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ISBN 85-86736-12-0 versión on-line

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2002

 

Os dramas cantados de Guriú e uma história para aprender sobre o brincar do passado

 

 

Maria da Glória Feitosa Freitas

 

 


RESUMO

Pesquisaremos como se recalca e se revitaliza, como se monta, desmonta, remonta essa suposta corrente de filiação simbólica que interligaria antigos e atuais brincantes de dramas em Guriú. Existe mesmo esta corrente de filiação simbólica?

Palavras chaves: Dramas cantados, Filiação simbólica, Psicanálise


ABSTRACT

We will search how is repressed and revitalised, how is assembled, disassembled, reassembled this supposed trend of symbolic affiliation which would connect old and current drama-players in "Guriú". Does it actually exist this symbolic affiliation trend ?

Index terms: dramas cantados, affiliations, psychoanalysis


 

 

Nossa investigação sobre o brincar infantil, das ilusões da Psico(bio)logia dos jogos infantis ao desejo de fazer de conta que é adulto (ou as contribuições da Psicanálise), realizada desde 1996 nos fez descobrir os dramas cantados nas conversas com ‘brincantes’ de diferentes gerações em Guriú, uma comunidade localizada no litoral Oeste do Ceará.

Refletimos, até 1999, sobre certas posições hegemônicas da Psicologia do jogo, e compreendemos que algumas teorias levam a crença na possibilidade de estimular capacidades maturacionais com jogos infantis. Os adultos que assim agem são considerados portadores de idéias avançadas! São dignos da titulação de ‘modernos’. Sendo assim, pais modernos não se arriscam a construir brinquedos com latas, mas engajam-se nas tarefas de comprar e entregar aos seus filhos os brinquedos a serem consumados em uma faixa etária específica, e de modo já prescrito.

As memórias das avós nos relataram que os dramas cantados eram apresentações públicas ocorridas nas suas infâncias, destinadas ao povo em geral de Guriú. Até 1999 os gestos, músicas, vestes e apresentações tinham ficado para trás! A televisão tinha trazido as suas cores, suas novelas, suas danças e novas atrizes. Com a chegada da televisão (1988) e seu sabor de melancia doce, ficavam para trás (na memória das idosas) o que tinha gosto de maxixe sem gosto (os dramas cantados). Assim ouvimos dizer em Guriú. Mortos ou recalcados estavam os dramas que o povo pagava para ver ? Ouvíamos as pessoas desta comunidade e refletíamos sobre as influências de certos pensamentos hegemônicos da Psicologia agindo a favor de uma psico(bio)logização do brincar das crianças atuais.

Refletimos sobre as manifestações lúdicas de Guriú de ontem e de hoje. Os dramas cantados pertenciam a este universo. Pensando nos relatos dos dramas cantados do passado "insistimos em pensar o brincar infantil para além do pré-exercitamento de funções (Groos) ou de herança instintiva dos antepassados (Stanley Hall). Essas meninas de ontem, dramatizando cenas de amor correspondidos ou fracassados, realizavam um desejo que as acompanhava sempre : serem adultas".(FREITAS, 2000a)

Terminamos de escrever a Dissertação e voltamos ao Guriú (2000) com uma cópia dos escritos para ofertar à comunidade. Neste momento, constatamos que os dramas tinham voltado espontaneamente a serem encenados. Uma Professora aposentada conduziu os ensaios; confessou à época "que a empreitada é dura, os desafios são imensos. Em alguns momentos tem vontade de desistir. Mas vai tentando! As meninas querem adaptar os dramas cantados às danças da Xuxa. Ela insiste em que devem incorporar personagens, ser atrizes, representar. Ir além da reprodução da dança da bundinha."(FREITAS, 2000b).

Pensamos, neste momento, em apoiar o movimento colaborando com o planejamento de uma apresentação pública de Drama cantado. Os educadores não se sentiram motivados, a responsável pela apresentação de 1999 recusava nova apresentação. Julgava o terreno arenoso demais. Nossa principal memorialista negava-se a contribuir com a sua preciosa memória em prol de ensaiar as mocinhas. Julgava a tarefa difícil demais. Parecia que a dança da TV tinha vencido os dramas cantados do passados!

Meses depois, em abril de 2000, recebemos convite para assistir um ‘drama’. Duas mães ocuparam-se de ‘treinar’ suas filhas e nossa presença foi solicitada. Os velhos dramas voltavam? As antigas comédias de drama retornavam a seduzir público? Nossos ouvidos acostumados aos dramas pela única via possível - a memória das avós - voltavam a ouvir dramas cantados e nossos olhos viram meninas dançando (em nome do passado?). Paradoxalmente, os nossos ouvidos puderam ‘ver’ os dramas.

Foi possível fotografar e gravar a velha história da índia Tapuia e perceber o quanto a apresentação desta peça antiga prendia a atenção dos presentes, naquele chuvoso dia de abril. Uma menina fantasiada de índia cantava uma música que por quinze anos estava apenas guardada na memória de antigas dramistas:

Sou bela tapuia
venho da floresta
com arco e a flecha
nas relvas a cantar
mas eu sou prevista
do poder divino
e os meus irmãoszinho já vem encontrar

E escuta um jovem marinheiro a lhe dizer:

Tapuia, o teu corpo
é lindo e bem feito
se torna desfeito
vestido azulão

E a Tapuia responde:

Não quero carinho
não tenho ambição
sou pobre tapuia
lá do meu sertão

Tapuia e o sedutor marinheiro continuam ...

