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ISBN 85-86736-12-0 versão on-line

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Out. 2002

 

Inclusão: Normalização?

 

 

Renata De Luca

Psicanalista. Mestranda na Faculdade de Educação da USP.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Após o furor inclusivo presente nas últimas décadas, que preconizava a inclusão das crianças com dificuldades pelo sistema regular de ensino a qualquer custo, estudiosos da educação têm recortado a normalização como um grande risco deste projeto, que o levaria a um impasse.
Este trabalho objetiva falar do conceito de normalização, através dos clássicos estudos de Michael Foucault e Canguilhem, para oferecer uma contribuição teórica interdisciplinar no pensar a inclusão.

Palavras chave: Inclusão, princípio da normalização


ABSTRACT

After the present inclusive furor in the last decades, that extolled the children's inclusion with difficulties for the regular system of teaching at any cost, studious of the education they have been cutting out the normalization as a great risk of this project, that would take it to an impasse.
This work objectifies to speak of the normalization concept, through Michael Foucault's classic studies and Canguilhem, to offer a contribution theoretical inter knowledge in thinking the inclusion.

Index – terms: Inclusion, begining of the normalization


 

 

Podemos recortar dois grupos de produções teóricas no discurso pedagógico acerca da inclusão de crianças com dificuldades. Um primeiro que produz textos que falam das necessidades, do que falta para que a inclusão se concretize. São textos, em geral, queixosos de uma impotência: da falta um método, de recursos, de serviços de apoio, etc. Um segundo grupo diria respeito aos textos que buscam uma avaliação histórica para compreender a situação atual da inclusão, fazendo interface com a filosofia e psicologia principalmente.

Acompanhando a produção deste grupo, podemos recortar o conceito de normalização como um vetor que tem orientado às discussões acerca da inclusão. Em resumo, eles dizem que se a inclusão for pensada como o caminho para atingir um ideal de normalização das crianças com diferenças - através do método pedagógico, de um arsenal de recursos e de profissionais especializados- que possibilitem à criança atingir a uma norma, minimizando a diferença; ela corre o risco de tornar-se um projeto iatrogênico, que acabará por rodar em círculos.

O documento editado pelo MEC em 1994, "Política Nacional de Educação Especial", define normalização como:

"Princípio que representa a base filosófico-ideológica da integração. Não se trata de normalizar as pessoas, mas sim o contexto em que se desenvolvem, ou seja, oferecer, aos portadores de necessidades especiais, modos e condições de vida diária o mais semelhantes possível às formas e condições de vida do resto da sociedade (MEC/SEESP,1994:22)".

Podemos ver um fundamento no alerta teórico do risco da inclusão servir ao princípio da normalização (através do desenvolvimento de habilidades do aluno visando à normalização), quando lemos este documento oficial tido como uma referência nacional.

Como uma ilustração clara disto, temos os estudos das condições de inclusão das crianças surdas desenvolvidos por Souza e Cardoso (2001). As autoras chamarão nossa atenção para o fato de não ser levado em conta, na absorção destas crianças pelo sistema regular de ensino, sua singularidade lingüística e cultural. As crianças surdas, assim como as crianças de minoria lingüísticas, seriam convidadas à escola inclusiva, mas sem que esta reconhecesse suas particularidades lingüísticas como um sistema tecedor de cultura, visto que a língua portuguesa seria a língua dominante aceita nas escolas. As outras línguas seriam aceitas apenas como formas iniciais de integração, que possibilitassem ao aluno atingir o português, como se elas não fossem sistemas culturais de referências de mundo. As autoras nos lembrarão que este "monolinguísmo" é uma ilusão, visto que "são faladas no Brasil hoje, por cidadãos brasileiros natos, 203 línguas (Sousa e Cardoso, cit. Maher,2001:37)", e que a escola, ao considerar o português como única língua, estaria a serviço de uma pasteurização lingüística e cultural.

Lembrando a insistência de Paulo Freire para que a escola respeitasse a pluralidade lingüística, elas questionarão se este prestígio do português nas escolas não seria uma atitude discriminatória, pois colocaria os alunos que não falam a língua oficial como diferentes em relação a uma norma e o objetivo do ensino na aquisição disto considerado correto.

