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ISBN 85-86736-12-0 versão
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An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Out. 2002
Artigo: O silêncio como ato de lei
Marcelo Ricardo Pereira
Doutorando da FE/USP, professor da FAE/UEMG e psicanalista
RESUMO
Este artigo procura interrogar o declínio do mestre com base no ato pedagógico feito de silêncio e luz ao mesmo tempo. Para isso, pretendo interrogar as aprendizagens como efeitos discursivos, o esvaziamento da mestria e a diferença entre a lei e a regra com o intuito de entender o que a psicanálise tem a dizer acerca do mestre e do sujeito no ato de educar.
Palavras-chave: Declínio do mestre; subversão do sujeito; lei e regra; realidade do aluno
ABSTRACT
This article looks for a interrogation of the master's decline. it's based on the pedagogical act done on the silence and ligth at the same time. For this, intend to ask the learnings as discoursing effects, the empty of the master and the difference between law and rule to understand what the psychoanalysis has to say about the teacher and the subject during the education act.
Index terms: Master's decline; subversion of the subject; law and rule; student's reality
Reconheçamos que o ato de educar é também marcado por incongruências, descontinuidades e insurreições microssociais à revelia de modelos determinados por teorias educacionais embebidas de discursos científicos. Assim, ao invés de tão-somente estudar prescrições formativas para profissionais da educação, bem como formas de planejamento pensadas à luz dos fundamentos político-educacionais; ao invés de descrever metodologias e estratégias de ensino capazes de satisfatoriamente garantir aprendizagens; ao invés analisar práticas avaliativas menos ou mais ortodoxas que espelhem todo o aparato burocrático escolar; e, ainda, ao invés de enumerar as novas tecnologias educacionais e os novos campos de inserção dos tentáculos pedagógicos, interrogaríamos se nessas condutas toda uma outra prática discursiva ou todo um outro "saber não sabido" se encontram ali incluídos. Os atos pedagógicos não compõem apenas um corpo de conceitos de que se pode falar, nem um jogo de escolhas prescritas, num campo de enunciações possíveis, mas compõem um sistema de gestos, valores, proibições, pulsões e subversões, que devem ser descritas noutro feixe de relações. Educadoras e educadores constróem saberes da experiência nas relações do dia a dia, independente da episteme (Foucault, 1995), que os levam a superar seus problemas concretos, a tomar decisões efetivas e imediatas, a inventar surpresas no cotidiano diante do desinteresse de alguns, a agir nas condições de incertezas, com base também, quem sabe, numa pulsão de domínio ou no seu declínio.
O SILÊNCIO
Problematizemos esse fato. Uma docente de escola pública, com boa inserção junto à comunidade, relatou-me sua experiência sobre uma aula de Geo-História em sua turma de segunda série do ensino fundamental. Tal experiência foi me revelada logo após uma "reunião pedagógica" da qual participei como ouvinte, convidado pela direção da escola, e que teve como pauta a análise da atividade dessa professora realizada em classe.
Essa atividade, subdividida em três momentos, consistiu em realização de maquetes e reflexão sobre as mesmas. No primeiro momento, cada aluno e cada aluna construíram maquetes das ruas onde moravam, detalhando-as ao máximo. Em seguida, listaram do que era consistida cada maquete (casas, prédios, padaria, farmácia, ponto de ônibus, asfalto ou não etc.).
No segundo momento, a professora solicitou que em pequenos grupos analisassem o trabalho uns dos outros e levantassem o que estaria faltando para que a rua de cada aluno e cada aluna ficasse melhor para morar. Listou-se as necessidades de calçamento, supermercados, linha de ônibus, segurança policial etc. Cada estudante opinou sobre o trabalho do/a colega do grupo.
Por fim, no terceiro momento, também a pedido da professora, todos em círculo debateram sobre os encaminhamentos possíveis de tais necessidades. Ou seja, o quê poderia ser feito para que a rua de cada um pudesse contar com o que foi apontado na lista de necessidades. Os alunos e as alunas, então, estabeleceram amplas sugestões: convocação do "Aqui e Agora" ou "Globo Cidade" para televisionarem a denúncia, elaboração de "abaixo-assinados" para serem encaminhados aos órgãos competentes, fundação de "Associação de Bairro" para lutarem pelas melhorias, tomar parte no "Orçamento Participativo" da prefeitura local etc.
