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On-line ISBN 85-86736-12-0

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2002

 

Uma discussão sobre o efeito provocado pela ecolalia do autista

 

A Discussion about the effect provoked by the autist´s echolalia

 

 

Glória Maria Monteiro de carvalho

Professora e pesquisadora – CNPq – do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco.

 

 


RESUMO

Os blocos verbais ecolálicos, no autismo, foram abordados a partir do efeito predominante de imobilidade provocado no investigador. Entretanto, essa imobilidade teria sido afetada por um deslocamento muito singular, no caso discutido.

Palavras-chave: Ecolalia. Efeito. Singularidade.


ABSTRACT

The verbal echolalic blocks, in autism, were focused on basis of the predominant immobility effect provoked on the investigator. Nevertheless, such immobility would be affected by a rather peculiar displacement, in the discussed case.

Key-words: Echolalia. Effect. Singularity.


 

 

Tentaremos, nestas reflexões, colocar em questão algumas verbalizações da criança diagnosticada como autista, a partir da abordagem do efeito que tais verbalizações provocam no sujeito que as escuta, especificamente, no investigador.

Vale destacar que o termo efeito está sendo, aqui, usado, tomando por base o sentido atribuído por Milner (1997), quando discute o efeito de prazer. De acordo com essa discussão, o efeito se inscreve no alfabeto dos lugares do corpo, isto é, inscreve-se na linguagem a qual supõe o corpo e é por esse suposta. Entretanto, um tal efeito, para ser provocado, requer uma física de qualidades materiais da coisa (na qual se inclui um outro corpo), qualidades essas que são também atravessadas pela linguagem. Nesse sentido, de um modo geral, o efeito seria uma modificação provocada no corpo do sujeito por uma qualidade da coisa, supondo-se o corpo e a qualidade da coisa como sendo constituídos pela linguagem.

Por sua vez, na concepção aqui assumida, o investigador se constituiria através de uma posição a ser ocupada pelo sujeito, diante de um determinado fenômeno, ou melhor, diante de verbalizações do autista, no nosso caso específico. Explicando melhor, uma tal posição seria formada pelos momentos em que a escuta de um sujeito se detivesse sobre o referido fenômeno o qual seria, portanto, objeto de suas reflexões, numa tentativa de propor, quer uma maneira de abordá-lo teoricamente, quer uma maneira de tirar alguma conseqüência dessa abordagem no tocante a uma intervenção.

A partir dessa referência conceitual, abordaremos as manifestações verbais ecolálicas, ou seja, aquelas verbalizações que levaram Kanner (1943) – numa perspectiva diferente – a afirmar que o autista, de forma imediata ou diferida, reproduz, como um papagaio, tudo aquilo que lhe era dito.

Convém realçar que autores, como Jeruzalinsky (1996) e Rodriguez (1999), assumindo o quadro teórico lacaniano, propõem que manifestações sintomatológicas do autismo – inclusive a ecolalia – se caracterizariam por permanecerem fora da língua, isto é, essas manifestações estariam indicando uma posição subjetiva de exclusão. No entanto, as propostas negativas (ou de exclusão), nesse quadro, supõem a proposta positiva de que o referido permanecer fora não implicaria uma ausência da língua, no autismo, mas sim, estaria significando uma determinada posição ocupada diante da língua.

Assim, de uma tal proposta, infere-se que ninguém poderia escapar aos efeitos determinantes da relação com a língua, por mais singular que fosse essa relação, ou seja, por mais singulares/estranhas que fossem suas manifestações verbais, mesmo que se tratasse de uma (aparente) ausência de tais manifestações.

Por sua vez, como conseqüência, pode-se também dizer que, ao falar com/sobre o autista, o sujeito que fala (mãe, pai, clínico, educador, investigador, etc.) somente poderia fazê-lo, a partir de sua própria relação com a língua. Desse modo, em conformidade com tal postura, vamos falar (na posição de investigador) sobre o autismo, numa estrutura em que comparecem três pólos – a nossa fala, o sintoma (no caso, a ecolalia), e a língua – numa relação indissociável, singular e sujeita a deslocamentos. Tomamos, como ponto de referência, a concepção de mudanças estruturais – elaborada por De Lemos, no campo da aquisição de linguagem – segundo a qual a trajetória lingüística do sujeito consiste em deslocamentos que ocorrem nas relações entre a fala da criança, a fala do outro (a mãe) e a língua (para um aprofundamento sobre essa abordagem, ver, por exemplo, De Lemos, 2000, 2001).

