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ISBN 85-86736-12-0 versión on-line

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2002

 

A antinomia disciplina/liberdade na concepção kantiana de educação

 

 

Rita Marcia Magalhães Furtado

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas

 

 


RESUMO

Análise dos escritos pedagógicos de Kant, a partir da antinomia disciplina/liberdade. A contemporaneidade da proposta kantiana de universalidade da educação para a construção de uma racionalidade iluminista.

Palavras-chave: Educação-Antinomia-Kant


ABSTRACT

Analysis of Kant’s pedagogical writings established through the antinomy discipline/liberty. The contemporaneousness of kantian propose of universality of the education to the construction of a illuminist rationality.

Index-terms: Education-Antinomy-Kant


 

 

"Educar é formar adultos, isto é, seres livres, responsáveis por si mesmos; a educação deve, pois, excluir todo o constrangimento do educador sobre o educando. Mas uma educação sem constrangimento, longe de libertar a criança, entrega-a a todas as influências e deixa-a desarmada perante as suas pulsões. Será então preciso admitir que o adulto se forma não pela educação que recebe, mas contra ela?"

Olivier Reboul

 

A leitura da coletânea das preleções ministradas por Kant como uma obrigatoriedade curricular no curso de Filosofia da Universidade de Königsberg nos anos de 1776/77, 1783/84 e 1786/87, organizada após sua morte por seu discípulo e assistente Theodor Rink, mostra-nos o filósofo preocupado com o problema da educação e coerente com as concepções apresentadas em suas obras estritamente filosóficas.

A educação é entendida por Kant como sendo a atividade humanizadora do homem. Constituída pelo cuidado com a infância e pela formação, esta educação é então negativa quando se utiliza da disciplina como uma inclinação a ser contida e positiva quando através da cultura, dá instrução e direcionamento à criança. Mas a principal classificação é a que também divide a obra: a educação física – a que requer cuidados com o corpo –, e a educação prática - a que se refere à formação do homem, visando a sua liberdade.

Sobre a Pedagogia, está dividida em três partes, sendo a maior delas aquela dedicada à educação física. Na introdução, Kant, com inegável otimismo pedagógico, declara sua confiança na educação que prepara para o presente mas também visa às gerações futuras. Diante disso, enfatiza a importância da disciplina para impedir o homem de desviar-se de seu destino e de sua humanidade.

Na parte destinada à educação física, Kant relata a importância dos cuidados materiais oferecidos à criança, enfocando numerosos aspectos, tais como: os cuidados a dar à primeira infância para impedir que os maus hábitos nasçam; o estímulo ao uso dos sentidos e do movimento para que a criança adquira o domínio intelectual e moral; o alerta para a necessidade de imposição de limites à criança; a importância das brincadeiras e a formação baseada na obediência, na veracidade e na sociabilidade.

No texto referente à educação prática, Kant descreve os objetos desta educação - a habilidade, a prudência e a moralidade - como formadoras da criança. Aborda ainda aspectos delicados sobretudo para a educação infantil naquela época: a sexualidade, a masturbação e a educação religiosa.

Sua leitura nos suscita um questionamento, herança da aplicabilidade pragmatista: qual seria a contribuição da concepção kantiana de educação para a discussão pedagógica contemporânea?

A atualidade do debate acerca das questões suscitadas por Kant deve-se justamente ao fato de que este pensa as questões e os problemas de seu tempo e que , de uma certa maneira, assumem caráter universalista e atemporal, por conta disso são também questões e problemas ainda presentes em nosso tempo.

Destacaremos aqui a antinomia disciplina/liberdade por entendermos que esta é a questão tratada por Kant em seus escritos pedagógicos que talvez se aproxime mais dos problemas que ainda hoje vivenciamos no processo educativo como um todo.

Se para Kant, é a educação que torna o homem humano, a disciplina – apresentada por ele como sendo negativa pois é "o que tira do homem sua selvageria" (1996, p.12) – é imprescindível na construção do conhecimento justamente por ser negativa.

Em Crítica da Razão Pura, a disciplina é assim conceituada por Kant: "denomina-se disciplina à compulsão mediante a qual se limita, e finalmente se extirpa, aquela propensão constante a divergir de certas regras" (1980a, p.350). Antecedendo o conhecimento, a disciplina apresenta-se como o elemento que prepara para o exercício do processo racional, que ainda não pode ser exercido pelo infante.

