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ISBN 85-86736-12-0 versão on-line

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Out. 2002

 

O que a adolescência pode ensinar ao psicanalista e ao educador?

 

What the adolescence can teach to the psychoanalyst and to the educator?

 

 

Gislene Jardim

Psicanalista, doutoranda no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, membro do Departamento de Saúde Mental da Sociedade de Pediatria de São Paulo.

 

 


RESUMO

A adolescência como momento lógico da constituição subjetiva nos informa que o sujeito encontra-se entre o circuito pulsional e o circuito social. Neste trabalho pretende-se abordar as questões colocadas pelos adolescentes à Psicanálise e à Educação.

Palavras-chave: Adolescência / Psicanálise / Educação


ABSTRACT

The adolescence as logical moment of the subjective constitution tell us that the subject situates between the pulsional circuit and the social circuit. In this work it is intended to approach the questions placed for the adolescents to the Psychoanalysis and the Education.

Word-key: Adolescence / Psychoanalysis / Education


 

 

No campo da Psicanálise, o discurso das histéricas ensinou a Freud alguns conceitos fundamentais, entre estes, o de inconsciente, o de transferência, o de repetição e o conceito de pulsão. Já a estrutura discursiva dos psicóticos ensinou a Lacan que nas psicoses há a prevalência do real sobre o simbólico e o imaginário e a clínica psicanalítica com crianças ensinou aos psicanalistas que frente ao desejo e ao gozo há um só sujeito. Nos dias de hoje, o que aprender com os adolescentes?

Jogando com as palavras, podemos intercambiar os três elementos contidos no título e formular questões semelhantes a esta, como por exemplo, "o que a Psicanálise pode ensinar ao adolescente e ao educador?", ou então, "o que a Educação pode ensinar ao adolescente e ao psicanalista?". O verbo ‘ensinar’, com o poder de um significante, faz a junção entre os elementos e nos revela algo: revela-nos que diante de um adolescente, tanto um psicanalista quanto um educador depara-se com indagações que o remete à fundação do seu próprio saber. Isto porque a Educação e a Psicanálise tiveram suas principais premissas construídas em torno da noção de infância tendo como cenário os séculos XVIII e XIX; somente em fins do século XX e início do XXI é que testemunhamos a construção de saberes sobre a adolescência. Contemporaneamente acompanhamos diversos campos do saber produzindo discursos e revelando formas de ação frente aos adolescentes; incluímos aí a Sociologia, a Antropologia, a Medicina, o Direito, a Educação, a Psicologia e a Psicanálise. Parece importante ressaltar que, ao mesmo tempo em que definem a adolescência dentro de uma certa especificidade, tais discursos a tomam como um efeito da cultura no sujeito. A adolescência é, hoje, uma condição reconhecida no campo social.

Neste trabalho proponho abordar a adolescência no enlaçamento do discurso social com a constituição do sujeito. A partir da escuta psicanalítica de adolescentes pretendo ensaiar um saber sobre a adolescência e apontar alguns efeitos sobre a Educação. Proponho, então, três eixos para esta apresentação:

  1. A adolescência como uma exigência da cultura para o sujeito.
  2. Alguns eixos para uma abordagem psicanalítica da adolescência.
  3. A adolescência e seus efeitos na Educação.

 

A adolescência como uma exigência da cultura para o sujeito.

Historicamente encontramos uma valorização da idade adulta, como se somente neste tempo se pudesse gozar verdadeiramente a vida. A descoberta da criança como um ser pensante, em desenvolvimento e com suas particularidades surge no século XVIII, juntamente com a proposição de uma Educação que pudesse melhor formar um adulto. A adolescência como um momento da vida do sujeito, - um sujeito que não é mais uma criança e nem é, ainda, um adulto -, toma sua importância como um ideal tanto para a criança quanto para o adulto em meados do século XX: encontramos crianças exercitando sua "adultez" em modelos ousados de roupas, principalmente nas meninas, ao mesmo tempo em que nos deparamos com adultos, já depois dos sessenta ou setenta anos bem vividos, na mesma ânsia de parecer-se jovem, através das mais variadas técnicas de rejuvenescimento. Crianças e velhos buscando o mesmo: uma imagem de adolescente. Mas o que pode ser tão sedutor na adolescência, senão o tempo alargado da espera do vir a ser adulto, no sentido das responsabilidades pelos atos e pelas palavras?

