquela criança em subdivisões do grupo de alunos, surge assim os grupos daqueles que não aprendem oposto àqueles que obterão sucesso na carreira escolar e vários outros. Neste caso podemos perceber que a escola constitui o grupo de maus alunos e conseqüentemente de maus garotos.

Podemos notar ainda em nossas escolas não só o agrupamento em classes pela idade, mas também pelas supostas aptidões para a aprendizagem. Ao utilizar a estratégia de homogeneização de classes, ou seja, ao remanejar os alunos a uma determinada classe em função de características que supostamente lhes são comuns, a escola produz a rotulação e estigmatização dos alunos, conferindo-lhes, como ressalta Machado e Souza (1997), lugares e produções de subjetividade. Segundo Patto (1999), "os remanejamentos fazem parte de um conjunto de práticas e processos escolares que têm como denominador comum a desconsideração pelas crianças enquanto seres dotados de desejos e sentimentos, ou seja, sua coisificação" (p.262).

Lajonquière (1999) utiliza o termo recusa do desejo por parte do mestre, o que significa que o adulto na posição de mestre e daquele que "sabe" sobre seu aluno, muitas vezes, não "reconhece" a marca neste de um sujeito do desejo. O que ocorre é que o professor ou a escola demanda que seus alunos se entreguem e se coloquem no lugar que lhes é dado, a demanda é formulada nos seguintes termos: "façam o que eu espero que vocês façam", ou ainda, "sejam o que eu quero que vocês sejam". Assim, o bom aluno será aquele que atender, com todo seu ser, aos caprichos de seu mestre, será objeto da demanda e não sujeito do próprio desejo.

Lajonquière ressalta o fracasso que pode assumir este tipo de empreendimento educativo na medida em que o aprendiz é colocado na posição de objeto de um saber, o qual, na maioria das vezes, é construído a priori e aponta para um destino do aprendiz, a partir das supostas capacidades naturais que ele possuiria. O autor caracteriza ainda o discurso que permeia o cotidiano escolar como um ideário ilusório que se relaciona com a criança a partir do ideal que esta deveria encarnar. Nas palavras do autor, "a ilusão da criança-esperança é uma invenção sintomática do homem moderno, então, não é casual que a pedagogia tenha passado a se articular em torno a uma tão nova como louca exigência, qual seja, demandar à criança que venha de fato a concretizar um ideal, sem resto nenhum, de completude e bem-estar existencial" (Lajonquière, 1999, p.97).

Sabemos que todo ideal se torna impossível de ser realizado, entretanto este ideal é extremamente recorrente no cotidiano escolar. A saída que esta escola que examinamos parece encontrar para lidar com o mal-estar de não conseguir atingir o ideário educativo que a permeia, é localizar o fracasso num grupo de alunos. Podemos pensar que a demanda da escola em relação a seus alunos é ambígua no sentido de que, ao pedir que estes se conformem à imagem do aluno ideal e ao encontrar a impossibilidade estrutural disto acontecer, formulam outro tipo de demanda para um grupo específico de alunos: "representem e encarnem o que não dá certo, sejam o problema", já que para os educadores se torna extremamente difícil refletir sobre as causas do fracasso escolar, sem buscar ao máximo se distanciar do problema e sem localizá-las nos próprios alunos, isentando-se de qualquer responsabilidade educativa.

A partir disso podemos pensar a demanda desta escola em relação a este grupo como uma demanda de exclusão do processo de escolarização. Assim parece que as duas únicas formas que estes alunos encontraram de responder a essa demanda são: no Real, ou seja, no próprio agir que cotidianamente está ligado a situações de violência, ou no Simbólico, representando com o símbolo Bad Boy o lugar de marginais que lhes é dado, o que parece uma saída bastante astuciosa destes meninos, mas nem de longe percebida pela escola.

Esta não dá possibilidade de escolha a estas crianças, não está no campo da lei, mas no campo da regra. Parafraseando Lajonquière, "a lei proíbe e abre um leque de possíveis outros. Entretanto a regra prescreve categoricamente a prática de atos concretos" (1999, p.76). A lei seria então formulada e caberia ao indivíduo se situar frente a esta, o que lhe dá a possibilidade de escolha, já a regra obriga-o a agir conforme ao que foi pedido, dentro de um regulamento moral que vislumbra o indivíduo ideal. Se por ventura, o aluno não corresponde à regra que dita o que é ideal então é excluído da possibilidade de participar do ideário da escola e, por conseguinte do próprio processo de escolarização.

Como tais crianças que foram reunidas por serem "garotos maus" poderiam se livrar de tal estigmatização dada pela própria escola? Como poderiam deixar de responder a partir do próprio lugar em que a escola os colocou? São com estas questões que ficamos.

 

Referências Bibliográficas

Ariès, P. (1978). A História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro, RJ: LTC.

Foucault, M. (2002). A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro, RJ: Nau Editora.

Lajonquière, L. (1999). Infância e ilusão (psico)pedagógica: escritos de psicanálise e educação. Petrópolis, RJ: Vozes.

Machado, A. M; Souza, M.P.R. (1997). As crianças excluídas da escola: um alerta para a Psicologia. In: A. M. Machado & M.P.R. Souza. (orgs.). Psicologia Escolar: em busca de novos rumos. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.

Patto, M.H.S. (1999). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.