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ISBN 85-86736-12-0 versión on-line

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2002

 

"O que podemos fazer pelas crianças?" Infância, escola e responsabilidade social em Hannah Arendt

 

 

Luiz Paulo Labriola

 

 


RESUMO

Esta comunicação oral aborda o problema da crise de autoridade nas relações entre adultos e crianças, partindo do diagnóstico de Arendt (1954) acerca de uma crise gerada pela implantação de reformas educacionais nos EUA, na primeira metade do século XX, inspiradas no pragmatismo deweyano.

Palavras-chave: educação, autoridade, crise


ABSTRACT

The speech approaches the problem of the authority crisis in the relationships between adults and children, according to Arendt's diagnosis (1954) concerning a crisis generated by the implantation of educational reforms in the USA, in the first half of the XX century, inspired in deweyan pragmatism.

Index-terms: education, authority, crisis


 

 

"O que podemos fazer por ele?" talvez seja o que mais freqüentemente pais e mães perguntem a si mesmos ou a psicoterapeutas da infância e da adolescência quando pressentem que seus filhos necessitam de ajuda. Essa pergunta, porém, historicamente, é ainda muito nova. Sabemos que esse "olhar" para a infância, essa disposição adulta de, sempre que possível, colocar-se no "mundo" delas, compreendê-lo "de dentro", tendo em vista descortinar suas pulsões e zelar pelo seu bem-estar e felicidade, é uma conduta nitidamente diferenciada de "olhares" passados bem menos tolerantes para com a precariedade e a instabilidade da condição infantil.

Segundo Ariès (1981), é somente a partir do século XVII que se processaram modificações significativas numa concepção até então hegemônica de infância, das quais resultariam os crescentes cuidados para com as crianças no século XX. Até então, lembra Badinter, a criança tinha "pouca importância na família, constituindo muitas vezes para ela um verdadeiro transtorno. Na melhor das hipóteses, ela tem uma posição insignificante. Na pior, amedronta" (1985, p. 54). Vista invariavelmente como um problema, a "solução" para a infância oscilava entre o "abandono físico" e o "abandono moral", entre o "infanticídio" e a "indiferença" (1985, p. 64). Das mais inofensivas às mais cruéis, essas "soluções" eram, em geral, vistas como "moralmente neutras, condenadas pelas éticas da Igreja e do Estado, mas praticadas em segredo, numa semi-consciência, no limite da vontade, do esquecimento, da inépcia" (Ariès, 1981, p. 79).

Uma observação histórica mais minuciosa decerto permitirá que se encontrem exceções a àquele estado de coisas. Seria simplista imaginar um consenso histórico de aversão à infância. Ademais, "o século da criança" não logrou afastar de vez as ameaças históricas sobre a infância. Mas, de uma forma geral, no transcurso de aproximadamente três séculos, diz Badinter, "o conceito de felicidade (de bom) substituiu o de bem" na abordagem da infância, devendo-se localizar sobretudo na psicanálise os fundamentos mais consistentes dessa substituição (1985, p. 59), com a qual cultivou-se o chamado "sentimento da infância" (Ariès, 1981, pp. 157-159).

Não cabe aqui esboçar uma etiologia da complexa transformação ocorrida. O próprio Ariès registra que "o dossiê está longe de ser fechado. A história da família está apenas se iniciando e mal começa a despertar o interesse de pesquisa" (1981, p. 25). Entretanto, aceita-se hoje, sem grandes resistências, como um fator essencial para a emergência daquele sentimento, o advento dos processos de escolarização – que afastaram as crianças de uma aprendizagem em meio aos adultos e criaram um " lugar próprio" para o ensino. Esse confinamento, provavelmente à revelia de seu "programa" histórico, contribuiu, em larga medida, para demarcar a infância como objeto de atenção e estudo.

Cambi demonstrou que o processo de formação dos Estados nacionais demandou a criação de instrumentos para a "produção de comportamentos integrados aos fins globais da vida social (...) segundo um modelo de eficiência racional e produtiva" (1999, p. 201). Sua consolidação foi inseparável da indagação acerca da "governabilidade" (isto é, do controle) dos indivíduos. E governar implicaria a criação de instituições voltadas à normalização e domínio dos sujeitos, suprimindo desvios e produzindo convergências de comportamentos, de ideais e estilos de vida, observa Cambi (1999).