Da mesma forma, podemos pensar a inclusão das crianças com outras deficiências, evidentemente. Isto nos levaria a uma questão: À parte da questão legal ou humanista, para que incluímos? Seria para normalizar, para diminuir a constrangedora distância que separa o outro da norma?1

Gostaríamos de pedir um auxílio interdisciplinarr a filosofia para compreendermos o histórico da normalização e termos mais instrumentos para responder a esta pergunta.

 

Contribuições filosóficas acerca do princípio de normalização

George Canguilhem

Canguilhem, preocupado com as variações entre o normal e o patológico na saúde e na doença, propôs em 1943 uma especulação histórico-filosófica para as aquisições da medicina, questionando uma tese corrente no século XIX: A doença diferiria da saúde, assim como o patológico do normal devido a uma variação quantitativa.

Esta idéia seria absorvida de um princípio da patologia que trata o estado mórbido no ser vivo como uma simples variação de quantidade dos fenômenos fisiológicos que definem o estado normal da função correspondente.

Ele percorrerá uma idéia dogmática do séculoXIX: a da atribuição de valores opostos aos fenômenos normais e patológicos. E que as noções de excesso e falta possuem implicitamente um caráter normativo. Dirá ele que:

"É em relação a uma medida considerada válida e desejável –e, portanto, em relação a uma norma- que há excesso ou falta. Definir o anormal por meio do que é de mais ou de menos é reconhecer o caráter normativo do estado dito normal. Esse estado normal ou fisiológico deixa de ser apenas uma disposição detectável e explicável como um fato, para ser a manifestação de apego a algum valor (Canguilhem,2002:36)".

O autor apontará para uma interessante confusão etimológica que teria contribuído para a colusão entre anomalia e anormal, favorecendo a tomada de valores normativos em relação à doença. Dirá ele que o Vocabulaire philosophique de Lalande define anomalia como um substantivo que vem do grego an-omalos, significando desigual, rugoso ou irregular, referindo-se a um terreno. Mas que, freqüentemente, houve enganos ao derivar a etimologia do termo anomalia de a-nomos, ao invés do correto omalos. Nomos significa lei. Assim, anomalia que significaria um fato descritivo, um substantivo, seria confundido com anormal, que implica uma referência a um valor, a uma norma, a uma lei. Esta troca gramatical teria contribuído para uma colusão de sentido entre as duas palavras. "Anormal tornou-se um conceito descritivo e anomalia tornou-se um conceito normativo (op.cit:101)".

A conseqüência seria fazer de anormal o adjetivo de anomalia, aproximando as noções de excesso ou falta (portanto uma medida qualitativa) a um outro valor, o normativo. Aí já estaria agregada uma idéia de apego a algum valor que atendesse a um ideal de perfeição, pois só em relação a uma norma se poderia falar de mais ou de menos.

A intenção do autor seria questionar a polaridade entre o binômio saúde e doença, um tomado como a ausência do outro e associados a uma idéia de valores de excesso e falta, que por sua vez estariam correlacionados aos valores normal e patológico/anormal.

Dirá ele que a diversidade não é doença e que o anormal não deve ser confundido com o patológico, pois isto faria do anormal o adjetivo de anomalia. Em medicina, a terapêutica visaria o restabelecimento de um estado habitual dos órgãos considerado como ideal, confundindo a saúde com um estado de valor.

Esta idéia de saúde como o normal e o patológico como anormal beneficiou-se de uma significação equívoca do termo normal definido como "aquilo que não se inclina nem para a esquerda, nem para a direita, portanto o que se conserva num justo meio-termo (visto que norma significa esquadro); daí derivariam dois sentidos: é normal aquilo que é como se deve ser; e é normal, no sentido mais usual da palavra, o que se encontra na maior parte dos casos de uma espécie determinada ou o que constitui a média ou o módulo de uma característica mensurável (Canguilhem,op.cit:95)".

Canguilhem defenderá uma polaridade dinâmica da vida e dirá que não existe fato que seja normal ou patológico em si, pois a medida dependerá do meio. "Um ser vivo é normal num determinado meio, na medida em que ele é a solução morfológica e funcional encontrada pela vida para responder a todas as exigências deste meio (op.cit:113)".