Durante décadas a adolescência foi vista como uma extensão da infância. A rebeldia dirigida aos pais, rebeldia ora latente, ora explícita, era um bom indicador de que uma criança "acedia" à adolescência.

Transformações substanciais em torno da família nuclear, - também este um fato histórico -, parecem ter abalado o lugar da criança e do adulto e, como conseqüência, modificado a relação entre eles. Acompanhamos uma nova organização social que inclui a família não nuclear, os casamentos homossexuais, a multiplicação das tendências religiosas, bem como as novas relações de trabalho. Toma grande importância nesta nova ordem mundial a veiculação das informações via internet como efeito de um mundo globalizado, mundo no qual os lugares dos interlocutores são virtuais.

A juventude, como grande receptáculo da modernização, torna-se porta-voz de todas estas mudanças. Ao mesmo tempo em que é ator das transformações, experimentando e atuando o que reconhece no discurso social como algo dirigido a ele, o jovem torna-se presa fácil do imaginário social que pressupõe igualdade e liberdade. No entanto, as atuações dos adolescentes revelam aos adultos a fragilidade da promessa de que a saída da infância garante um lugar social reconhecido pelo adulto. Muitas vezes, sem o saber, o adolescente questiona as regras da família, as regras da escola, as regras da sociedade. Um olhar mais atento dos adultos diante de um adolescente pode ver muito mais que uma contestação imaginária; pode ver que a saída da infância feliz, sabida no depois, coloca o sujeito em um tempo de espera, em um tempo de um duro trabalho psíquico na busca de um novo lugar discursivo.

O que a Psicanálise pode aprender, então, com os adolescentes?

 

Alguns eixos para uma abordagem psicanalítica da adolescência

Nos meios psicanalíticos é comum encontrarmos definições que consideram o momento da adolescência como um momento lógico na constituição do sujeito. O sujeito passa por um tempo de uma segunda identificação, uma identificação em que a causa é a relação com o outro semelhante, com o outro da mesma geração. Como se dá a passagem da infância para a adolescência no que tange à identificação?

Consideremos o corpo próprio como um território de surgimento de interrogações para o sujeito. O aparecimento da pilosidade e dos caracteres sexuais secundários na menina e o agravamento da voz no menino, por exemplo, são fenômenos pubertários, se assim podemos dizer, que independem de um desejo específico de amadurecer, mas, se ali estão, interrogam a criança. Podemos supor que os processos pubertários são os desencadeadores de um segundo tempo para a identificação com o Outro. Se na infância alguma direção ao desejo e ao gozo tinha sido possível de ser dada, agora a sexualidade perversa polimorfa, plural, não se sustenta. Neste momento, é pedido à criança, agora um adolescente no discurso social, que tome partido, que coloque seu corpo na relação com o outro a partir de uma posição feminina ou de uma posição masculina. É pedido ao adolescente que em sua representação de si mesmo conste uma tomada de posição sexual; tal pedido não é feito a uma criança. Essa "subjetividade sexualizada" pode ser cara ao sujeito adolescente na medida em que põe à prova sua relação edípica, porque, justamente, põe à prova suas identificações primárias.

A interrogação trazida pelo próprio corpo mais as inquietantes questões que partem dos semelhantes, de outros adolescentes, fazem ampliar, então, a referência do Outro parental para um Outro social, no qual está incluída uma referência às diferenças sexuais, ou se preferirmos, uma referência ao Outro sexo. Portanto, a incidência de novos questionamentos sobre o corpo próprio e suas repercussões simbólicas coloca a criança diante de um cenário novo, menos familiar, que a introduz em um jogo de novas identificações que, se bem sucedidas, a colocarão em outro lugar discursivo. Esta parece ser a operação psíquica necessária a uma criança para aceder a um lugar discursivo de adulto.

