Serviços
ISBN 85-86736-12-0 versão
on-line
ISBN 85-86736-12-0 versão on-line
An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Out. 2002
A relação mãe-criança e a feminilidade: Questões para clínica psicanalítica
Mother-child and its relation with femininity.Issues for psychoanalytic clinic
Glaucineia Gomes de Lima
RESUMO
Os teóricos pós-freudianos teorizaram a maternidade como uma saída para a feminilidade. Freud entende que o desejo de um filho é caudatário da inveja de pênis na mulher e Lacan religa a maternidade e a castração.O artigo pretende analisar a relação mãe-criança na teoria psicanalítica, utiliza-se a obra de Tólstoi, Ana karerina, discutindo feminilidade e a maternidade e suas implicações para a clínica psicanalítica.
Palavras-chave: maternidade, feminilidade e psicanálise
ABSTRACT
The post-freudians theorised maternity as an objective for the feminility. Freud understands that a child’s desire is a consequence of the women’s penis envy. Lacan reconnects maternity and castration. This paper intends to analyze the relation mother-child focusing in Tólstoi’s novel, Ana Kererina, proposing a discution between femininity and maternity and its implications for the psychoanalytic clinic.
Key words: maternity, femininity and psychoanalysis
Este trabalho pretende refletir sobre o lugar que a maternidade pode ocupar para uma mulher. Discutir-se-á se o ser mãe vai responder ao enigma do feminino, qual o lugar que uma criança pode ocupar para uma mulher e as implicações de tais questões para a clínica psicanalítica com crianças.
Lacan (1969), na carta a Jenny Aubry, vai apontar que a criança tanto pode ocupar o lugar de sintoma que representa a verdade do par familiar, como pode tornar-se o objeto da fantasia materna. É importante destacar que ele se refere ao lugar de sintoma, articulando-o ao casal parental e ao lugar de objeto, em relação à fantasia materna. Ele afirma que ao ocupar o lugar de objeto, a criança satura o modo de falta da mãe.
Na leitura que Jacques-Alain Miller (1998) faz das duas notas sobre a criança de Lacan, ele afirma que a criança tanto pode preencher a falta da mãe como dividi-la. E é fundamental que a criança divida a mãe e a mulher, pois, alerta Miller, se a criança somente preenche a mãe, ela pode sucumbir como dejeto do par familiar ou ficar aprisionada como objeto do fantasma materno.
Na concepção freudiana, o desejo de ter um filho é originalmente o desejo de possuir o pênis que a mãe não deu e que a menina espera obter do pai. O bebê assume uma equivalência simbólica ao pênis que a menina descobriu não ter. Miller (op. cit.) diz que se a leitura freudiana fez uma equivalência entre o desejo de um filho e o desejo de um pênis, pode-se transcrever esta equivalência em termos de metáfora, a metáfora infantil do falo, que só é bem sucedida ao falhar, pois é preciso que a metáfora infantil não recalque, com a maternidade, o não-todo do desejo feminino. A condição deste não-todo é que a criança não seja tudo para a mãe, mas que a mãe possa encontrar o significante do seu desejo no corpo de um homem.
Marie Hèlene Brousse (1993) afirma que a maternidade não responde ao enigma do feminino. Não é possível recobrir a ordem sexual feminina pela ordem maternal, não se pode a mãe em relação à mulher. A mulher não existe, é um lugar vazio, há um significante faltoso, um continente negro, enigma que faz existir um mistério que todos clamam para ser preenchido por um semblante fálico. Acreditar que existe uma harmonia na relação mãe-criança reenvia a uma relação sexual possível, feita entre a mãe e a criança. O que existe, como afima Marie-Hèlene Brousse (op. cit.) é a diferenciação sujeito-objeto, que não é assimilável à relação mãe-bebê.
Mãe ou mulher, eis a questão
A disjunção feminilidade-maternidade é explicitada no romance Ana Karenina, de Tólstoi (1875/1877). O clássico autor russo constrói um belo romance que tem como heroína Ana Arcadievna, dama da alta sociedade de São Petersburgo, casada com o célebre Alieksei Alieksándrovitch.
Ana Karenina tem com este homem um único filho, o pequeno Sérgio, o Sierioja, como era chamado e vivendo uma vida superficial e insípida ao lado do marido, conhece o Conde Vronski, cujo prenome também é Alieksiei e vive com ele um romance, marcado pela culpa, arrependimento e muito ciúme. Desde o início, Ana vê-se dividida entre entregar-se a este romance e o amor pelo seu pequeno filho, o Sierioja.
Ao ser apresentada àquele com quem viveria um grande e ardente romance, é destacado pelo autor do romance, o lado maternal de Ana. A condessa Vrônskaia, mãe de Vronski, com quem vinha viajando no trem lado-a-lado, ao dela despedir-se, adverte-a: "Não pense tanto no seu filho, é bom separar-se dele, de vez em quando." (Tólstoi, 1875-77, p. 68). E afirma para Vronski: "Ana Arcádievna tem um filho de 8 anos, de quem nunca se separou, e está saudosíssima por ter sido obrigada a deixá-lo em São Petesburgo". (op. cit. p. 68).