Seria a relação entre os membros de uma espécie e o meio que estabeleceria a normalização. Esta definição expressaria a unidade das diferenças desses membros agrupados e seria sempre momentânea e relacional. "Não existe fato que seja normal ou patológico em si. A anomalia e a mutação não são em si mesmas, patológicas. Elas exprimem outras formas de vida possíveis (op.cit.113)"

Norma seria então, um conceito dinâmico e polêmico, derivado da palavra latina que significa esquadro. Enquanto normal, derivaria de normalis, ou seja, perpendicular. Assim, a norma serviria para retificar, para endireitar. Normalizar seria o mesmo que impor uma exigência a uma existência cuja variedade e disparidade se apresentariam como algo estranho.

Assim sendo, este conceito qualificaria negativamente a parte que não se enquadraria em sua extensão, atribuindo-lhe um valor de "torto, tortuoso ou canhestro" a tudo que resistisse à sua aplicação.

Concluirá dizendo que o próprio conceito de normal é normativo, na medida em que impõe regras ao universo. Regras estas que possuem uma função de correção de uma infração e obedecem a uma experiência antropológica e cultural. Como conseqüência, existiria entre o normal e o anormal uma relação de exclusão delimitada pela regra, com um apelo corretivo.

O autor passa a usar a expressão "intenção normativa" para demonstrar a utilização pelas sociedades de uma produção ideológica científica, situando entre 1759 (data do aparecimento da palavra normal) e 1834 (data do aparecimento da palavra normalizado) o período em que "uma classe normativa conquistou o poder de identificar a função das normas sociais com o uso que ela própria fazia das normas cujo conteúdo determinava (op.cit pp218)".

 

Michel Foucault

Foucault define a norma como o elemento que circula entre o disciplinar e o regulamentador, portanto, tem a capacidade de controlar ao mesmo tempo a ordem disciplinar do corpo e os acontecimentos aleatórios da população.

Em sua obra produzida entre 1975 e 1976, ele definirá o que chama de "sociedade de normalização" como aquela em que se cruzam a norma da disciplina e a da regulamentação, através de tecnologias de poder que cobrem toda a vida, do corpo humano ao coletivo.

Para fazer pensar o surgimento da "sociedade de normalização", Foucault retrocede aos séculos XVII e XVIII e demonstra em diversas faces do tecido social, o aparecimento de um discurso disciplinar de controle sobre os corpos individuais, através da vigilância e da disciplina, resultando em um poder disciplinar.

Ele nos conta que para controlar as epidemias que assolavam toda uma população, a solução adotada pelo estado que era o responsável por fazer viver, era a disciplina e a vigilância. Ao estudar as medidas que eram decretadas através de regulamentos, no final do séc. XVII, quando se decretava a peste em uma cidade, Foucault dirá que elas obedeciam primeiramente a um rigoroso policiamento espacial: cada qual em seu lugar fixo, sem a possibilidade de sair, sob pena de morte. Atendendo ao temor do contágio, todos os espaços eram recortados para possibilitar um controle efetivo de que cada um permanecesse em seu lugar. A vigilância permanente controlava todos os movimentos e todos os acontecimentos eram anotados num sistema de registro sem interrupção, sob a forma de relatórios.

Foucault dirá que a peste suscitou esquemas disciplinares, assim como a lepra havia suscitado modelos de exclusão. "A lepra e sua divisão; a peste e seus recortes (Foucault,1987,pp164)". Chamará nossa atenção para o fato delas não trazerem o mesmo sonho político, visto que o controle da lepra trazia o sonho da comunidade pura e o da peste, trazia o da sociedade disciplinar.

No entanto, apesar de suscitarem esquemas disciplinares distintos, o autor dirá que eles não são incompatíveis e que foram aproximando-se um do outro no século seguinte. São aplicados esquemas disciplinares (através do recorte dos espaços e da vigilância) aos lugares de exclusão. "Pestilentam-se os leprosos" proclama Foucault (op.cit,pp165). Assim, vemos todos os lugares de exclusão (onde estavam não só os leprosos, mas também os mendigos, os loucos e os vagabundos), serem absorvidos pelas idéias de controle unitário dos corpos e da disciplina que os regula. Os excluídos são individualizados para terem suas diferenças marcadas e isto acaba tendo uma dupla função: A divisão binária e a marcação (louco-não louco; normal-anormal) e o sentido da repartição diferencial (que deixava claro quem aquele indivíduo era, onde devia estar, como reconhecê-lo e como vigiá-lo constantemente).

