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ISBN 85-86736-12-0 versão
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ISBN 85-86736-12-0 versão on-line
An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Out. 2002
A desrazão na Infância: o discurso analítico e a inclusão
The non-reason in childhood: the psychoanalytic discourse and the inclusion
Rinaldo Voltolini
RESUMO
Este texto discute as razões estruturais da recusa que a instituição escolar faz das crianças com DGD com o objetivo de melhor compreender uma possível intervenção pensada a partir do discurso analítico.
Palavras-chaves: Desrazão; inclusão; psicanálise
ABSTRACT
This text discusses the structural reasons for the refusal of schools of Pervasive Developmental Desórder (PDD) children. It aims to better comprehend a possible intervention from the psychoanalytic discourse.
Key-words: Non-reason; inclusion; psychoanalysis
O projeto social de incluir em escolas regulares as crianças portadoras de necessidades especiais, tão em voga atualmente, não deixa de suscitar divergências não só quanto a maneira de conduzi-lo, mas, principalmente, quanto sua própria viabilidade.
Tal vontade, entretanto, de fazer valer o direito da escola a essas crianças, que até ontem, só podiam freqüentar, ou ás vezes nem isso, escolas especialmente concebidas para elas, não poderia escapar de responder devidamente, à exaustão, a seguinte questão: o que tornou (e torna) a escola regular refratária a essas crianças?
Pois quando se pretende agregar é necessário saber porque se segregou.
As respostas usuais normalmente simplificam a questão já que aludem a uma inadequação de recursos físicos e humanos das instituições
Assim entendido a atenção se volta naturalmente para a constituição dos recursos necessários para a adaptação à nova realidade.
A Psicanálise tem sido convocada a ocupar um lugar nesta reforma institucional e isto, é claro, porque se espera dela um saber sobre a questão.
Responder tal convocação exige por parte dos psicanalistas muita cautela, pelo menos na observância a duas grandes questões:
- o que é definidor do discurso analítico não é nunca um falar sobre mas um fazer falar;
- não é típico do discurso do mestre (prevalente na instituição já que ordena e põe para funcionar) querer saber , mas sim, querer que as coisas funcionem.
Ou seja, uma certa tendência à pasteurização do discurso analítico, não é algo que só será encontrado no pior dos casos, mas essencialmente em todos. E isto porque a economia dos discursos analítico e do mestre são opostas.
Tratemos então de perguntar qual poderia ser a participação da Psicanálise neste assunto . E o faremos passando por questões desenvolvidas por Foucault (1961) sobre a loucura bastante pertinentes a nosso propósito.
Ele nos faz constatar duas atitudes históricas diante da loucura: uma a que ele dá o nome de experiência trágica da loucura e a segunda que ele chama de experiência crítica da loucura.
Na primeira haveria espaço para a palavra do louco. Sua inclusão social estava alicerçada no fato de que sua palavra não era amputada da dimensão de verdade e seu ato era tomado como obra.
Neste estado de coisas o louco podia circular nos espaços sociais porque sua circulação no discurso social não lhe prescrevia um lugar de exceção, de fora. A tragicidade de sua experiência não era feita de um material diferente da de todos.
Mas foi com a modernidade, entretanto, que nasceu a experiência crítica da loucura.
No cerne desta atitude estava: a exclusão da loucura do discurso social através do advento do predomínio da razão.
A loucura passou a ser inscrita como desrazão e a receber, então, o tratamento destinado a tudo aquilo que se inscrevesse deste lado: a exclusão.
As conseqüências essenciais disto foram, além do drama do confinamento, a amputação na palavra do louco das dimensões de palavra e obra.
O que eles dizem ou fazem, seja lá o que for, não deve ser tomado como tendo valor em si mesmo, já que será sempre a representação de uma falha de algo.
Os resultados práticos deste alijamento das dimensões de verdade e obra feito na palavra do louco, conhecemos bem. O louco terá o rótulo de louco sempre à frente de seu nome próprio, sendo desistoricizado e desresponsabilizado justamente por aqueles, que inscritos do lado da razão, irão interpelar o corpo do louco sempre para marcar nele alguma falha de algo.
Não é difícil perceber a relação entre isso tudo e o que se passa no interior das chamadas escolas especiais. São, na verdade, fatos da mesma ordem.
Também nestas escolas haverá uma inclinação para se tomar qualquer palavra, qualquer ato do aluno como expressão de sua doença, de sua desrazão com a conseqüente confirmação de indicação de intervenção e tutela.
Disso decorre também uma tendência para que toda abordagem desse aluno seja técnica ou terapêutica, tomando-o como objeto de uma intervenção que visa sempre retificá-lo.
Maud Manonni (1988) já nos fez observar que é nesta falta de espontaneísmo nas relações que se passam no interior destas instituições quando é a intervenção técnica que predomina, que está o ícone maior de sua ineficácia terapêutica.
