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ISBN 85-86736-12-0 versión on-line

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2002

 

"Psicopedagogia: considerações sobre o futuro de uma outra ilusão"

 

 

Kátia Cristina Silva Forli Bautheney

 

 


RESUMO

Utilizando o conceito freudiano de ilusão como referência, procuraremos analisar de que maneira uma prática psicopedagógica apoiada apenas na anulação dos sintomas apresentados por crianças e adolescentes nas escolas indica a ausência de um campo epistemológico que sustente um trabalho clínico.

Palavras-chave: ilusão, psicopedagogia, psicanálise.


ABSTRACT

Using the freudian concept of illusion as a reference, we will try to analyse how a psycho-pedagogical practice supported only by the cancellation of the symptoms presented by children and teenagers in school indicates the absence of an epistemological field which sustains a clinical work.

Index-terms: Illusion, psycho-pedagogical practice, psychoanalysis


 

 

Em seu texto "O futuro de uma ilusão" Freud (1927) nos fala da fundação da civilização como meio de proteção dos homens contra a força destrutiva da natureza, mantida a custo de uma coerção externa, e principalmente de uma coerção interna que age no sentido de contenção das pulsões, amparada na fundação das instituições sociais. Sua crítica à religião é estendida também à política, relação entre homens e mulheres (ao que acrescentamos também a ciência), enquanto ilusões que proporcionam uma certa sensação de apaziguamento do temor infantil de desamparo e procuram indicar, com seus saberes, caminhos para dominação daquilo que é da ordem do desconhecido.

No campo da educação tal ilusão, descendente do âmbito científico, é parceira do constante mal-estar gerado pelo processo do dito fracasso escolar. Por que há sujeitos que não conseguem aprender? A busca de respostas para esta questão tem sido responsável pelo crescente encaminhamento de alunos em situação de dificuldade escolar para profissionais "psi", bem como pela procura frenética dos (psico) pedagogos pela teoria/metodologia da moda, que finalmente poderia orientar como ensinar ‘tudo a todos’.

Neste mesmo texto Freud usa como recurso literário para o desenvolvimento de suas idéias a possibilidade de uma "interlocução" com um outro imaginário. Pensamos que tal iniciativa pode ser frutífera também neste trabalho.

Uma primeira questão pode ser então formulada: 'De que psicopedagogia estamos falando?'. Realmente é difícil uma especificação sobre um campo epistemológico da psicopedagogia, pensamos que atualmente no Brasil podemos falar em psicopedagogias.

Encontramos uma situação bastante preocupante no terreno da clínica; ao finalizar o curso de psicopedagogia muitos profissionais iniciam atendimentos psicopedagógicos em consultórios, e as práticas clínicas costumam repetir o "fenômeno" encontrado nos cursos de especialização. Com o invólucro de psicopedagogia pode-se encontrar de tudo: aulas particulares, recreação, orientação de pais e professores, massagem, escuta "psicanalítica"...

'Se não existe um campo conceitual da psicopedagogia, onde esta prática se sustenta?`Entramos aqui numa questão bastante complexa; se seguirmos a idéia proposta no título deste trabalho, podemos pensar que atualmente a psicopedagogia no Brasil se sustenta numa ilusão. É importante neste ponto definirmos o que compreendemos por ilusão, e mais uma vez recorremo-nos a Freud (1927), que pontua que:

"Podemos, portanto, chamar uma crença de ilusão quando uma realização de desejo constitui fator proeminente em sua motivação e assim procedendo, desprezamos suas relações com a realidade, tal como a própria ilusão não dá valor à verificação." (1927,p.40)

'Qual seria então a ilusão que forma como que um decantado nas produções teóricas e na prática psicopedagógica?'.

A idéia de que talvez seria possível conhecer capacidades maturacionais/naturais das quais pudesse ser extraído O método educacional que poderia então ser responsável por uma aprendizagem efetiva. Por detrás desta assertiva reside o desejo de anulação das diferenças, tão presente nos pedidos de encaminhamentos, ou seja, "a crença de que há um objeto material e natural para a psicologia" (Gabbi Jr,1986,p.15), e também porque não dizer, para a (psico) pedagogia.

Sobre esta questão Lajonquière aponta que:

"As capacidades psicológicas fazem as vezes da realidade última, de uma espécie de fundo do poço do mundo pedagógico, pois pensa-se que sempre estão presentes nos"problemas" tanto de aprendizagem quanto de disciplina escolar. Problemas que não seriam mais do que expressão da falta de ajuste ou adequação a esta última instância - ou primeira, dependendo do ponto de vista. Assim sendo, as capacidades instam, solicitam insistentemente, que o restante da existência se adapte a elas ou, em outras palavras, elas clamam por complementação aos olhos do discurso (psico) pedagógico hegemônico." (1999, p. 56)

'Mas afinal, como se processou o cruzamento da psicologia e da pedagogia no Brasil?'.

