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ISBN 85-86736-12-0 versión on-line

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2002

 

Ditos e interditos em seus efeitos sobre a educação e a aprendizagem na clínica psicopedagógica

 

 

Laura Rangel

 

 


RESUMO

Este trabalho abre uma reflexão sobre a comunicação adulto-criança, através de uma intervenção psicopedagógica considerando aspectos subjetivos e objetivos num caso de dificuldade na aprendizagem da escrita.

Palavras-chave: Psicopedagogia e educação; aprendizagem; linguagem.


ABSTRACT

This paper opens to a reflection about the communications between adult and child through a psychopedagogical intervention, considering subjectiveness and objetiveness in a difficulty of learning writing.

Index Therms: Psychopedagogy and education; learning; language.


 

 

Apresentação

Nossa experiência é de clínica particular e no Laboratório Clínico de Aprendizagem do Centro de Estudos Jean Piaget em Porto Alegre.

No Laboratório atualmente o atendimento se dirige a crianças e adolescentes de escolas públicas,e o tratamento é realizado por uma psicopedagoga ou uma estagiária e o trabalho é supervisionado pela equipe interdisciplinar, formada por psicólogas,psicanalistas,e as estagiárias em psicoplogia e psicopedagogia da UFRGS e do CEJEP,e mais recentemente do Curso de Especialização em Psicopedagogia da FAPA -Faculdade Porto –Alegrense de Educação Ciências e Letras.

 

Sobre a demanda para a psicopedagogia clínica

Acho importante salientar é que as demandas tanto do atendimento particular como as do laboratório são bastante semelhantes,ou seja, crianças com problemas na aprendizagem detectados pela escola .Destas crianças o que mais nos chama a atenção são suas questões para além das dificuldades na aprendizagem,ou o que venho chamando questões de educação ou educativas. Considero aqui educação não no sentido normativo mas aquela que conforme Kupfer é o ato por meio do qual o Outro primordial se intromete na carne do Infans,transformando-a em linguagem.(2000)

Atualmente há uma demanda diferente para a clínica psicopedagógica, e isto nos faz questionar sobre a problemática da infância hoje ,e dos sintomas que fazem laço no social apontando para muitas psicopatologias precoces da infância em nossos dias,que mostram por um lado , o declínio do poder-saber dos ensinantes pais e professores,e por outro , pelo ingresso das crianças na escola desde cedo.

O que nos inquieta ,ainda é o que vem sendo demandado a nós psicopedagogas: Concertar uma criança - colocando-nos num lugar de todo saber ,no entanto é desde este lugar que deslocando ao saber parental as interrogações sobre a infância e sobre seu filho, em particular e o que seu sintoma expressa que vamos realizando nossa escuta clínica e transferencialmente, dizemos e falamos ,pelo que ainda não fala – o infans.

Algumas considerações...

"A comunicação interpsíquica produz efeitos(...) É o papel do dizer e do agir.Para uma criança tudo é linguagem significativa,tudo o que se passa à sua volta e que ela observa.Ela reflete sobre estas coisas."Françoise Dolto 1998

Meus questionamentos no estudo do referido caso eram justamente sobre os efeitos de nossas falas no tratamento , e as poucas falas da mãe de uma menina em relação ao que se supõe uma mamãe possa dizer a sua filha.Em que medida na clínica da infância se faz necessário articularmos em palavras nosso desejo e nosso saber sobre a criança, conforme Dolto "uma verdade",conforme a psicanálise Lacaniana a transferência.

Estamos diante de duas questões teóricas fundantes, em meu entender na clínica da infância e inicio o caminho de minha comunicação fazendo estas considerações.Como psicopedagoga, gostaria de salientar, ainda que existem, sem dúvidas, muitos modelos de práticas psicopedagógica algumas que temos criticado sob a denominação de reeducativas ou ortopédicas. Em meu trabalho clínico as questões formuladas somente foram possíveis a partir da interlocução com a psicanálise.

Uma prática clínica com crianças somente se efetiva quando se desdobra sobre os conceitos da psicanálise considerando-se o RSI, de Lacan ,a linguagem sob o viés do simbólico e do inconsciente,bem como do campo da transferência,e o imaginário tão necessário à cultura e ao pensamento infantil.

 

Fragmentos da história clínica

... Era uma vez Leonor... uma menina muito bonita de aproximadamente 7 anos,filha única menina e com mais dois irmãos.Ela era a do meio.Chegou no consultório, trazida por seu pai, numa manhã de pleno janeiro, em férias. Era muito falante,contava muitas situações sobre passeios e idas aos shoppings,ao mesmo tempo falava-me sobre suas tias queridas porque lhe davam muitos presentes.

Leonor movia-se com muita rapidez,chegava com os tamancos virados - colocados nos pés trocados,saltava da porta à janela olhando tudo falando sempre,sem trégua!

Ao chegar na sala de espera aguardando que iniciássemos,banhava a secretária com perguntas falando muito alto atrapalhando o atendimento anterior ,o que me deixava incômoda e talvez tão aflita quanto ela. . Freqüentava uma segunda série do ensino fundamental em uma escola particular,porém sem saber ler nem escrever,tão pouco reconhecia os números.