Está mesmo nisso o pressuposto fundamental de sua proposta em criar Lugares de Vida que não são senão lugares onde se propunha apostar neste espontaneísmo das relações sociais, sem vigia técnica, sem intervenção dita terapêutica.
A mera presença de uma equipe técnica composta de uma série de profissionais, tais como, psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, orientadores pedagógicos, etc., demonstra que o essencial nestas instituições é retificar o que é falho.
O que Foucault assinala como característico da experiência crítica da loucura é justamente o fato de que se toma o que é desrazão tendo como medida o que se considera razão em relação à qual a retificação se justifica. Um exercício de poder cujo agente não precisa ser a burocracia estatal, mas , ao contrário, cada um que intervém.
Foucault tinha em relação à Psicanálise uma posição ambígua. Não nos estenderemos aqui no desenvolvimento desta relação ambivalente dele com a psicanálise, já que o fizemos em outra oportunidade (Voltolini, 1999) e indicamos também, para os que desejam nisto aprofundar, o trabalho de Birman (2000) que trata especificamente disto.
O ponto que nos interessa destacar se escora nesta ambigüidade de posição e nos leva a adotar uma posição que sustenta a psicanálise dentro da tradição da experiência trágica da loucura.
E isto para melhor delinear a participação possível do discurso analítico na questão da inclusão.
É verdade, e devemos notar isto logo de entrada, que o risco da psicanálise ser mais um discurso que retifica a desrazão é significativo. Ela pode, sem dúvida quando posiciona o Complexo de Édipo como normalizador da subjetividade ter uma leitura negativizante da psicose e disparar práticas de retificação da falha.
Frases verdadeiramente axiomáticas, tais como: na psicose não se deu a operação do nome-do-pai, ou ainda, o psicótico está na linguagem mas não no discurso, poderiam estar na mira foucaultiana como provas claras da participação na experiência crítica da loucura.
A razão disto é bem clara, já que ao indicar a ausência de propõe-se a instalação de.
A observação é de peso e nunca podemos estar totalmente certos de que estamos ao abrigo deste tique da retificação.
Um certo deslocamento da questão, no entanto, pode permite-nos demonstrar que a abordagem psicanalítica da psicose, como aliás o próprio Foucault chegou a admitir, não amputa na palavra do psicótico as dimensões de verdade e obra.
Comecemos apontando o fato de que Freud inicia tomando como objeto de estudo fatos extremamente cotidianos, como: sonhos, chistes, atos falhos, lapsos, etc.
Fatos que ele toma para encontrar neles sempre a mesma estrutura, a do inconsciente, estrutura que ele não diz ser diferente no funcionamento psicótico.
Ou seja, Freud postula uma continuidade entre os funcionamentos normal e psicótico esfumaçando a nitidez da linha demarcatória que as divide em dois lados.
A nosografia psicanalítica inclui ( e aqui já nos adiantamos com relação a discussão sobre a inclusão) à diferença da nosografia psiquiátrica que exclui. Ou seja, enquanto para o discurso psiquiátrico só há categorias para os que são definidos do lado da anormalidade entendendo-se a normalidade como homogênea, para a psicanálise as categorias nosográficas são extensivas a todos.
E isto não significa que tudo fica patologizado no sentido de deficiente. O pathos aparece, como em sua origem etimológica, para marcar a paixão (sofrimento/prazer) de cada um.
E uma nosografia do tipo inclusiva já oferece, por si só, alguma resistência a sustentação de qualquer prática cuja idéia de cura seja a de retificação de falha a partir de um modelo tido como o normal.
Curar uma psicose não significa transformá-la em neurose, mas implica rearranjá-la a partir de seus próprios elementos.
É mesmo por isto a proposta que prevê que no lugar da metáfora paterna não ocorrida no psicótico se possa instalar uma metáfora delirante. Não uma metáfora paterna, mas algo que valendo-se dos próprios elementos que compõem a estrutura leve a criar um efeito parecido.
A cura psicanalítica não tem a ver com normatização mas com dissolução de alguma coisa (o sintoma) que do modo como se arranjou faz mais sofrer do que viver.
O que está no cerne desta proposta é o trágico da existência e não a normatização dela.
Ao contrário de desistoricizar, esta cura passa exatamente pela história do sujeito para encontrar aí o arranjo sintomático que se propõe dissolver.
A palavra então, na medida em que será tomada como sobredeterminada por este arranjo sintomático falará sempre da verdade do sujeito.
Pois bem, uma vez chamado a desempenhar algum papel na chamada educação especial, o psicanalista se quer fazer algo que não o descaracterize, não pode prescindir deste pressuposto da idéia de cura.
O exemplo de Mannoni, citado acima, é para esta discussão bastante instrutivo.