Para responder a esta questão, remetemo-nos ao trabalho de Jurandir Freire Costa (1999) Ordem Médica e Norma Familiar. O autor analisa que a entrada da psicologia no Brasil se deu através de uma relação muito próxima com a medicina higienista, e juntas, ambas as disciplinas legislavam sobre o que era o bem viver.

É realmente impressionante a quantidade de teses que foram produzidas neste período que se preocupavam em definir "como se deve ser e agir para ser considerado normal." Percebemos que a criação de um conceito de normalidade teve (tem?) uma função específica no sentido de contenção pulsional, objetivo este que foi bem sucedido, mais do que o uso da repressão policial, que parecia não ter mais efeito na contenção da massa no Brasil do século XIX.

Este movimento de transferência da coerção externa para interna deu-se exatamente com base na tese apresentada por Freud de que ao processo civilizatório constitui-se sobre a coerção e a renúncia pulsional. Tal processo se torna mais efetivo graças à força do superego, e a constituição do mesmo dá-se devido às exigências morais da civilização.

Ora, neste movimento de passagem de uma coerção estritamente externa para uma coerção interna na sociedade brasileira a psicologia e a medicina higienista contaram com uma aliada; a educação para propagação de suas idéias. Qual seria então o benefício que o sujeito receberia pela renúncia de sua satisfação pulsional e adesão - aos agora - ditames educacionais? Seria o fato de poder ser distinguido dos demais com o rótulo da normalidade, com a vantagem deste conceito ser articulado a um suposto respaldo científico.

‘Mas os avanços no campo da psicologia não contribuíram justamente para uma maior compreensão do aluno e conseqüentemente melhoria do processo de ensino?’.

Carvalho faz uma consideração interessante acerca das produções teóricas no campo da psicologia do desenvolvimento:

"Embora estas modalidades de investigação empírica possam ter relevância para professores ou instituições educacionais, virtualmente nenhuma delas tem como objetivo uma possível compreensão do contexto escolar como um todo, nem uma aplicação imediata neste âmbito (...) Seu objetivo fundamental é a elaboração de teorias explicativas do desenvolvimento cognitivo, e (...) não têm como objetivo a compreensão do fenômeno da aprendizagem como fruto de exposição ao ensino escolar, nem buscam formas mais eficazes de ensino, mas pretendem descrever as características gerais do desenvolvimento cognitivo na criança a partir de certos referenciais psicológicos." (2001, p.42/43)

As questões trabalhadas até aqui remete-nos às observações de Lacan(1992) em seu Seminário XVII-O avesso da psicanálise. Não podemos negar que estamos apalpando questões que se processam no âmbito dos dramas humanos, atravessados pela linguagem.

Conforme o referencial lacaniano, a pesquisa em psicanálise é uma pesquisa da linguagem, e o processo de psicologização do cotidiano escolar é o indicativo da força do discurso universitário e do saber (científico) ocupando o lugar de verdade onde outrora estivera o mestre (agora esvaziado) com o seu discurso.O processo de psicologização do cotidiano escolar permite-nos demonstrar a força do discurso universitário nas escolas.

Podemos dizer que as escolas também obedecem a lógica da ciência moderna, buscando o afastamento de práticas "intuitivas"; afinal é preciso desenvolver um método para que as crianças aprendam bem e de modo definitivo.

Está aí o cerne do mal-estar da prática educativa, que junto com o ato de governar e analisar lidam o tempo todo com a falta, justamente no sentido contrário do discurso da ciência moderna, onde a falta não deve existir. As ilusões (psico) pedagógicas seriam recursos fantasiosos numa tentativa de obturação desta falta.

A ciência moderna constitui-se como paradigma da verdade, seguida de forma religiosa por profissionais da educação sedentos por receitas de "como fazer o aluno aprender". É exatamente neste ponto que Lacan "põe o dedo na ferida", destacando a impotência da verdade e o poder do impossível.

A ética da psicanálise se contrapõe a da ciência moderna exatamente aí; não há uma única verdade, universal; uma vez que a verdade seria não-toda, como nos diz Lacan(1992), e se apresenta de forma sinuosa, sulcada, intrincada. Aqui se incluí o sujeito e o desejo, sendo que do discurso científico a verdade do sujeito é rejeitada em prol de tudo saber.

A medicina também compartilha junto à psicologia e educação desta imersão no discurso universitário (como foi pontuado a partir das observações de Jurandir Freire Costa (1999)), onde o saber é agente do discurso que se apresenta como um discurso do mestre moderno, mestre que foi substituído pelo saber universal científico abrindo margem para manifestação: Da tirania do saber, da obediência como mandamento do saber, e da ordem como representante da verdade da ciência; com a eleição do saber como meio de gozo (a busca desenfreada por cursos, especializações, títulos demonstra bem isso).

É fato que o discurso universitário dá sustentação para o trabalho na escola, e é produtor de pesquisas e circulação de saber. O problema reside quando há uma suplantação do discurso do mestre na escola, que cede seu lugar a teses, informações, normas, e o esquecimento de que no âmbito escolar o que ocorre não é apenas uma relação professor-aluno, e sim a relação entre sujeitos desejantes, atravessados pela linguagem.

