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ISBN 85-86736-12-0 versión on-line

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2002

 

O Brincar no Primeiro Ano de Vida

 

Playing in The First Year of Life

 

 

Michele KamersI; Carla R. CumiottoII

IPsicóloga e Mestranda em Psicologia e Educação na FE da USP.
IIPsicanalista, professora e supervisora da Fundação Universidade Regional de Blumenau - FURB

 

 


RESUMO

Este trabalho procura elucidar como se dá o processo de constituição subjetiva do bebê no primeiro ano de vida e sua relação com o desenvolvimento psicomotor desde a perspectiva da psicanálise, visando à importância da função do brincar no processo de humanização.

Palavras-Chave: Psicanálise; Bebês; Brincar


ABSTRACT

This work aims to elucidate how the process of subjective constitution of the baby in its first year of life occurs and its relation with the psychomotor development from the perspective of the psychoanalysis, highlighting the importance of playing in the process of humanization.

Key-words: psychoanalysis; babies; playing


 

 

Em Psicanálise, falar em constituição subjetiva e desenvolvimento psicomotor implica em dizer que, sem desejo não há sujeito, não há estruturação possível, e sem subjetivação não há desenvolvimento (Levin, 1997). O humano, por carecer de um instinto de humanidade, necessita fundamentalmente da presença de um Outro desejante para humanizar-se. O que implica em dizer que "O Outro é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer" (Lacan, 1988, p.194). Dito de outro modo, todo o desenvolvimento está fundamentado na qualidade dessa relação, que tanto pode "impulsionar" o desenvolvimento de todo aparato orgânico e genético próprio à espécie, dando-lhe vida, como "impossibilitá-lo", o que ocorre em sintomatologias graves presentes na infância.

É a partir do meio ambiente que ocorrerá a maturação das estruturas nervosas do bebê, a mielinização do seu sistema nervoso. Contudo, em se tratando do primeiro ano de vida, de que ambiente falamos?

Trata-se do ambiente chamado desejo materno. Falamos isto, pois, não nos referimos a estímulos externos que irão propiciar o desenvolvimento do equipamento nervoso. Mas, que é a partir da captura desse corpo pelo desejo de um Outro, que veja nele para além de um orgânico a ser estimulado, que antecipe aí um sujeito, que dar-se-á esse desenvolvimento. Como nos diz Spitz, "Para o recém-nascido o meio ambiente consiste, por assim dizer, em um único indivíduo, a mãe ou um substituto dela. Mesmo este único indivíduo não é percebido, pelo recém-nascido, como uma entidade distinta de si mesmo" (1979, p. 31).

No início há uma relação fusional entre mãe e bebê, um total estado de indiferenciação eu-outro, já que esta diferenciação implica na constituição de um "eu" no processo de subjetivação, de uma unidade corporal, o que se estabelece no estadio do espelho. Algo que pode ser articulado ao que Lacan designou como as duas operações de causação do sujeito – a alienação e a separação. Dialética essencial para se pensar o advento do sujeito e sua dependência em relação ao significante provindo do campo do Outro.

Nesse sentido, o Outro Primordial (a mãe), dá uma significação particular àquilo que inicialmente é da ordem do orgânico. Ou seja, esse orgânico sofre o efeito da linguagem, que o significa. E aqui entramos num ponto fundamental dos efeitos dessa significação, que é justamente a primeira experiência de satisfação do bebê.

Trata-se de uma experiência que funda uma falta radical, já que não há objeto que possa satisfazer a pulsão. Diante de uma necessidade fisiológica, de uma tensão, o organismo tem reações reflexas, como por exemplo, o choro, mas, um choro que é tomado pelo Outro Primordial como uma demanda. Nesta introdução de um investimento, mais especificamente, o significante, que se instalará essa falta radical, já que houve, a partir desse investimento, uma marca. Agora, se o bebê chora, chora em busca dessa vivência primeira de satisfação, vivência mediada pela representação.