Logo após sentir o despertar da sua paixão proibida, ela se refugia na segurança do laço que a une ao seu filho: "Graças a Deus, amanhã verei o meu Serioja e Alieksei Alieksandrovitch e retomarei a minha vida agradável". (Tólstoi, op. cit., p. 102).
Quando Ana se enamora de Vronski, imediatamente começa a diminuir o seu amor maternal. Por pensar no filho e nas suas obrigações para com ele, é que, sufocando sua paixão por seu futuro amante, reencontra seu filhinho tão desejado, e o aperta em seus braços. Mas à medida em que cresce o seu amor pelo amante, repentinamente, muda o seu amor para com o filho, tanto na realidade como em suas fantasias maternais. Tudo o que Ana experiência em sua luta entre o amor erótico e o amor maternal é típico. É incapaz de gozar satisfatoriamente estas duas emoções, pois se perturbam reciprocamente. Quanto mais se dirige ao seu filho e mais deseja sacrificar seu amor pelo bem dele, mais ardente é o seu laço com o homem que ama.
A psicanálise formula que a sexualidade humana obedece às leis do significante e que a diferença anatômica entre os sexos, tem as suas conseqüências psíquicas. Meninos e meninas tem a sua sexualidade ordenada pelo mesmo significante, o falo, que, na definição lacaniana, é o significante do desejo e inscreve a sexualidade humana no registro de uma transmissão fálica. (Brousse, op. cit.). Ao ser inscrita no registro da castração, uma mulher é uma mãe. Como diz Lacan, no Mais ainda:
"... o que se suporta sob a função do significante, de homem, e de mulher, são apenas significantes absolutamente ligados ao uso discorrente da linguagem. Se há um discurso que lhes demonstre isto, é mesmo o discurso analítico, ao por em jogo o seguinte que a mulher não será jamais tomada senão quoad matrem. A mulher só entra em função na relação sexual enquanto mãe". (1975, p. 49).
Ana Karenina, encontra-se dividida entre ser mãe e mulher, colocando ora o filho, ora o amante, como aqueles que poderiam responder ao enigma da sua feminilidade, à falta de um significante que forneça uma identificação para a mulher.
"..amo a estes dois seres, creio que amo tanto a um como a outro, a Sierioja e Alieksiei, mas a ambos mais que a mim mesma." (Tólstoi, 1875-77, p. 590).
"Só quero a estes dois seres e um exclui o outro. Não posso reuni-los e são a única coisa de que preciso. Se não os tiver a eles, o resto é-me indiferente." (Tolstói, op. cit., p. 590)
A maternidade implica na substituição da criança ao falo e a função fálica tanto pode ser saturada pelo sexo do parceiro como pelo semblante que é o objeto criança. No romance de Tólstoi, Ana Karenina, agarra-se ora ao amante ora ao filho, na tentativa de obturar o que insistia em aparecer, a sua falta-a-ser. Neste denso romance, o escritor russo trata da disjunção mãe-mulher que aponta para algo que é da ordem da estrutura, a impossibilidade de recobrimento da ordem sexual feminina pela maternidade.
Quando a criança encarna o objeto
Se a maternidade pode repousar sobre a substituição da criança ao falo, pode também dar lugar ao horror do reencontro com o real. Para Colette Soler (1995), a criança é um a real no início, na sua vinda ao mundo. Este objeto que a criança encarna só pode ser alcançado pela mãe, pois a criança, ao nascer presentifica, no real, o impossível de dizer do desejo parental em relação ao seu nascimento. Se, por um lado, a criança, ao nascer, substitui o objeto para sempre perdido, por outro, o aparecimento real de uma criança oferece à sua mãe um espelho real do objeto que a mãe foi e que é impossível de alcançar. Assim, há na mãe, um gozo a mais, que nenhum homem tem e que não é o gozo da mulher, mas o gozo da mãe.
Para Marie-Hèlene Brousse (1993), o que se costuma chamar de depressão pós-parto, tem o seu surgimento de um mais-de-gozar realizado que, no momento mesmo onde ele aparece, tampona a falta-a-ser, em plena luz do horror de um reencontro com o gozo da castração. Lacan (1969, p. 5) afirma: "A criança, na sua relação dual com a mãe, lhe dá imediatamente acessível, o que falta mesmo ao sujeito masculino: o objeto mesmo de seu fantasma, que aparece no real". O retorno no real é precisamente a causa de um gozo subordinado ao fantasma, de onde os episódios se tornam difíceis no início da maternidade.