Essa professora pôs-se a comunicar tal atividade à equipe da escola em "reunião pedagógica". Uma polêmica porém foi gerada em torno de um determinado aluno residente em uma favela nas proximidades da escola. Esse aluno não construiu a maquete do lugar onde morava, a saber, um beco dessa favela. Ao contrário, construiu uma miniatura de uma rua imaginária (ainda que existente no bairro) com pontos de referência demasiado habituais – mesmo ciente de que os colegas haveriam de desmascará-lo, como assim ocorreu. Ao longo da realização da atividade, vários colegas chamaram a atenção da professora para denunciar o garoto e sua maquete imaginária. Ela aproximou-se do trabalho desse garoto, percebeu seu investimento em realizar a tarefa e sua posição incólume diante das denúncias. Fez-se de rogada e confessou-nos: "não sabia bem o que fazer. Fiz silêncio, deixei que ele continuasse. Queria ver o que ia acontecer..." (sic).
Na reunião, porém, as demais professoras inquiriram-na sobre o "equívoco" de não ter trabalhado a realidade do aluno. Ora, se a sua realidade era uma habitação na favela, logo a maquete deveria representar tal realidade até mesmo para que o aluno pudesse perceber e "tomar consciência" dos limites que sua realidade lhe impõe para querer transformá-la – defendeu a equipe.
Esse argumento das professoras levou a docente inquirida a relativizá-lo enfaticamente, ainda que a percebesse um tanto enrubescida: "mas para vocês o que é a realidade do aluno? A maquete precisa concretamente representar a realidade dele? E se a fantasia que ele imaginou para construir sua maquete for em si a sua realidade? Quem sou eu para ficar cobrando dele uma coisa que não representa algo em si para ele? Ora, ele afinal fez o que eu havia pedido: eu pedi que fizessem uma maquete da rua (enfatizou o termo!) onde moravam, não do beco, da avenida ou de outra coisa. O meu pedido já traz em si um equívoco social de pensar que todo mundo reside numa rua" (sic). E acrescentou ao longo do debate que se criou: "o importante é que realidade ou não, esse aluno queira transformar o que criou... É uma semente, quem sabe?" (sic).
Intuo que o cotidiano dessa professora transita pelos campos das idéias de Freud, ainda que ela sequer dê conta disso. É possível que sua prática toque nos limites de uma educação técnico-racionalista e a faça confrontar-se com a radicalidade contingencial da experiência. Os choques culturais, históricos e de classe, bem como os sofrimentos e estratégias com base numa verdade biográfica do desejo lançam o ato de educar de uma professora como essa numa descontinuidade inefável, opaca e desconcertante.
Ao realizar um trabalho consentâneo ao exercício de cidadania e conscientização social, ao mesmo tempo que lida nesse trabalho com as fantasias, projeções e incongruências manifestadas ora por si, ora pelos seus sujeitos em formação ou ora pelos sujeitos da equipe pedagógica que a interrogaram, a educação para tal professora torna-se um problema e não uma solução. O que há de se formar e se relacionar com um Outro quando se experimenta a força irredutível do inconsciente e a dissimulação de exploração através de uma moral alienante? Lidar com a realidade/fantasia de um sujeito cuja pulsão que a faz advir é opaca, bem como lidar com uma vigilância da burocracia escolar que, involuntariamente, força a fragmentação do trabalho e a expropriação do saber, pode contribuir de modo severo para uma professora como essa evadir-se de seu desejo, levando-a a mais uma prática anônima, estandartizada e perigosamente linear. A ilusão em uma educação racionalista: o que mais poderia querer a complacente negação do inconsciente?
Uma prática de ensino cujos princípios sustentam o legado de Freud dependeria, do ponto de vista metodológico, do esvaziamento da mestria para causar aprendizagens nos sujeitos em formação? Um paradoxo aí se apresenta: a aprendizagem própria de cada sujeito induz um professor ou professora que exerça o ensino a partir de um mesmo lugar de mestre vazio. Ou seja, induz um professor ou professora depositária dos sentidos de cada aluno ou aluna a partir do lugar de mero suporte esvaziado de seus próprios sentidos e saberes. Será mesmo assim?
Admito, na verdade, que a aprendizagem ocorre também em situações e fenômenos pedagógicos nos quais indifere se o docente ocupa ou não o lugar de mestre enquanto discurso. O "declínio do mestre" na psicanálise residiria no ato concreto do fazer induzido por um saber em trabalho. Portanto, é o ato do mestre que o faz declinar-se e não a sua incumbência metodológica de se esvaziar a priori para que ocorra o fenômeno pedagógico da aprendizagem.