Mas ao criar um "espaço social para a criança" (Cambi, p. 204), a escola – eleita uma dessas instituições e desempenhando com a família um papel central "na experiência formativa dos indivíduos e na própria reprodução (cultural, ideológica e profissional) da sociedade" (p. 203) – fomentou a elaboração de um "saber acerca da infância". Pode-se objetar que com isso buscou-se apenas um instrumento mais preciso de controle. Seria, porém, ingenuidade imaginar que o emergente saber acerca da infância, em sua crescente abrangência, poderia se impor o limite de pensar a criança apenas enquanto "corpo a ser controlado", "ação a ser canalizada" ou "objeto de sanções normalizadoras", à maneira foucaultiana, e nada mais.

Há uma ambivalência constitutiva do papel da escola que determinou caminhos para a construção de saberes acerca da infância não necessariamente restritos ao projeto de controle social. Ao lado da função de "agente de reprodução social", lembra Cambi (1999), "a escola moderna foi também outra coisa: ela constituiu uma etapa de emancipação dos indivíduos (...) e principalmente das classes populares, elevando-as da condição de governadas à de potenciais governantes; foi um ‘lugar’ social complexo e ambíguo, onde ideologia e cultura crítica se enfrentam e se opõem, dando vida a processos que, sobretudo nos Novecentos, ampliaram sua identidade e seu projeto, pondo-a ora como escola libertadora, ora como escola da conformação" (p. 207).

Fez parte dessa ampliação polemizar contra "a cultura pedantesca, contra os resíduos de escolástica medieval e do gramaticalismo humanístico (...), contra os ‘sorbonários’ e sua cultura formalista" (p. 211) – crítica que desembocou em projetos "fortemente conscientes dessa centralidade do pedagógico, que vêem um pouco como o ‘lugar’ de reconstrução orgânica da vida social, de conexão entre passado, presente e futuro, entre teoria e práxis, entre indivíduos e governo, com uma função estratégica global enquanto elemento substancial de construção do poder e de homologação da sociedade ao poder" (p. 213). É nas trilhas abertas por essa tendência que a criança foi conquistando centralidade no saber pedagógico.

Ora, as perguntas acerca da natureza da infância são inseparáveis da investigação acerca dos meios adequados de lidar com as crianças. Os saberes sobre a infância fomentaram a produção de saberes sobre a escola, isto é, o questionamento dos vínculos e estratégias institucionais mediante os quais elas são educadas. E parte decisiva dessa tarefa consistiu, inicialmente, em desvendar e criticar o tratamento oferecido aos alunos pelas escolas ditas tradicionais, isto é, aquelas cujas práticas pedagógicas eram tidas como ultrapassadas, uma vez que invariavelmente partiam de uma concepção equivocada também acerca da infância. Onde estaria esse equívoco? Precisamente na não-aceitação da criança como criança, mas como um terreno em que os educadores deveriam semear a vida adulta.

Essa crítica ao "tradicionalismo" foi sistematicamente levada a cabo pelos teóricos da Escola Nova. Partindo de uma oposição entre as práticas de uma "educação do passado" e as demandas de uma "educação do presente", os escola-novistas consideravam que a primeira impunha a repetição de tipos sociais e limitava sua tarefa à homogeneização de comportamentos necessária à coesão social. Julgavam que as aceleradas mudanças na última década do século XIX e início século XX demandavam o desenvolvimento das capacidades individuais, tendo em vista propiciar aos educandos instrumentos para acompanhar essas mudanças. A aprendizagem proposta pela Escola Nova teria de ser "um processo de aquisição individual, segundo condições personalíssimas de cada discípulo. Os alunos são levados a aprender observando, pesquisando, perguntando, trabalhando, construindo, pensando e resolvendo situações problemáticas que lhe são apresentadas, quer em relação a um ambiente de coisas, objetos e ações práticas, quer em situações de sentido social e moral, reais ou simbólicas" (Lourenço Filho, 1978, p. 151).

Desse diagnóstico deveriam resultar mudanças significativas no universo da educação escolar e na maneira de tratar os alunos. Na escola tradicional, "o trabalho dos alunos se caracterizava por uma atitude de receptividade ou absoluta passividade: um professor que falava e discípulos que deveriam ouvi-lo em silêncio, imóveis, de braços cruzados. Em classes mais adiantadas, os alunos que tomassem notas ou seguissem pelos compêndios as explicações do mestre; depois, a conferência do que com isso fosse fixado, em definições, regras, classificações, números e datas. O ideal seria a reprodução automática sem qualquer variação, ou sem que permitisse a expressão de possíveis diferenças individuais. Dar a lição, tomar a lição – eis em que quase se resumia a didática tradicional" (Lourenço Filho, 1978, p. 151). Segundo os escola-novistas, a criança era vista, no universo da educação "tradicional", como um ser que necessariamente tendia ao erro, ao qual deveriam ser oferecidos exemplos e padrões de comportamento. A infância seria, assim, permanentemente, uma etapa a ser superada. A natureza teria produzido um ser essencialmente imperfeito; educar consistiria em superar esse pathos.