'Da maneira como os argumentos foram sendo apresentados, pode parecer que não existe a necessidade de tratamentos, pois todos os sintomas apresentados pelos alunos seriam institucionais.'

Certamente há sujeitos que apresentam questões que demandam uma escuta singular. Os sintomas que se apresentam na escola não devem ser entendido estritamente como "sintomas escolares", mas como sintoma de um sujeito. Ocariz assinala que "o sintoma é um fenômeno subjetivo que se constitui não como sinal de doença, mas como efeito, produto de um conflito inconsciente (...). O sintoma não é contingente; possui um motivo e um propósito. Tem causa, direção, finalidade e função na vida psíquica; é sobredeterminado, e sua raiz se encontra na história do sujeito. É portador do saber inconsciente recalcado; é uma mensagem cifrada, um hieróglifo a ser interpretado (2001, p.9)".

Nesse sentido é muito diferente quando um aluno apresenta dificuldades na escrita ou na resolução de operações matemáticas porque há algo no trabalho pedagógico que fica a desejar e em nada justifica um encaminhamento, afinal ensinar a escrever um texto com correção ortográfica, ou a fazer contas é função da escola. Outra coisa é quando a incapacidade de separar as palavras (aglutinação) ou a resolução de contas de dividir evocam uma questão inconsciente deste sujeito que se manifesta na escola, mas poderia estar presente em outras situações da vida do mesmo.

Acreditamos que muitas crianças e adolescentes que são encaminhados para atendimentos psicopedagógicos apresentam dificuldades que poderiam ser sanadas no âmbito estritamente pedagógico.

Certamente este sujeito pode recuperar sua capacidade de trabalhar e ter prazer, através de um atendimento psicodinâmico, mas este trabalho tem nome; é psicanálise, e está fundado na escuta do inconsciente e o manejo da transferência, ao qual a psicopedagogia não se propõe.

‘E os casos das crianças e adolescentes que são encaminhados para atendimentos especializados, mas a questão que gerou o encaminhamento está na instituição?’.

É a partir deste ponto que podemos refletir sobre uma intervenção psico/pedagógica possível, ou seja, gostaríamos de pensar uma possibilidade de atuação dos psicopedagogos no nível institucional. O que propomos então é que o psicopedagogo possa "aproveitar" do poder que lhe é atribuído (afinal seria o portador do discurso científico) para fazer um movimento de giro no que diz respeito às queixas proferidas pelos professores e coordenadores sobre seus alunos (queixas estas que podem motivar um encaminhamento), para possibilitar que este seja um espaço de escuta; que o psicopedagogo possa escutar a equipe da escola, que esta equipe possa se escutar, que o sujeito para além do professor e do coordenador possa ter um espaço para escuta do desejo.

Voltando ao texto que nos guiou nesta reflexão, Freud pondera que no âmbito religioso (e aqui estamos também pensando no discurso científico podendo ocupar este lugar), abrir mão de uma ilusão de uma outra vida no futuro, que seria uma vida melhor, permite-nos um maior investimento (libidinal) no aqui e agora. Seguindo então o paralelo que desenvolvemos neste texto; ao abrir mão da ilusão de que é através de um tratamento que este aluno (a) "anormal" poderia encaixar-se no padrão do bom aluno; quem sabe possamos investir (pedagogicamente, e porque não libidinalmente) numa relação transferencial que produza efeitos benéficos na produção pedagógica do mesmo. Este poderia ser um espaço para o psicopedagogo atuar; não para sustentar uma ilusão, mas para garantir um espaço de palavra: entre sujeitos, entre saberes.

 

Referências bibliográficas

CARVALHO, J. Construtivismo: Uma pedagogia esquecida da escola.Porto Alegre: Artes Médicas, 2001.

COSTA, J. F. Ordem médica e norma familiar. 4ªedição. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia. 5ª edição.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 1994.

FREUD, S. (1920) "Sobre a psicanálise ‘selvagem’".In Obras psicológicas-antologia. Rio de Janeiro: Imago, 1992.

________. (1927) « O futuro de uma ilusão ». In Obras psicológicas-antologia. Rio de Janeiro: Imago, 1992.

GABBI Jr, O. "O que é psicologia? Leis, regras e a psicologização do cotidiano" in Ciência e cultura. São Paulo, v.38, n 3. 1986.

LACAN, J. O seminário.Livro XVII-O avesso da psicanálise.Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

LAJONQUIÈRE, L. de. Infância e ilusão (psico) pedagógica: escritos de Psicanálise e educação.Petrópolis: Vozes, 1999.

OCARIZ,M "O sintoma e a clínica psicanalítica" in Revista Percurso. São Paulo,nº 26: 7-20, 1º semestre de 2001.

REVISTA PSICOPEDAGOGIA. São Paulo: Associação Brasileira de Psicopedagogia. 1991- 1999

ROSEMBERG, A(org). O lugar dos pais na psicanálise de crianças.São Paulo: Escuta, 2002.