Tomemos o fragmento do caso da professora em referência a fim de entender melhor tais proposições. Tratou-se, decerto, de uma docente inflada de saberes e intenções que almejava levar seus alunos e alunas a um estado de consciência política e social que provavelmente seus ideais de mestria a conduziram. O fato do aluno residente na favela subverter a ordem da atividade proposta representa a insurreição do inusitado no campo pedagógico. O avesso. A contingência. A resposta da professora ao fato foi o silêncio. O silêncio foi o seu ato. Disso resultou vários desdobramentos: o aluno permaneceu envolvido na atividade, os demais colegas se alongaram na inquietação, a equipe pedagógica insurgiu-se em um obstinado debate sobre a intervenção da professora, etc.
Diante do ocorrido, ela poderia ter tomado várias atitudes de caráter moralizante, que apontaria mais para um ideal educacional do que para uma intervenção simbólica: chamar a atenção dos alunos delatores; avaliar o trabalho do aluno e conversar com ele sobre o fato em detrimento de sua real condição habitacional e econômica; concordar com a equipe pedagógica e gerir o problema com base na conclusão dessa equipe etc. Porém seu ato de silêncio foi a resposta dada ao ocorrido. Resta-nos, pois, saber de que ordem tal resposta dada faz cumprir um ato de mestria, que inaugure um traço simbólico na deposição de idealizações e reforçamentos imaginários.
A LEI
Para Imbert1, qualquer sujeito desviante em condutas escolares, a exemplo de um delinqüente, demanda um mestre que lhe interdite, sob o prisma da lei simbólica e não da regra tomada na sua inscrição imaginária. Desviados, loucos, crianças violentas querem se fazer sujeitos. Eles e elas exigem e aspiram o simbólico que lhes cale o imaginário. Esperam que o outro invente o caminho, que dê o primeiro passo para que o convide a dar o seguinte. Cada um dos desviados, por mais que desdenhem as experiências pedagógicas, demandam que se invente outra coisa capaz de intervir em seus efeitos de gozo. Ao contrário disso, o imaginário produz confusão dual. A conduta escolar parece abusar das regras, do ordenamento, da moral. Então, uma exigência se faz capital: a de introduzir nos espaços educacionais e de massa a lei como instância simbólica. As atividades repressivas das instituições educativas geram desertores. Mesmo aquelas que declinam do autoritarismo e abusam da não-diretividade, trabalham sob o viés da lógica imaginária, ou seja, trabalham sob o viés especular dos ideais educacionais.
A práxis pedagógica retoma o agregamento via identificação simbólica e não via segregação imaginária de quem merece ou não o lugar ideal no espaço educativo. Cabe ao professor ou professora oferecer-se como objeto, em ato, para a aluna e o aluno advirem como desejante. Nesse sentido, o/a docente deve declinar-se, sim, da mestria enquanto imagem e restituí-la enquanto instância de lei. O sujeito, aí, pode em si trabalhar sozinho, pois o ato da práxis educativa gera deslocamentos de posições subjetivas. Isso é um efeito solitário. É como se dissesse aos sujeitos: saia do bolo e encontre suas marcas! Ora, nada disso tem a ver com práticas não-diretivas, que não passam, por assim dizer, de impulsos incestuosos e não castrados.
A saída se dá via dimensão simbólica, que permite ao sujeito descentrar-se de suas modalidades de gozo imaginárias e colocar ali outra coisa. A demanda do mestre dirige-se a um "sujeito-planeta", totalmente submetido à sua lei, identificado, definido e preso em circuito fechado. Assim a "boa aluna" e o "bom aluno" correm o risco de serem privados de qualquer ex-sistência possível – sua assunção enquanto sujeito fora da palavra que moraliza. No prevalecer do imaginário, há o esquecimento da diferença. O sujeito histórico e social, do qual se subtrai o do desejo, é substituído pelo sujeito abstrato, idealizado e des-historicizado.