Sabemos que esta busca se repetirá, na medida em que aquela experiência primeira de satisfação, coagulada em representação, não se faz possível. Então, o que ocorre é uma alucinação, já que na ausência do objeto real, somente é possível o re-investimento da representação (Garcia-Roza, 1991). "O objeto se apresenta, inicialmente, em uma busca do objeto perdido. O objeto é sempre redescoberto, o objeto tomado ele próprio numa busca (...)" (Lacan, 1995, p.25).

Para o bebê, agora se abre a possibilidade do registro do prazer, a nível psíquico, por oposição ao registro do desprazer. "O princípio do prazer, nós o identificamos com uma certa relação de objeto, isto é, a relação com o seio materno, enquanto o princípio de realidade foi identificado por nós ao fato de que a criança deva aprender a dele se abster" (Lacan, 1995, p.33). Ou seja, "(...) o regulamento do prazer/desprazer interfere na maturação neurológica da criança. No bebê o desprazer tem relação com a realidade orgânica. O prazer ocorre na realidade psíquica" (Velasco, 1996, p.24).

É a partir desta série prazer/desprazer que se dará o que Winnicott denominou "experiência de onipotência do bebê". Que frente a uma tensão interna, o bebê poderá evocar a representação para satisfazê-la. Momento em que a mãe coloca o seio na boca do pequeno e este tem a ilusão de que ele criou o seio. Contudo, "(...) não poderia tê-lo feito se a mãe não tivesse chegado com o seio exatamente naquele momento" (Winnicott, 1999, p.90).

Mas há uma problemática nessa experiência. Pois, para que o bebê possa alucinar esse seio (que se trata da representação do apaziguamento da tensão) ele tem que ter esse registro, essa representação. Por outro lado, a presença de uma "mãe suficientemente boa" que coloque esse seio no exato momento da alucinação, para dar ao bebê a ilusão de que ele criou esse seio, dar a ele uma "ilusão de onipotência", de controle sobre o ambiente. O que implica na existência de uma modificação imediata do ambiente, para que assim, o bebê possa associar a realidade interna com uma "suposta" realidade externa correspondente. Não que para ele haja duas realidades, já que há uma indiferenciação "eu-outro", mas, que o bebê necessita do constante investimento externo para manter viva a representação. Trata-se de um jogo imaginário, que possibilita à mãe dar ao bebê a ilusão de uma unidade, de completude.

Algo que pode ser pensado a partir da antecipação subjetiva que o Outro Primordial realiza sobre o bebê, de uma antecipação realizada no campo do Outro (Lacan, 1988). Sendo justamente essa antecipação que permitirá à criança sair do caos pulsional na qual se encontra, momento em que está em cena o apaziguamento do mal-estar produzido pela exigência de satisfação e sua organização a partir da assunção à imagem de si no olhar do Outro – o estadio do espelho.

A partir desse contexto, partimos da hipótese de que no primeiro ano de vida está em cena um trabalho do pequeno em apropriar-se do seu corpo, trabalho este que faz brincando.

Falamos de um brincar enquanto atividade mediada pela linguagem e não de um automatismo do bebê consigo mesmo. Um brincar referenciado pelo Outro, já que antes mesmo de o bebê brincar com seu próprio corpo, este tem que ser apresentado a ele.

Nesse sentido, Rodulfo (1990) nos diz que a primeira função do brincar, antes do Fort-Dá descrito por Freud, consiste em esburacar, fazer borda. Trata-se de um brincar que:

(...) pode-se verifica-lo em qualquer bebê de certa idade, que se lambuza com todo entusiasmo, e depois unta o que está a seu redor: toma a papinha, estende-a, formando uma película homogênea, momento em que, se alguém vai tocar esse menino que está comendo, nota-o engordurado, época da criança sempre besuntada por alguma substância imprecisa, mistura de caramelo, muco, baba, sopa, tudo o que sirva como matéria-prima (p.95).