Vamos a bordo
tomar um conforto
tem pires de doce
tem cálice de vinho

Não quero carinho
seus ouros são falsos
meus pés não se estragam
eu andando descalço

Vamos a bordo
tomar um conforto
tem pires de doce
tem cálice de vinho

Não quero carinho
sou pobre tapuia
não bebo nocopo
só bebo na cuia

Com o retorno dos dramas cantados, a nossa memorialista tinha tomado um lugar de destaque e passou a ser procurada para relembrar frases, letras e músicas de antigos dramas cantados a serem ensaiadas e mostradas ao público diversificado e que deixou a televisão fechada, em um sábado à noite e foram aplaudir as suas meninas. Duas casas ao lado, nossa memorialista dormia. Seria possível pensar que ela dormia um sono tranqüilo e dos justos, dos que não tem mais dívida simbólica com os dramas cantados a pagar?

Começamos a perceber, em visita realizada em 2001, que este (re)descobrimento dos dramas envolvia um grupo dividido entre as mocinhas que dançavam, suas mães que costuravam as roupas de papel crepon e ensinavam falas, gestos, danças e músicas e as memorialistas que eram consultadas para fornecer letras e músicas das ‘comédias do drama’. Outro adulto tocava sanfona e teclado e dava ensinamentos de educação musical e até postura no palco.

Se tínhamos a sensação de conclusão das nossas inserções em Guriú, fomos percebendo que havia um caminho não trilhado, aberto pela novidade da re-atuação dos antigos dramas. E as falas dos espectadores e do grupo responsável pelas apresentações (em junho de 2001 houve nova apresentação) foram lançando-nos novos problemas. Havia uma filiação simbólica agindo entre atrizes e adultos? Havia muito ainda para compreender sobre passado, presente e futuro(?) dos dramas cantados.

A partir de 2002, iniciando o Doutorado na UFC, nos propomos a pesquisar como se recalca e se revitaliza, como se monta, desmonta, remonta essa suposta corrente de filiação simbólica que interligaria antigos e atuais brincantes de dramas em Guriú. Existe mesmo esta corrente de filiação simbólica?

Lajonquière diz que "a educação, na medida em que filia, entre (os) outros, o mestre de plantão e o aprendiz circunstancial a uma tradição existencial, possibilita que cada um se reconheça no outro; isto é, que cada um reconheça que o outro porta uma marca semelhante à sua."( LAJONQUIÈRE, 1997, p.p 27-43)

Essa intenção de retorno ao Guriú, e que se expressa por meio do nosso Projeto de Doutorado (ingressamos no Programa de Pós-Graduação da Faced-UFC em setembro de 2002) poderia nos esclarecer sobre as nossas suposições. Seriam educadores todos os adultos responsáveis em todos os tempos em ensaiar dramistas-meninas? Poderíamos chamar essas mulheres de Mestres de drama e as meninas-mocinhas de dramistas aprendizes ou aprendizes de dramas? Haveria um 'método' menos ou mais apropriado de ensinar dramas? Ou as mestres de drama inventavam suas 'estratégias' no caminhar? Será que cada uma das que denomimamos de mestres de drama agem com as suas marcas pessoais? São movidas pelo desejo de ensinar os dramas as novas gerações? E as meninas dramistas aprendem por amor as suas mestres de drama?

A Psicanálise nos auxilia a compreender que o aprendiz aprende muito mais com o educador, por amar este educador, por transferir-lhe o poder de saber ensinar, do que com os métodos, por amar este educador, por transferir-lhe o poder de ensinar, do que com os métodos, por mais alegres que possam parecer. Aprendemos com Lajonquière a ter um maior respeito pelas práticas que cada educador vai elaborando ao desempenhar o seu ofício, já que "todo aquele que ensina o faz, obviamente, porque, alguma vez, deve ter aprendido, ao menos, aquilo que tenta transmitir. Aquilo que o mestre ensina, embora seja dele, pois apr(e)endeu, não lhe pertence. O aprendido é sempre emprestado de alguma tradição que já sabia o que fazer com a vida. Assim, aquele que aprende, de fato, contrai automaticamente uma dívida que, embora acredite às vezes tê-la com seu mestre ocasional, está em última instância assentado no registro dos ideais ou do simbð3lico." (LAJONQUIÈRE, 1997, pp. 27-43).

O que nos revelarão as falas das antigas dramistas e das atuais? Suas histórias de vida recheadas de dramas cantados e dançados confirmarão nossas atuais suspeitas? Como esta nova fase em Guriú apenas começou, só nos resta esperar e deixar mais uma vez que as memórias pulem os antigos baús guardados pelas avós de Guriú. Portanto, esperemos!

 

Referências Bibliográficas

FREITAS, M.G.F. (2000a) Do brincar infantil ou do desejo de fazer-de-conta que é adulto. in.: A Psicanálise e os impasses da educação - Anais do I Cóloquio do Lugar de vida - LEPSI. São Paulo, Annablume, pp. 243-251)

FREITAS, M.G.F. (2000b) Do drama cantado à dança da bundinha : Brincar é fazer-de-conta que é adulto? Estilos da Clínica, n. 8, volume V, pp. 243-251.

LAJONQUIÉRE, L. de. (1997) Dos erros e em especial daquele de renunciar á educação: notas de psicanálise e educação. Estilos da Clínica, n. 3, p.p. 27-43.