A versão do pai
No seminário inédito RSI, Lacan (1974/1975) mostra que a mãe ocupar-se-á de seus filhos, em vez de gozar às custas deles, ao se oferecer como causa do desejo para um homem. Por não poder responder ao enigma do feminino, uma mulher pode tentar respondê-lo sendo A mãe. É a introdução da versão do pai que permitirá a limitação do gozo materno, pois a criança funciona como um condensador de gozo. É essa limitação ao gozo que assinala a transmissão da função paterna, da versão do pai, a père-version.
Lacan, neste mesmo seminário, indica que a única garantia da função paterna é de que um pai só terá direito ao amor e ao respeito, se este amor e respeito estiverem père-versamente orientados, no sentido de destiná-los a uma mulher, objeto a, que cause o seu desejo. O que faz com que ser pai e ser homem se conjuguem, pois é o desejo de um homem por uma mulher, colocada no lugar de objeto causa de desejo que vai veicular a função paterna e transmitir a castração, responsável pela constituição do sujeito desejante.
Assim, temos um homem que coloca a mulher como objeto causa de desejo e a mulher que o faz em relação à criança. A mãe, não toda fálica é também uma mulher para o pai. A mãe, dividida em que está, entre ser mãe para a criança e mulher para o homem, ilustra o que não está inscrito no simbólico: o significante d'A mulher.
Na psicose, como afirma Nominé (1997), a forclusão do nome-do-pai não assegura a função de operador lógico, que inscreve a divisão entre a mãe e a mulher. Ele nos diz que a forclusão do Nome-do-pai vai deixar o campo livre ao significante d’A mulher, deixando a criança aos cuidados de uma mãe não dividida:
"Isto quer dizer que nada faz obstáculo a que a criança faça a mãe toda, encarnando o objeto que causa o seu desejo. Ela está, então, tomada na fantasia materna onde aí joga sua parte de objeto, no mesmo título que uma mulher pode vir a se prestar para a fantasia de um parceiro masculino." (p. 21).
Segundo Marie-Jean Sauret (1997), é preciso mais que um pai e uma mãe na constituição de uma neurose. É preciso um homem e uma mulher. Sauret (1997) faz, entretanto, um alerta: não é possível predizer, tal pai, tal mãe, tal filho. A resposta do sujeito tem a ver com a insondável decisão do ser e não com os tipos psicológicos que são o seu pai e a sua mãe. Tem a ver com o tipo de Outro com o qual ele se confronta. Isto independe dos esforços pedagógicos ou da atenção dada aos filhos pelos pais.
Fazer este tipo de equação, de que determinado tipo de mãe é igual a tal tipo de filho é entender que todos os indivíduos com tal mãe sejam equivalentes entre si. Para a psicanálise, o que importa é o nome e sobrenome de cada sujeito, o mais particular dele, que é o seu gozo e de como esse gozo particular faz enigma para cada um.
Esta é uma discussão que tem repercussões para a prática clínica com crianças. Na condução de uma análise de crianças, no nosso entender, não se trata de realizar com os pais uma longa anamnese ou um exame psicológico da novela familiar. Também não é o caso de culpabilizar a mãe e o pai pela sua ineficiência como pais, mas de tentar localizar a resposta da criança ao desejo do Outro.
Na clínica com crianças, se a criança é um suposto sujeito, é importante localizar qual é a sua resposta de sujeito à verdade do casal parental e ao fantasma materno, qual é a sua versão em relação à versão de pai e mãe com as quais ela tem que se haver. Não se trata de calcular o que é uma criança a partir do que ela é para o pai ou para a mãe, interessa como a criança se situa aí, como afirma Sauret (1997, p. 94) "não importa o que o induza o pai ou a mãe, a resposta do sujeito é a resposta do sujeito."
Referências Bibliográficas
Borsoi, Paula (1995). Da mãe à mulher: questões sobre o feminino. Fort-da n. 3, Rio de Janeiro, RJ: Revinter, pp. 23-32.
Brousse, Marie-Helene (1993). Femme ou mère? La cause freudienne. Cahier n. 24. pp. 30-33.
Lacan, Jacques (1969). Duas notas sobre a criança (Ana Lydia Santiago trad.). Opção lacaniana n. 21. abr-1998, pp. 5-6.
___________ (1973). O Seminário, livro 20. Mais ainda. (M. D. Magno trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 1982.
___________ (1974/1975). RSI. Inédito.
Miller, J- A M. A criança entre a mulher e a mãe (Ana Lydia Santiago trad.). Opção lacaniana n. 21, abr.- 1998, pp. 7-12.
Nominé, Bernard (1997). O que me ensinam as crianças e seus psicanalistas. Carrossel - Centro de estudo e pesquisa de psicanálise e criança I (1), pp. 13- 25.
Soler, Colette (1995). Variáveis do fim da análise. (Angelina Harrari trad.). Campinas, SP: Papirus.
Sauret, Marie-Jean (1997). O infantil e a estrutura. São Paulo, SP: Escola Brasileira de Psicanálise:
Tólstoi, Leon (1875- 1877). Ana Karenina. (Mirtes Ugeda trad.) São Paulo, SP: Nova Cultural, Col. Obras Primas, 2002.