Momento em que o bebê, ainda não apropriado dos recortes, das marcas inscritas em seu corpo pelo Outro primordial, trabalha (brinca!) no sentido de ir se apropriando dele. É através do esburacamento que se estabelece os limites corporais, das idas e vindas com a comida, dos lambuzar-se que vai se constituindo as bordas erógenas. Contudo, se dissemos que se trata de ir constituindo, é porque nesse momento, há um caos corporal, uma indiferenciação que necessita de ordenamento.

Para o bebê, essa papinha, esse muco, faz parte dele. Isto nos faz lembrar uma situação "curiosa" e "engraçada" ocorrida em nosso trabalho em uma creche.

Estávamos no berçário conversando com a educadora, enquanto os bebês, que em sua maioria tinham entre seis a sete meses, estavam brincando no chão. Então, chega um momento em que nos deparamos com a seguinte situação:

Um dos bebês que estava engatinhando pela sala, um momento senta. O curioso é que ele sentou no colo de um outro bebê de sua idade, sem ao menos se dar conta disso. O bebê que estava embaixo permaneceu numa total indiferenciação frente ao coleguinha que estava sentado no seu colo, como se nada tivesse acontecido!

Estamos referenciando essa situação para demonstrar que se tratava de uma indiferença psíquica, no sentido de uma não-unificação corporal. Já que esta implicaria nos limites do corpo, na apropriação deste, e portanto em uma imagem corporal.

Trata-se de uma imagem provinda do campo do Outro e que é apropriada pelo sujeito. Mas, para que isso seja possível, é necessário que se inicie uma separação.

Momento em que é de fundamental importância que haja uma desilusão gradual às necessidades do pequeno. Ou seja, que essa realidade externa não seja tão correspondente. Que a função materna possa ter falhas, furos e faltas (Garcia Yañes, 2001), para dar lugar ao que Lacan designou Função Paterna - função de corte na completude imaginária presente na simbiose mãe-bebê. Processo fundamental que Winnicott (1975) chamou de Objetos transicionais ou fenômenos transicionais.

Nos referimos às fraldinhas, aos ursinhos, aos travesseiros que os bebês de idade entre 4 a 12 meses não largam de forma alguma. Que por mais sujos e lambuzados que possam estar, seria um "crime" pô-los na lavação. Seria uma ameaça à integridade da criança, justamente por esse objeto fazer parte dela.

Trata-se de objetos que designam um deslocamento da relação auto-erótica do bebê para uma relação com os objetos do mundo exterior. Sendo justamente nesse momento que se abre a possibilidade para o brincar, em estritos termos psicanalíticos, o acesso ao simbólico, já que é dele que provém à aquisição da linguagem.

Falamos da presença-ausência, ilusão-desilusão, experiências que permitem ao bebê uma transição da posição de objeto do desejo materno a de sujeito desejante. Implica na passagem do bebê, da experiência de controle mágico do ambiente (ilusão), ao controle pela manipulação de objetos. Como nos diz Lacan (1995, p.34): "Todos os objetos dos jogos da criança são objetos transicionais. Os brinquedos, falando propriamente, a criança não precisa que lhe sejam dados, já que os cria a partir de tudo o que lhe cai nas mãos".

Trata-se do brincar enquanto experiência que permite à criança a transição de uma posição passiva, de dependência absoluta, à atividade de elaboração.

"O chocalho, por exemplo, começa a existir em função dessas condições estruturais do bebê para vê-lo, pegá-lo, manipulá-lo. Por esta razão, o bebê gestará a condição de se ocupar com afinco e prazer dos objetos e das ações que com eles realize, vasculhando-os, inteligindo-os, pois eles representam o desejo recalcado" (Molina, 2001, p.155), representam o desejo materno.