Através do exame neurológico foi constatada uma significativa imaturidade evolutiva.Tinha muita dificuldade de se orientar no espaço amplo e nas folhas então...as virava para qualquer lado sem nenhuma referência.

Desenhava várias letras ,ora escrevia em espelho ,ora fazia uma combinação aleatória com as letras cursivas sem nenhum espaço e pedia para eu ler para ela.Nestas primeiras situações ríamos muito juntas, pois eram verdadeiras charadas dela para mim.

A que isto poderia nos remeter?

Convidada a brincar não se envolvia, nem manifestava interesse na casinha ou nas bonecas. Seu "brincar" era com seu próprio corpo ,seu movimento, sua fala e todos seus gestos bruscos e desajeitados .Assim Leonor se apresentava para mim. Passou a convidar-me para jogar memória e sempre escolhia o mesmo jogo ,atividade na qual passamos algum tempo . Isto nos chamava a atenção e tentávamos entender qual o significado de sua escolha e o que isto poderia significar para sua não aprendizagem das letras?

Tentamos introduzir um trabalho mais simbólico com o corpo e o movimento mas também não sucedíamos.Quando convidada a escrever negava-se ou escrevia a seu modo. Um dia, quando seu pai veio buscá-la , disse: eu já estou escrevendo e lendo não é pai? foram saindo e o pai concordou dizendo : - é sim.

Na sessão seguinte, falei com ela sobre ler e escrever dizendo que para ler precisamos entender os signos da grafia das palavras e para escrever precisamos pensar. Ela parecia não me escutar. Oferecendo um dominó de palavras e figuras para montarmos , surpreendi-me, pois percebi que algumas palavras ela parecia ler e identificar à figura.Foi então que me veio a hipótese de que ela sabia mais do que podia mostrar.Será que havia algo a esconder?

Seguimos o tratamento fazendo entrevistas com os pais para abrir um espaço para que falassem mais dela,numa tentativa de que se subjetivassem na história da filha resgatando alguns fatos da memória da história de Leonor.

Porque o jogo de memória que Leonor sempre me propunha?

Relembrar a história de Leonor era muito difícil para eles,pois evitavam pensar nisto,e falavam deles,de suas histórias familiares o que me permitia entender melhor Leonor neste contexto mítico entre muitas histórias familiares dignas dos contos de fadas,no entanto o que poderia ser falado não aparecia.

 

A escolarização de Leonor

A história da aprendizagem de Leonor fora traumática. Na primeira série colocaram – na em uma "excelente escola",muito puxada.Havia muita queixa dos pais em relação aos professores e direção porque estavam sempre os chamando , dizendo que Leonor não acompanhava o ritmo e aconselharam que ela voltasse para a pré-escola o que não foi aceito por eles e em oposição a trocaram de escola numa primeira série..Os argumentos que usavam para justificar sua atitude eram de que não poderiam decepcionar a filha . Nesta nova primeira série, Leonor continuava não aprendendo.Os pais munidos do mesmo argumento de não decepciona-la e baixar sua auto-estima , no final do ano ela foi promovida à segunda série.

Neste momento buscaram o atendimento psicopedagógico.

A primeira ajuda que pude dar a Leonor foi a de questionar junto a seus pais e na escola a sua permanência na segunda série.

Fui à escola e pude perceber o quanto era difícil aos professores "agüentarem" a criança na segunda série e em consenso com a supervisão , Leonor retornou para a primeira série.

Acho que é possível nos questionarmos sobre o ocultamento da verdade, nesta situação absolutamente falsa denotando apenas o narcisismo de seus pais.

 

As sessões psicopedagógicas

Ao passar para a primeira série começou a trazer a pasta da escola para fazer os temas comigo.Podia perceber que era uma demanda de sua mãe o que eu negociei por ocasião de uma das entrevistas.Acho que eu e Leonor neste momento nos encontrávamos presas a uma demanda : "aprende/ensina".

Sentia-me tão impotente quanto ela talvez , mas íamos realizando as tarefas escolares pois Leonor autoritariamente me exigia auxiliá-la .

Conforme Anny Cordié ,para que uma criança aprenda é necessário que ela tenha o desejo de aprender ,ora, nada nem ninguém pode obrigar alguém a desejar...O comando é um paradoxo com o qual se confronta a criança a quem é repetido: eu te ordeno desejar aprender"(1996)

Nos interrogamos sobre qual o parâmetro de verdade e de desejo estava sendo enunciado a esta criança por seus pais e como eu teria que me deslocar desta mesma posição Então,dando-me conta disso, passei a pontuar enunciados verdadeiros para Leonor, ou seja,quando ela dizia que estava lendo e escrevendo mas apenas copiando eu lhe dizia ,que escrever não é copiar .Neste tempo de trabalho ela estava bem menos ansiosa e mais cooperativa,porém meus enunciados provocavam seus "actings out" . Ela tentava me bater sempre que eu interditava o discurso falacioso e dizia algo mais verdadeiro, e assim passávamos as sessões eu a contendo e ela exausta e muitas vezes chorando. Expressando palavras amorosas a acalmava,e finalmente ela sugeria um brincar de faz-de-conta que sabia, eu aprovava.