No tocante à questão do autismo, segundo a proposta do presente trabalho, o investigador seria colocado numa determinada posição estrutural, por um efeito provocado pela ecolalia, efeito esse a que vários autores chamam de exclusão, conforme já foi dito antes.

Dessa exclusão, o clínico (nas mais diferentes linhas de intervenção) oferece testemunhos de uma experiência de recusa, de afastamento acompanhada de angústia, experiência que seria provocada pelo contato com as diversas montagens defensivas do paciente diagnosticado como portador de autismo. A esse respeito, Atem (1998) afirma:

"Em se tratando do autismo, uma questão se coloca em relação à recusa ao outro (...) quando nos deparamos com uma constante recusa ao olhar, ao contato, à linguagem e à proximidade de alguém. Ao trabalhar com M. vi-me colocada diante dessa recusa de tal forma, que mal podia formular a pergunta com relação ao sujeito de maneira coesa, tal era a força que sentia a repelir-me, afastar-me, manter-me à distância.." (p. 79).

Focalizando, portanto, esse efeito de exclusão, vamos nos confrontar, ao longo destas reflexões, com alguns recortes de sessões de terapia em grupo do qual participam cinco adolescentes, com idade média de 13 anos – diagnosticados como portadores de autismo – e três terapeutas, numa Instituição da cidade de Recife especializada no tratamento de crianças autistas. Tais sessões têm lugar numa sala ampla onde as pessoas podem, facilmente, movimentar-se, estando disponível um material variado como, por exemplo, brinquedos, revistas, livros de histórias. Focalizaremos Paulo, nome fictício de um menino de 13 anos que passa grande parte do tempo das sessões movimentando um carrinho de fricção, para frente e para trás, sobre as paredes da sala e, freqüentemente, reproduz, de sessões anteriores, a fala das terapeutas. Segundo informações das próprias terapeutas, esse menino reproduz também enunciados produzidos tanto por seus pais, como pela professora da escola que freqüenta.

Assim, faz parte do universo privado de Paulo, além de comportamentos motores repetitivos, um tipo de verbalização ecolálica, cuja persistência acentua, ainda mais, o seu caráter de eco, como é o caso da reprodução verbal: "Vamos depressa", no recorte transcrito abaixo:

(1) (P= Paulo*:13 anos; T= terapeuta)
* nome fictício

T: Tá procurando o que aí?
P: Vamos depressa. Vamos depressa.
T: Tá procurando o que aí?
P: Vamos depressa. Vamos depressa.
De jeito e maneira. De jeito e maneira.
T: Estamos arrumados, hein? Temos um imitador, aqui, perfeito.

Em relação à verbalização ecolálica acima destacada, vários autores afirmam que tal tipo de reprodução possui a marca de permanência ou imobilidade, caracterizando-se como um bloco rígido, em que estão ausentes os cortes ou segmentações (Lasnik-Penot, 1997). Seriam blocos não segmentados, sem delimitações, sem mobilidade e, portanto, de algum, modo, impermeáveis à entrada da fala do outro.

Ao que parece, tanto o automatismo de repetições motoras, como a ecolalia verbal, em Paulo, apesar de possuírem naturezas diferentes, seriam semelhantes quanto à função que estariam exercendo. Seriam essas montagens autísticas, segundo Jeruzalinsky (1996), uma forma de funcionamento, uma tentativa frustrada de instalar uma condição qualquer de ser, ali onde toda subjetividade fracassou. Por sua vez, essas montagens estariam funcionando como barreiras contra o imprevisível, ou mais ainda, estariam excluindo o caráter imprevisível da fala do outro concebida como uma instanciação da língua (sobre essa concepção de fala do outro, ver De Lemos, 2000). Explicando melhor, tais montagens estariam, em última análise, excluindo o caráter imprevisível da língua concebida em seu funcionamento metonímico – que relaciona significantes por contigüidade – e metafórico – que substitui significantes por similitude.