Contra essa tradição escolar e essa visão de infância, a Escola Nova propunha uma "educação centrada na criança": era necessário desvendar as formas de pensar, sentir e agir peculiares à infância, para se conhecer e respeitar a "naturalidade" com que as crianças se voltam aos objetos externos. E, mesmo no interior dessa "natureza" cognitiva, não raramente se registravam inúmeras diferenças individuais, que a escola deveria acatar, organizando a atividade pedagógica e o convívio escolar de maneira que elas não fossem desconsideradas. A aprendizagem privilegiaria assim atividades de estimulação prévia ligadas ao interesse da criança, a formulação de problemas ligados a essas atividades, a coleta de dados que auxiliasse a superar situações problemáticas e formular hipóteses explicativas, e a constante experimentação, tendo em vista testar essas hipóteses.

Desse novo "olhar" resultaria uma gradual mudança na qualidade das relações entre o "mundo adulto" e o "mundo da infância". Preocupada com essa "novidade" e lançando um olhar sobre o panorama educacional norte-americano na primeira metade do século passado, Hannah Arendt (1954/1991), em "Crise na Educação", detecta inicialmente "um declínio sempre crescente nos padrões elementares da totalidade do sistema escolar" (p. 222). Na raiz do problema, ela localiza: 1) o "entusiasmo extraordinário pelo que é novo, exibido em quase todos os aspectos da vida diária americana" (p. 224), "a ilusão emergente do pathos do novo" que "possibilitou àquele complexo de modernas teorias educacionais originárias da Europa Central – as quais consistem em uma impressionante miscelânea de bom senso e absurdo – levar a cabo, sob a divisa da educação progressista, uma radical revolução em todo o sistema educacional" (pp. 226-227); e 2) a decorrente aceitação "servil e indiscriminada" de "teorias mais modernas no campo da Pedagogia" (pp. 227-228), sob "a influência da Psicologia moderna e dos princípios do Pragmatismo" (p. 231). O entendimento dessa "crise" demandaria, segundo Arendt, uma análise do "caráter destrutivo" (p. 229) dos pressupostos pragmatismas.

O primeiro "é o de que existe um mundo da criança e uma sociedade formada entre crianças, autônoma, a qual se deve, na medida do possível, permitir que elas governem. Os adultos aí estão apenas para auxiliar esse governo" (pp. 229-230). O segundo, "a Pedagogia transformou-se em uma ciência do ensino em geral a ponto de se emancipar inteiramente da matéria a ser ensinada" (p. 231). O terceiro, "o de que só é possível conhecer e compreender aquilo que nós mesmos fazemos", o que na educação consistiria em "substituir, na medida do possível, o aprendizado pelo fazer", diluindo-se a "distinção entre brinquedo e trabalho, em favor do primeiro" (p. 232). Que problemas teriam decorrido desses pressupostos, segundo Arendt?

Inicialmente, uma suspensão das "relações reais e normais" entre crianças e adultos. Qual "normalidade"? A autora pensa, sobretudo, numa "norma" social e politicamente tácita segundo a qual "pessoas de todas as idades se encontram sempre simultaneamente reunidas no mundo" (p. 230), e "a essência da educação é a natalidade, o fato de seres nascem para o mundo" (p. 223. Grifos nossos). Esse mundo consiste no repertório de tradições públicas, no qual caberia à educação iniciar os "nascituros", os "educandos". A educação é a mediação entre o velho – o mundo que está aí – e o novo – os que vieram a esse mundo que está aí.

Ora, esse mundo não parece ser referência significativa para o Pragmatismo educacional, para o qual relevante seria, antes de tudo, constituir "um mundo das crianças". Considerando, porém, a condição mesma de seres ainda não "iniciados" nas tradições públicas, não haveria nas crianças recursos inatos de constituição dessa realidade supra-individual. Antes, a tendência mais "natural" seria a de uma "autoridade de um grupo, mesmo que seja um grupo de crianças", sobrepor-se tiranicamente à "autoridade de um indivíduo isolado" (p. 230). Pense-se aqui em "tirania" como imposição irracional, em acordo, aliás, com uma tendência natural preponderante na infância. "Banidas do mundo dos adultos" (p. 230), não necessariamente as crianças dispõem de um princípio "auto-regulador" que faça contrapeso às tendências irracionais, isto é, socialmente tirânicas.