Agora, se considerarmos o tempo da infância como o tempo da ordenação das pulsões em um circuito, podemos encarar a saída da infância como um tempo em que as pulsões sofrem um abalo pela transformação das demandas dirigidas para o sujeito. Uma nova ordenação pulsional torna-se necessária levando em conta a demanda do Outro, não mais o Outro parental, como já referi, mas sim um Outro social que exige e implica o sujeito no reconhecimento de dois sexos. Esta nova lógica pede a construção de novos objetos que serão associados a novos modos de gozar. E o corpo próprio, mais uma vez, faz parte deste circuito como lugar de gozo. Um outro circuito coadjuvante, mas não menos importante que o circuito pulsional, torna-se prevalente para o sujeito que adentra nos sinuosos caminhos da adolescência: é o circuito social, que se monta na ampliação do laço social. A questão "o que fazer com o que os meus pais fizeram de mim?", pode desencadear um novo circuito para um sujeito adolescente, pois as diferentes respostas para esta questão terão pertinência não só no território familiar como também no terreno social mais amplo; é exatamente neste último que o circuito pulsional se mostrará eficaz, pois produzirá e sustentará, ou não, novos laços. A escolha profissional, por exemplo, pode ser uma resposta para esta questão, assim como a escolha sexual.

Na revisita aos traços de identificação com o Outro parental ampliado ao Outro social, o sujeito adolescente pergunta-se: o que vestir? O que comer? O que ouvir? O que falar? Com quem e com o quê identificar-me? Sabemos que as ofertas são muitas e os candidatos a ídolos também. No entanto, a excessiva oferta de figuras de identificação pode não ter efeitos de produção de significantes na subjetividade de um adolescente; daí encontrarmos tantas atuações, tantas formas sintomáticas e uma variedade de "pequenos monstros".

A escuta psicanalítica de adolescentes permite-nos distinguir a angústia do sujeito em apresentar-se e fazer parte de um grupo social qualquer, - seja de sua própria família, de onde se vê desalojado de um lugar conhecido -, seja de um grupo de amigos ou um de grupo de colegas na escola. A angústia apresenta-se de diferentes modos, mas em sua base aparece o desamparo como um traço determinante na passagem de uma posição infantil para uma posição adulta, posição em que se pretende ser senhor de seu próprio desejo e gozo. O questionamento dos potentes significantes parentais, que durante bons anos garantiram ao sujeito uma apresentação para o outro, bem como a ampliação dos significantes parentais para outros significantes da cultura provoca o desamparo no adolescente. A vivência do desamparo parece mostrar-nos o quanto é avassalador para o sujeito a saída de sua infância feliz, sabida no après-coup, no depois.

Podemos suspeitar, porém, de que um adolescente poderá manter-se em circuitos encurtados de suas possibilidades. Um curto-circuito (Jardim, 2001)1 entre o circuito pulsional e o circuito social pode representar o estado de pane do psiquismo de um adolescente que se vê perdido diante das novas demandas. Existirá sempre um caminho mais curto, menos resistente, que poderá levá-lo a enxergar-se como parte de um todo. Encontro aí uma possível explicação para a importância do laço entre iguais, do laço fraterno na adolescência: este tipo de laço pode favorecer a construção de novas formas de relação com a lei do Pai e, a partir disso, ditar novas formas de desejar, de gozar e de fazer sintomas.

A partir de pesquisas psicanalíticas (Rassial, 1999), podemos hipotetizar que o adolescente faz sintomas ao lançar-se no campo social. Se tomarmos algumas das formações psicopatológicas comuns aos adolescentes, podemos constatar que suas estruturas revelam a importância do laço fraterno: na adolescência há a prevalência do laço entre iguais, do laço entre membros de uma mesma geração e é neste tipo de laço que importantes manifestações sintomáticas se estruturam, uma vez que aí são procurados traços para identificação. Entre outros quadros, podemos citar as toxicomanias e as delinqüências como exemplos de sintomas graves surgidos na adolescência.