Não parece demais repetir que não vamos abordar a exclusão a partir da posição ocupada pelo autista diante da língua, mas sim, a partir de uma posição estrutural ocupada por um sujeito (o investigador). Em outras palavras, vamos abordá-la, invocando Milner (1997), a partir de uma modificação – ocorrida no corpo-linguagem do investigador – a qual seria provocada por qualidades materiais da chamada ecolalia.

Nesse sentido, podemos indicar que, diante da insistência das verbalizações de Paulo, apreendemos uma repetição ad infinitum, para usarmos a expressão de Jeruzalinsky (1996). Em outras palavras, apreendemos esse automatismo de repetição sem uma duração delimitada, ou melhor, sem um corte ou um limite temporal.

Por sua vez, apreendemos também essa insistência como uma reprodução verbal em bloco, isto é, como uma reprodução em que faltam segmentações ou limites espaciais.

Desse modo, parece que, na nossa apreensão de uma falta de limites temporais e espaciais, nas verbalizações de Paulo – ou seja, na nossa apreensão de um bloco que se repete ad infinitum – estariam implicados uma imobilidade, um estranhamento, uma exclusão, ou quaisquer outros termos que poderíamos usar para nomear o efeito provocado sobre nós, por aquelas verbalizações.

De acordo com a proposta aqui assumida, o referido efeito teria configurado, portanto, uma posição do sujeito/investigador na estrutura em que também comparecem a língua e a ecolalia. Em outras palavras, parece que se trata de uma posição de subordinação desse sujeito à reprodução ecolálica do autista. Talvez pudéssemos sugerir que, nessa posição, teria sido aparentemente suspenso, no investigador, o funcionamento (metonímico e metafórico) da língua.

Destacaremos, a seguir, outros recortes das sessões transcritas, no sentido de que seja indicado um deslocamento do sujeito, na estrutura em que se deu a escuta das reproduções verbais de Paulo.

(2)
T: Ô Paulo., Ô Paulo! Pára de pegar esse avião. Se lembra do barulho que tu fizeste? Se lembra?
P: Não é pra fazer barulho não. De jeito maneira. (Ininteligível).
T: (Ininteligível) telefona aí, vai. Telefona aí para o aeroporto. Para a Força Aérea.
P: (Pega o telefone e põe no ouvido) Força Aérea, ô Força Aérea.
Não é pra fazer barulho não todinho.

(3)
T: (Ininteligível) só porque Lúcia tá conversando.
P: Tava fazendo barulho todinho
T: Ave Maria e o avião é barulhento também, é Célia?

(4)
P: Acenda Paulo o vidro do carro. O ônibus quebrou o vidro.
T: O avião explode, o carro quebra.
P: O carro quebrou.
T: Tem vontade e aí quebra o carro, é isso Paulo.
P: O carro quebrou.
Quebrou Paulo, quebrou, quebrou o carro todinho. Tá tudo quebrado.
Quebrou, quebrou o carro de mainha.

 

Nos exemplos acima, surpreendemo-nos com as verbalizações realçadas: "Não é para fazer barulho não todinho" (recorte 2); "Tava fazendo barulho todinho" (recorte 3). Tais verbalizações pareciam indicar um certo movimento, ou um certo deslocamento metónímico de pedaços de blocos ecolálicos.

Dizendo de outro modo, o termo/fragmento "todinho"1 teria convocado, na escuta/fala do investigador, uma série de junções verbais produzidas pelo menino, como, por exemplo, aquelas realçadas nos recortes acima (2 e 3) e ainda várias outras, como as que se seguem:

(5)
P: A luz.
T: Tô consertando aqui o farol.
T: Tá tirando o retrato.
P: Tá tirando o retrato todinho.

(6)
P: Paulo chorou dentro do carro
T: Quem chorou dentro do carro?
P: Foi Paulo que chorou tudinho. Ficou bebê chorão.
T: Paulo tá arrependido de ter quebrado aquele carro tão bonito que a mãe dele deu. Porque você quebrou o carro, não foi Paulo?