Observa Arendt ainda que, "abandonadas a seus próprios recursos", as crianças terminam por perder a eficácia da "fonte mais legítima de autoridade do professor, como a pessoa que (...) sabe mais e pode fazer mais que nós (elas) mesmos (mesmas)" (p. 231). Perdem assim também os elos com esse mundo. O problema central criado nas relações com a infância pela voga pragmatista estaria, pois, diretamente ligado a uma perda do sentido de autoridade.

Em Arendt, autoridade não deve ser entendida como exercício de um poder pessoal e carismático. Esse equívoco estaria na origem da "crise na educação". Ela aponta que uma "crise constante de autoridade (...) acompanhou o desenvolvimento do mundo moderno" (p. 128), estendendo-se para "áreas pré-políticas" como a criação dos filhos e a educação, "onde a autoridade no sentido mais lato sempre fora aceita como uma necessidade natural, requerida obviamente tanto por necessidades naturais, como o desamparo da criança, quanto por necessidade política, a continuidade de uma civilização estabelecida que somente pode ser garantida se os que são recém-chegados por nascimento forem guiados através de um mundo preestabelecido no qual nasceram como estrangeiros" (p. 128).

Essa noção de autoridade vinculada à de tradições públicas e à manutenção de formas de permanência e segurança do mundo serviu – admite Arendt – como modelo para uma grande variedade de formas autoritárias de governo e assim não raramente acabou por se confundir com "alguma forma de poder ou violência" (p. 129). A corruptela de autoridade na forma de violência, por sua vez, adentrou o mundo escolar e foi um dos alvos preferenciais da crítica escola-novista. O argumento de Arendt é o de que, elegendo a corruptela como alvo, o Pragmatismo em educação em nada contribuiu para uma necessária e complexa rediscussão da noção de autoridade no interior do sistema escolar. Antes, fez perder de vista, como referência essencial dessa rediscussão, o princípio de que é inerente à autoridade assumir uma autoria do processo civilizador e conservar elos da sociabilidade, tarefa amplamente vinculada, em última instância, a uma responsabilização pelo mundo. E, "na educação, essa responsabilidade pelo mundo assume a forma de autoridade" (p. 239).

Ora, o problema central para a constituição dessa autoridade é que "as exigências do mundo e seus reclamos de ordem" vêm sendo "consciente ou inconscientemente repudiados; toda e qualquer responsabilidade pelo mundo está sendo rejeitada, seja a responsabilidade de dar ordens, seja a de obedecê-las" (p. 240). Um crescente "estranhamento do mundo visível" (p. 242) – iniciado com "a perda de autoridade (...) na esfera política" que por fim atingiu também a esfera privada (p. 241) – veio a abalar, segundo ela, a "obrigação que a existência das crianças impõe a toda a sociedade" (p. 234). O crescente engajamento no discurso de negação da natalidade a partir dos anos 60 ("eu não ousaria pôr filhos nesse mundo") seria um eloqüente dessa já irrefreável recusa do mundo.

Como superar essa recusa? "Cumpre divorciarmos decisivamente", conclui Arendt, "o âmbito da educação dos demais, e acima de tudo do âmbito da vida pública e política, para aplicar exclusivamente a ele um conceito de autoridade e uma atitude face ao passado que lhe são apropriados, mas não possuem validade geral" (p. 246).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1) Ariès, P. (1981) História social da criança e da família (Dora Flaksman, trad.) Rio de Janeiro: Zahar.

2) Badinter, E. (1985) Um amor conquistado: o mito do amor materno (Waltensir Dutra, trad.). Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira

3) Cambi, F. (1999) História da pedagogia (Álvaro Lorencini, trad.). São Paulo: Editora UNESP.

4) Lourenço Filho, M. B. (1978) Introdução ao estudo da Escola Nova. São Paulo: Melhoramentos.

5) Arendt. H (1954). Between past and future: eight exercises on political thought. New York: The Viking Press (Edição brasileira: Arendt. H (1991). Entre o passado e o futuro (Mauro W. Barbosa de Almeida, trad.). São Paulo: Perspectiva).