Vale ressaltar, que não se trata de processos "normais" do desenvolvimento, de uma maturação, como por exemplo, algumas teorias de desenvolvimento que afirmam que com 4 meses a criança faz isso, ou aquilo. Mas, de processos que implicam em uma possibilidade subjetiva desse Outro Primordial em desiludir gradualmente a criança. Algo que pode ser pensado a partir da noção lacaniana de potência materna. Ou seja, que é somente a partir da dissimetria estabelecida entre o apelo da criança e a resposta materna, que se abre para o pequeno a noção de potência de sua mãe. Já que "(...) ela não responde mais, quando, de certa forma, só responde a seu critério, ela sai da estruturação, e torna-se real, isto é, torna-se uma potência" (Lacan, 1995, p.69). E com isso, o objeto passa a valer como testemunho, representante dessa potência.

Todos os tipos de situações já estruturadas existem entre a criança e a mãe. A partir do momento em que a mãe é introduzida no real ao estado de potência, abre-se a possibilidade para a criança de um objeto intermediário como tal, como objeto de dom (Idem, 1995, p. 71).

Desta forma, é no espaço entre a alienação e a separação que se encontra o brincar. Brincar enquanto experiência que permite à criança suportar a frustração que causa o "desmame" - condição para a constituição da imagem e esquema corporal.

Uma experiência de prazer que se dá a partir do circuito pulsional, permitindo assim o acesso ao domínio imaginário do corpo. Brincar no e com o desejo do Outro! Em outras palavras, a criança brinca com esses significantes provindos do campo do Outro, para deles se apropriar. "(...) a possibilidade para que a palavra se inscreva no corpo encontra no brincar uma experiência fundamental, sem a qual, esta inscrição não poderia estabelecer-se" (Pinho, 2001, p.186).

Assim, podemos dizer que todo objeto, instrumento do brincar, deve ser tomado como um substituto do objeto perdido – objeto causa do desejo. Em outras palavras, do desejo materno.

Desta forma, os processos constituintes da infância se fazem entremeados pela dimensão do brincar. Sendo na ausência desta, que se encontram as sintomatologias graves presentes na infância, pois, como afirmamos no decorrer do trabalho, a condição para o brincar é a sua relação com um Outro desejante.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Garcia-Roza, L. A. (1936-) Introdução à Metapsicologia Freudiana. Rj: Zahar, 1991.

Garcia Yañes, Z. A. Aspectos Instrumentais na Psicose: Reflexões para uma Educação Inclusiva. Escritos da Criança, Nº6, Centro Lydia Coriat de Porto Alegre, 2001.

Lacan, J. (1901-1981). O Seminário, Livro 4: A Relação de Objeto. RJ: Zahar, 1995.

_______. (1901-1981). O Seminário, Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. RJ: Zahar, 1988.

Levin, E. A Infância em Cena: Constituição do Sujeito e Desenvolvimento Psicomotor. Petrópolis, Rj: Vozes, 1997.

Molina, S. E. A Estruturação Cognitiva na Criança Deficiente Mental e, Particularmente, na Criança com Síndrome de Down: Um Enfoque a Partir da Interdisciplina e da Transdisciplina. Escritos Da Criança, Nº6, Centro Lydia Coriat de Porto Alegre, 2001.

Pinho, G. O Brincar na Clínica Interdisciplinar com Crianças. In: Escritos Da Criança, Nº6, Centro Lydia Coriat de Porto Alegre, 2001.

Rodulfo, R. O Brincar e o Significante: Um Estudo Psicanalítico sobre a Constituição Precoce. Poa: Artes Médicas, 1990.

Spitz, R. A. O Primeiro Ano de Vida: Um Estudo Psicanalítico do Desenvolvimento. São Paulo: Martins Fontes, 1979.

Velasco, C. G. Brincar, O Despertar Psicomotor. Rj: Sprint, 1996.

Winnicott, D. W. (1896-1971). O Brincar e a Realidade. Rj: Imago, 1975.

Winnicott, D. W. (1896-1971). Os Bebês e Suas Mães. Sp: Martins Fontes, 1999.