O termo lugar de vida não é gratuito. Ele é um conceito construído por oposição à idéia de lugar de tratamento e como tal não se refere a um espaço físico, mas a uma atitude, uma posição ética diante da psicose.
Trata-se de criar as condições para permitir que eles vivam, o que implica, em certa medida, consentir com seu modo de vida sem tentar tecnicamente intervir para fazê-los funcionar como nós.
Trata-se de dar à experiência psicótica o estatuto de experiência trágica como aliás é dado ao neurótico, sem distinções, o que deveria ser típico da idéia de inclusão.
A idéia de inclusão supõe um para-todos e não um para o todo mais definidor da posição de integração.
Num modelo concebido como lugar de tratamento a experiência psicótica é tomada como disfunção, já que é a partir de supostas funções tidas como naturais que o sujeito será interpelado pelo discurso institucional e não por nada que aluda a sua existência.
É tomando um certo desempenho dessas funções, tido como parâmetro, na conta de razão que o comportamento do aluno será sempre confirmado como desrazão.
E aqui se acentua, nosso segundo ponto, a maneira psicanalítica de abordar a idéia de razão.
Para a psicanálise esta racionalidade contida no desempenho destas funções, é constituída e não natural. Tal processo de construção tem vicissitudes, sofre acidentes, mas não só para o psicótico
Ter um olho intacto em sua estrutura anátomo-fisiológica não garante que o sujeito saberá olhar. Ver comporta uma aprendizagem já que o que um ser humano vê não são meras imagens, mas imagens que se entrelaçam com significados.
Melman (1991) resgata, de maneira breve, a história do termo razão, até encontrar os termos de sua equação. Razão, vem de ratio, que vem de logos, que entre os gregos queria indicar, comedimento, prudência, auto-controle. Ou seja, capacidade de contenção, de não agir por impulso.
Fato que o leva, sem hesitação, a aproximar da idéia de castração. Para ele razão e castração tem uma origem solidária.
Pois bem, o que a escola recusa, fundamentalmente nestas crianças não é a falta de lógica de seus pensamentos, que aliás muitas vezes nem existe, mas sua característica de não-contenção. É aí que elas se encontram na desrazão.
Estas crianças não se diluem no grupo, fato de fundamental importância nas escolas, fundadas que estão na prática da homogeneização.
Não é pois, numa falta de esclarecimento sobre a psicose, ou então, numa carência de adequação de recursos físicos e humanos que reside o essencial desta recusa, ainda que estas carências não sejam desprezíveis, mas muito mais numa questão estrutural.
É claro que um caminho de solução para isso, pelo menos àquele a que um psicanalista poderia se engajar, não é tarefa, nem simples, nem fácil, mas é pelo menos claro e parece que está bem representado por outra noção central no pensamento de Mannoni, que é a de instituição estourada.
Atitude que consiste em fazer girar o discurso do mestre, economia que rege, a maior parte do tempo, o discurso institucional.
Estourar a instituição não significa destituí-la , assim como fazer girar o discurso do mestre não significa fazer crítica dele, mas manejá-lo, rearranjá-lo, sacudi-lo no intuito de criar ali novas brechas, que se sabe, serão provavelmente colmatadas em seguida, já que é próprio do mestre se recompor de eventuais abalos, mas nunca podendo ser o que antes era.
Não é pois, dando saber a quem pede, crentes de que com mais saber tudo se resolve, que um psicanalista irá fazer girar o discurso do mestre.
Mas é na tentativa de manejar este pedido mantendo ali uma certa tensão produtiva , que a ignorância assumida como viável e não como falha e impotência sempre comporta.
E para tanto não há outro caminho possível senão o de pôr a instituição a falar.
O projeto não é fácil e tampouco sem riscos entre os quais está, é claro, a possibilidade de em algum momento ser engolido e metabolizado pelo discurso do mestre.
Mas a economia do discurso analítico prescreve um lugar de dissolução para o sintoma que em nosso caso parece passar pela administração da desrazão na infância.
Esta administração não tem sido feita sem conflito, sem dúvidas, sem, enfim, uma tragicidade que nos resgata enquanto psicanalistas a um engajamento, em relação ao qual, parafrasendo Lacan, entendemos que não se deve recuar.
Referências bibliográficas
BIRMAN, J. (2000). Entre cuidado e saber de si: sobre Foucault e a Psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará
FOUCAULT, M. (1961). A História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo, SP: Perspectiva 1978.
MANONNI, M. (1988). Educação Impossível. (A Cabral ,trad. ) . Rio de Janeiro, RJ: Francisco Alves.
MELMAN, C. (1991). Estrutura lacaniana das psicoses. (E. A N. do Vale, trad.). Porto Alegre,RS : Artes Médicas.
VOLTOLINI, R. (1999). A questão da vocação: Psicanálise e Psicologia. Tese de doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.