Rassial (1999)2 tem nos proposto considerar a adolescência como momento lógico da construção do sinthoma. Ao fabricar um sinthoma, o adolescente elabora sua passagem do pai edípico para o pai buscado no social, faz sua saída do auto-erotismo para uma posição sexuada, - ainda que a relação sexual seja uma promessa -, e tem definido um estado de estrutura que garante sua travessia pela adolescência, não a partir de um sintoma fixo, como no adulto, mas sim com contradições oscilatórias entre si, revelando a fragilidade da estrutura. Podemos cogitar que o sinthoma adolescente possa, eventualmente, vir a fazer parte da estrutura ao final da adolescência. Dizer que o sinthoma adolescente é social, sexual e define um estado de estrutura permite-nos diferenciá-lo das manifestações psicopatológicas encontradas na criança e no adulto, pois um sinthoma grave na adolescência pode questionar não só os princípios da estrutura familiar como também os princípios da sociedade. Porém, Rassial admite que muitas vezes a direção da análise de um adolescente pode ser exatamente a da construção de um sinthoma. Encontramos esses casos na clínica.

Pensemos, agora, nas conseqüências desta noção de adolescência para a Educação.

 

A adolescência e seus efeitos na Educação

À Psicanálise a questão, como compreender a adolescência e tratar os adolescentes? À Educação uma questão equivalente, como definir a adolescência e educar os adolescentes? Para Freud, ambas profissões são impossíveis em suas finalidades últimas, mas, por serem discursos constituintes da cultura moderna, se espera da Psicanálise e da Educação algum saber sobre a adolescência.

Se tomarmos a adolescência como um tempo em que o sujeito questiona a consistência do Outro, momento em que o sujeito fabrica um sinthoma na ampliação do laço social e momento em que a formação grupal torna-se fundamental, quais são as conseqüências disso tudo no ato de educar? O que pode a Educação aprender com os adolescentes?

Uma das questões mais preocupantes ao educador de adolescentes é a questão da indisciplina e da violência, contra si mesmo e contra o outro. Para o educador, o adolescente não respeita as regras da escola e nem reconhece o lugar do professor como aquele com o qual poderá aprender algo. Também a transmissão do conhecimento para o adolescente se mostra comprometida, pois encontramos, hoje, inúmeras formas de acesso ao conhecimento. Pergunto: haveria uma especificidade na educação de adolescentes? Qual seria a melhor posição do educador diante do adolescente? Qual seria a função da escola para o adolescente? Poderíamos pensar na "educabilidade" da criança como prevenção para o sinthoma surgido na adolescência? O ato educativo poderia ser eficaz contra a formação de grupos com objetivos de transgressão?

As perguntas são muitas e estão dirigidas aos educadores.

Penso que uma saída possível para o psicanalista e para o educador de adolescentes é "jogar o jogo" da adolescência, ou seja, é ocupar lugares diversos diante da demanda do adolescente, - lugar de adulto, de cúmplice e de mestre (Rassial, 1999)3, -, deixando, sempre, um espaço para novas demandas. Cada um ao seu modo poderá transmitir e sustentar para o adolescente a questão colocada por Freud (1913-14, p.188)4 pela pena de Goethe: "aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu".

De qualquer modo, restam a nós, psicanalistas, educadores e outros profissionais engajados nesta causa, a dos "rebeldes com causa", escutar, ler, reler, discutir, conjecturar, enfim, fazer circular saberes. Deste movimento poderão surgir respostas para o adolescente.

Por fim, ao retomar a pergunta inicial - o que a adolescência pode ensinar ao psicanalista e ao educador? – acrescento: a Adolescência são os adolescentes, a Psicanálise é feita por psicanalistas e a Educação por educadores... Acredito que destas relações poderão surgir novos paradigmas.

 

 

1 JARDIM, G.C. (2001) "Curtos-circuitos na adolescência: imperativos do laço fraterno", trabalho apresentado no Colloque Universitaire franco-bresilien ‘Modernité des liens fraternels et conjugaux: fraternité ou communitaurisme?’, realizado em Paris, 2001. Texto inédito.

2 RASSIAL, J.J. (1999) O adolescente e o psicanalista. Companhia de Freud, Rio de Janeiro, 1999.

3 RASSIAL, J.J. (1999) O adolescente e o psicanalista. Companhia de Freud, Rio de Janeiro, 1999.

4 FREUD, S. (1913-14) Totem e Tabu. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Trad. Sob a direção de Jayme Salomão. Imago, Rio de Janeiro, 1989, vol.13.