"a negação permite a representação dos possíveis(...)quando dizemos:isso não é assim ou não penso isso estamos trabalhando com identificação ou alteridade"(Antoine Culioli)

Leonor começou a ler e a escrever e ela mesma ,passou a repetir minhas palavras sobre o ler e escrever :ESCREVER NÃO É COPIAR ,NÃO É LAURA?

Concomitante aos progressos em sua aprendizagem a situação familiar cada vez parecia complicar-se mais, o que não me permito relatar por questões de ética,cabendo-me,apenas refletir sobre o significados ocultos até então: o que esta menina com dificuldades de aprendizagem sustentava dos conflitos conjugais de seus pais?Como estes conflitos familiares impediam-na de resolver suas questões fundantes para poder aprender na articulação subjetivante-objetivante e dar curso a um processo menos sintomático?

As sessões foram se organizando em situações de leitura e escrita de textos,Leonor muitas vezes ainda apresentando teimosias e agressividade comigo, porém passava momentos prazerosos descobrindo a escrita.

Um belo dia...chegou muito irritada dizendo que sua avó viajara .Estava também vestida estranhamente para o costume,pois sempre vinha como uma boneca.Neste dia parecia haver acordado sem se arrumar ,com seus tamancos(não mais virados) .Propus que fôssemos ao computador passar a limpo uma de suas historinhas escritas à mão na sessão anterior.Isto provocou sua raiva e agarrando-se a folha do rascunho dizia que não sabia escrever e que tinha que copiar.

Eu tentava acalmá-la dizendo que não precisaria copiar que iríamos juntas, lendo e escrevendo. Subitamente e sem que eu pudesse me defender,Leonor tirou o tamanco do pé e me deu um "tamancasso".

O sujeito Laura falou:

-Tu vais me pagar,não faz isso! Ao que ela imediamente perguntou;

_Como eu vou te pagar?respondi,então:

-Me pedindo desculpas.O que ela logo fez acalmando-se e eu também. Fomos ao computador e ela numa verdadeira situação de escrita ,no teclado achava todas as letras e compunha o texto.

Conforme Alicia Fernandez referindo-se a autoria de pensamento e agressividade: "a autoria de pensamento supõe diferenciação,agressividade,re-volta íntima e a partir disso,possibilidade de re-encontro com o outro – o acesso a nós mesmos".(2001)

Continuo refletindo agora sob a citação acima o que a agressividade de Leonor produzida mesmo que sobre meu corpo,fazia efeitos em seus próprios processos internos de produção e autoria para poder pensar,escrever e construir conhecimentos.Da mesma forma, de uma maneira eminentemente psicopedagógica, onde dizemos que ensinamos na dialética do que aprendemos, a citação da autora, recai sobre meu próprio processo de aprendizagem,visto que produzi este trabalho.

Cabe tomarmos esta situação como um exemplo vivo do que chamamos a agressividade necessária para aprender.

Leonor em seus actings outs , permitia-se ,via transferência incorporar a si, talvez sem destruí-la a possibilidade de construir conhecimentos.

A agressividade necessária para aprender,transparece nas produções infantis e nos atos de rascunhar, borrar textos, rasurá-los enfim escrever e pensar....pois nossa subjetividade sempre está em jogo nestes fatos pedagógicos se podemos dizer assim.

Terminando este texto também é importante referir que o tratamento de Leonor foi interrompido ,mas acredito que o que esta menina disse na frente de sua mãe e,no último dia de atendimento faz-me supor que algo ela levou para si dos atendimentos psicopedagógicos.

 

Na última sessão...

-Mãe, me deixa continuar com a Laura! (produção enenciativa de sujeito)

-Nós temos que primeiro falar com o teu pai para depois resolvermos,disse a mãe.(enunciado falacioso)

A mãe se retira, pois propusemos ficar um pouco com Leonor para brincarmos .

Leonor se dirigiu à casinha e montou pela primeira vez uma cena de nascimento de um bebê.

E falava bem baixinho ...

Ainda nos cabe nos questionar sobre :

- O que está em jogo na transferência no tratamento psicopedagógico e se é possível interpretar via transferência num tratamento deste cunho.

 

Referências bibliográficas

BOUDARD,B. Os quatro discursos no trabalho com os pais.Tratamento e escolarização de Crianças com distúrbios globais de desenvolvimento. Salvador:ágalma2000n.11

DOLTO,Françoise. Tudo é linguagem.São Paulo:Martins Fontes,1999

__________ As etapas decisivas da infância.São Paulo:Martins Fontes.1999

FERNANDÉZ,Alicia.A inteligência aprisionada.Porto Alegre:Artes médicas,1990

_________ O saber em jogo-a psicopedagogia propiciando autorias de pensamento.

KUPFER,Maria Cristina.Educação para o futuro.Psicanálise e Educação.São Paulo Escuta,2000

LACAN,Jacques.O seminário- Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. RJ Zahar,liv.11

MILLOT,Catherine.Freud antipedagogoRJ:Zahar1987