Os interditos trazem o desejo, paralisam o gozo e operam atos, que, por sua vez, convocam autores – sujeitos da própria causa. Optar por esse campo é não fazer do aluno ou da aluna um igual. O desejo do professor ou da professora passa então por um engajamento ético. Para Lajonquière (2000), que partilha da tese de Imbert, tal engajamento gira em torno do deslocamento do imaginário para o simbólico ao lidar com o real. A regra e a lei são dois momentos da dimensão simbólica em cuja primeira paralisa uma inquietação imaginária: a pulsão de mestria, a busca da boa forma, opondo-se, assim, ao objetivo de ex-sistência de sujeitos.
O professor e a professora devem recuperar sua posição de mestre para sustentar a palavra verdadeira via identificação e operar aprendizagens como efeito discursivos. A mestria deve se declinar de sua imagem para ajudar o sujeito a reconhecer a palavra (plena), portanto, simbólica. No âmbito da pedagogia institucional, um educador ou educadora que escuta, que deixa falar, permite, a cada sujeito ter acesso a uma "fala verdadeira". Isso só se dá na medida em que esse sujeito adquiriu precisamente desse educador ou dessa educadora a lei da linguagem, como traço distintivo (Cifali & Imbert, 1999).
A função de mestre, portanto, é realmente a de subversor. Seu fracasso é simples: suprimir a diferença entre a regra e a lei, limitando-se a dar testemunho da primeira. Como foi assinalado, a regra é parasita da inquietação imaginária e convoca a pulsão de mestria. Trata-se da invocação do paradisíaco, do nirvânico, daquele mundo no qual não se envelhece, que se está acima da lei. Aqui, faz-se uma pedagogia frouxa, que tem de apelar às normas e às técnicas para fazer-se valer. Alunos e alunas são tomados como puros objetos reflexos. Do outro lado, a lei institui a ex-sistência por evocar um simbólico que invente a pura diferença, obtida apenas em ato. Uma pedagogia orientada para a lei, só se faz às custas de uma restituição simbólica, esvaziada de moral, que reconhece a finitude e incompletude dos sujeitos. Trata-se de uma educação orientada para o traço que, sob proposições lógicas, institui cada sujeito como efeito de um "resto" contigente em detrimento de um social como efeito de um "todo" necessário.
Nesse sentido volto a sublinhar: o ato de educar deve ser marcado talvez pelo declínio do mestre enquanto construção imaginária, porém reconvocado sob a lei simbólica que, a meu ver, interviria no imperativo pulsional, barraria efeitos de gozo e repetições e faria sujeitos advirem em novas posições de ex-sistência.
Estou persuadido a concluir que o ato de silêncio da professora diante da subversiva maquete de seu aluno é um ato de mestria. Seu ato declina esse mestre ideal, revestido de imagens, sabedor de tudo, para fazer valer um mestre que inventa o caminho, que possibilita a identificação simbólica e faz criar no sujeito sua marca de inclusão. Seu silêncio, como ato, é subversivo, pois, acredito, faz implicar um sujeito na sua pura diferença, retira vozes imaginárias das especularidades dos colegas, faz esvaziar as regras moralizantes da equipe pedagógica. O silêncio só se fez ato de lei, se assim o for, por sustentar uma característica simbólica, no viés oposto da fixação do discurso universitário. A professora mostrou-se capaz de renunciar à sua figura, aos benefícios imaginários de sua função e, assim agindo, sob a tutela do inconsciente, permitiu talvez um garante das leis estruturantes daquele sujeito. Ela pouco ou nada sabe disso: trata-se de um saber não sabido, somente precipitado em ato, que remete o sujeito a um traço simbólico e não à sua imagem idealizada de professora em suas exigências pulsionais de domínio. Essa professora parece captar seu acometimento oportuno, mesmo de maneira ignota, pois crê na transformação do aluno, ainda que consinta com a ambigüidade do seu ato de mestria: "é uma semente, quem sabe?"
O mundo se repete mal é porque há um imperceptível avanço.
Guimarães Rosa
Referências bibliográficas
CIFALI, M & IMBERT, F. Freud e a Pedagogia. SP: Loyola, 1999.
FREUD, Sigmund. "Psicologia dos grupos e análise do ego". In: ESB, vol. XIII [1921], RJ: Imago, 1976.
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. RJ: Forense, 1995.
IMBERT, Francis. A questão da ética no campo educativo. Petrópolis: Vozes, 2001.
LAJONQUIÉRE, Leandro. A ilusão (psico)pedagógica. Petrópolis: Vozes, 2000.
1 Imbert, F. A questão da ética no campo educativo, 2001 (lançamento na França em 1987).