"A divisão constante do normal e do anormal, a que todo indivíduo é submetido, leva até nós, e aplicando-os a objetos totalmente diversos, a marcação binária e o exílio dos leprosos; a existência de todo um conjunto de técnicas e de instituições que assumem como tarefa medir, controlar e corrigir os anormais faz funcionar os dispositivos disciplinares que o medo da peste chamava. Todos os mecanismos de poder que, ainda em nossos dias, são dispostos em torno do anormal, para marcá-lo como para modificá-lo, compõem essas duas formas que longinquamente derivam (Foucault,op.cit,pp165)".

Portanto, na obra foucaultiana, o surgimento da norma tinha o objetivo de propiciar a continuidade da vida, garantida pelo estado. Decorrerá desta intenção a dupla função (divisão binária e marcação) que serviria a um uso político, ao exercício de um poder. Na visão de Foucault, ao exercício do racismo intrínseco a sociedade moderna.

 

Conclusões

A educação especial pode ser pensada como a criação de um conjunto de técnicas e dispositivos que se orientam para a normalização de um outro deficiente. No entanto, tanto a normalização quanto o outro deficiente são fabricações da modernidade.

A proposta da inclusão reverte os próprios conceitos fundadores da escola moderna, que ao ser criada, recortou um vazio e disse quem não lhe pertencia. Como uma instituição moderna, a escola foi feita para educar para o futuro, criando cidadãos mais produtivos. Os deficientes não pertenciam a este projeto inicial, ou pelo menos, não foi para eles que a escola foi criada. Como incluí-los, então, sem uma inversão?

A inclusão que obedeceria a normalização seria uma forma de "resolver" este impasse, pois o outro estaria ali também garantindo a continuidade de um sistema do qual ele nunca seria, de fato, parte. Existiria sempre uma diferença entre o que lhe é pedido e o que é possível e isto também garantiria uma confortável distância entre nós e os outros. Colocar a inclusão a serviço da normalização seria uma forma perversa de ter o outro por perto, mas em uma distância segura.

Recorremos aqui a idéia lançada recentemente por Carlos Skliar, a pedagogia do outro como hóspede de nossa mesmidade hostil, onde até permitimos ao outro "anormal" que se aproxime, incluindo-o, desde que ele seja um hóspede imóvel, um hóspede hostilizado pela norma, que concorde em não se aproximar do conforto dos nossos aposentos.

 

Referências bibliográficas

Brasil, Ministério de Educação e Cultura - Política Nacional de educação especial. Brasília,SEESP,1994.

Canguilhem,G, (2002) – O normal e o patológico. Rio de Janeiro. Ed. Forense Universitária.

Foucault,M. (1987) - Vigiar e punir. Petrópolis. Ed. Vozes.

_________ (2000)- Em defesa da sociedade. São Paulo. Ed. Martins Fontes.

Skliar,C. (2002) – Y si el outro no estuviera ahí? Notas para uma pedagogia (improbable) de la diferencia. Buenos Aires. Ed. Miño e Dávila.

Souza, R.M. e Cardoso, S.H.B. (2001) Inclusão escolar e linguagem revisitando os PCNs. In Pro-Posições -Revista da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vol.12,n.2-3 (35-36) - Jul-nov 2001

 

 

Endereço para correspondência
Rua Tiradentes, 999 sala 4. Guanabara. Campinas/SP. CEP13083.240
e-mail: renatadeluca@uol.com.br
Fone: (19)32339400:

 

 

1 De forma alguma estamos questionando aqui o valor deste direito adquirido, que possibilitou a presença na escola de crianças que estavam institucionalizadas ou ainda sem acesso a escola. A inclusão é uma conquista social histórica. Estamos apenas chamando a atenção para seus objetivos, tanto os ditos como os não ditos, pois isto tem um efeito sobre o projeto, que seja o do retorno do recalcado.