Supomos, por fim, que o estranhamento, inicialmente, provocado pelos blocos ecolálicos, como por exemplo: "Quebrou o carro todinho", não seria o mesmo provocado pelo que estamos chamando de junções. No primeiro caso, como já dissemos, o estranhamento parece que se restringe ao efeito de rigidez, de imobilidade, de exclusão, etc., ou melhor, parece que se restringe a uma subordinação à ecolalia. No segundo caso, o estranhamento parece indicar uma subordinação da escuta do sujeito a um funcionamento metonímico da língua.

Na tentativa de explicar um pouco melhor, podemos sugerir que o "todinho" teria produzido, na escuta do investigador, uma rede de ligações metonímicas entre blocos reproduzidos pelo menino, em diversos momentos. Assim, nessa escuta, o termo/fragmento estaria representando um ponto de encontro, ou um ponto de junção entre tais blocos.

O interessante é que essas junções, ou inclusões, parecem, de certa maneira, romper momentaneamente um padrão verbal ecolálico, produzindo uma espécie de efeito de desarmonia, ou de estranhamento. Uma tal desarmonia, por sua vez, permitiria supor que o menino teria realizado quebras nas suas reproduções, embora as referidas junções pareçam preservar a rigidez de cada um dos blocos.

Nesses momentos de quebra, poderíamos sugerir que o investigador teria se deslocado, por um instante, de uma posição estrutural anterior – caracterizada por uma subordinação à ecolalia – para uma posição, de algum modo, um pouco diferente. Em outras palavras, nesse deslocamento, a relação do investigador com a língua seria marcada por um movimento metonímico que se imporia, em sua escuta, fora de qualquer controle que ele pudesse exercer através de seus conhecimentos ou intenções. Vale, entretanto, destacar que, imediatamente após um tal movimento, parecia haver uma volta à posição anterior de subordinação à ecolalia.

Realçando, ainda mais, a questão do efeito produzido, no investigador, pelas mencionadas junções, supomos que se trataria de um efeito predominante de imobilidade, estando porém essa imobilidade, momentaneamente, suspensa, de forma pontual e descontínua, por um deslocamento muito singular.

Fica, portanto, a pergunta:

Não seria através desses instantes de suspensão, que um efeito de inclusão poderia ocorrer, quebrando a imobilidade, o congelamento da escuta do sujeito, diante da ecolalia do autista?

 

Referências bibliográficas

ATEM, L.M. (1998). Autismo e defesa primária: questões sobre o sujeito e a transferência. Revista Latinoamerica de Psicopatologia Fundamental, 1 (1), 77-85.

DE LEMOS, C.T.G. (2000). Questioning the notion of development: the case of language Acquisition. Culture & Psychogy, 6 (2), 168-181.

________________ . (2001). Sobre fragmentos e holófrases. In Anais do III Colóquio do LEPSI (pp. 45-52). São Paulo, SP: Instituto de Psicologia, Lugar de Vida, Universidade de São Paulo.

JERUZALINSKY, A. (1996). Considerações preliminares a todo tratamento possível de uma criança. Amarelinhas – À margem da infância – um estudo transdisciplinar da psicose e do autismo, 3, 95-114.

KANNER, L. (1943). Os distúrbios autísticos do contato afetivo. In P.S. Rocha, P.S. (org.). Autismos (M. Seincman, trad.) (pp.111-170). São Paulo, SP: Escuta, 1997.

LASNIK-PENOT, M.C. (1997) Rumo à palavra : três crianças autistas em psicanálise. São Paulo, SP: Escuta.

MILNER, J. C. (1997). Le triple du plaisir. Paris, Fr: Verdier.

RODRIGUEZ, L. (1999). O dizer autista. In S. Alberti (org.). Autismo e esquizofrenia na clínica da esquise (pp. 244-257). Rio de Janeiro, RJ: Marca d’Água.

 

 

1 O termo "todinho" (diminutivo de todo) é muito usado na região onde teve lugar este estudo (Recife-Pernambuco), aparecendo em várias expressões, como aquela reproduzida pelo menino: "Quebrou o carro todinho".