Como compreender então a apologia à disciplina reguladora dos princípios morais, feita por Kant logo na introdução de seus escritos pedagógicos e o apregoamento de uma educação emancipadora do homem, pautada na autonomia e na liberdade?

Se, na Crítica da Razão Pura, Kant coloca a questão da liberdade como uma antinomia situada na fronteira da causalidade e do determinismo, firmada na tese de que "a causalidade segundo as leis da natureza não é a única a partir da qual os fenômenos do mundo possam ser derivados em conjunto. Para explicá-los é necessário admitir ainda uma causalidade mediante a liberdade", em contrapartida apresenta sua antítese: "não há liberdade alguma, mas tudo no mundo acontece meramente segundo as leis da natureza." (1980a, p.232.). Já na Fundamentação da Metafísica dos Costumes Kant afirma com relação à liberdade: "todo ser que não pode agir senão sob a idéia da liberdade é, por isso mesmo, em sentido prático, verdadeiramente livre, quer dizer, para ele valem todas as leis que estão inseparavelmente ligadas à liberdade, exatamente como se a sua vontade fosse definida como livre em si mesmo e de modo válido na filosofia teórica." (1980b, p.150).

A liberdade então torna-se um "pressuposto necessário da razão num ser que julga ter consciência duma vontade, isto é, duma faculdade bem diferente da simples faculdade de desejar (a saber, a faculdade de se determinar a agir como inteligência, por conseguinte segundo leis da razão independentemente dos instintos naturais)." (1980b, p.159). Liberdade, sendo uma idéia, não poderá ser colocada no âmbito da experiência, pois não pode jamais ser conhecida, é um ideal regulador a ser atingido e que deve ser conciliado com a submissão e o respeito às leis. A autonomia do sujeito depende então de uma decisão a ser tomada. Convém considerar que a perspectiva idealista kantiana possui características distintas do idealismo cartesiano na medida em que considera que a razão por si mesma não responde sozinha pelo conhecimento. Os elementos fornecidos pela experiência sensível são imprescindíveis para a organização do conhecimento inteligível, que é o que realmente conduz à emancipação.

Em Sobre a pedagogia, a busca da liberdade, inclinação natural do homem, apresenta-se inicialmente como uma ameaça à conduta humana, pois pressiona o sujeito que se utiliza desse ideal a sacrificar-se até as últimas conseqüências por ele. Esta ameaça será dissipada a partir do momento em que o educador fizer uso do constrangimento. Isto apresenta-se como uma necessidade e é assim justificada por Kant na seguinte afirmação: "Um dos maiores problemas da educação é o de poder conciliar a submissão ao constrangimento das leis com o exercício da liberdade. (...) É preciso habituar o educando a suportar que a sua liberdade seja submetida ao constrangimento de outrem e que, ao mesmo tempo, dirija corretamente a sua liberdade." (1996, p.34)

Se as afirmações de Kant acima citadas nos causam um certo desconforto enquanto educadores, tais escritos não podem ser entendidos fora do âmbito de sua concepção filosófica da história na qual ele ressalta a importância do Estado e a necessidade de submissão e respeito às leis por ele impostas como projeto social que legitima o Iluminismo, movimento intelectual que exerceu grande influência na visão educativa por ele explicitada e que, utilizando-se de um projeto pedagógico submetido aos preceitos estatais, visava desenvolver novos programas de estudo que seriam "radicalmente novos, funcionais para a formação do homem moderno (mais livre, mais ativo, mais responsável na sociedade) e nutridos de ‘espírito burguês’ (utilitário e científico)." (Cambi, 1999, p.336)

Outro elemento imprescindível a ser considerado na compreensão da antinomia disciplina/liberdade é a idéia de infância. Idéia que na época era entendida apenas como um apêndice do ideal do homem adulto para se atingir o esclarecimento sendo pois bastante diferente da idéia contemporânea de infância. Nesse sentido, a noção de infância no "Século das Luzes" é assim descrita por Gagnebin: "A infância tem, nessa tradição de pensamento, um estatuto paradoxal: território perigoso das paixões, do pecado e do erro, zona escura sem os caminhos que traçam as palavras que iluminam a razão, ela é, no entanto, na nossa miséria humana, o único solo à disposição de onde possa brotar, naturalmente, essa m esma razão que lhe falta. Desprovida de logos – linguagem e razão – a infância o detém, porém, em potência." (1999, p.91).

Havia, portanto, a tentativa de superação da homogeneização do comportamento infantil ao do adulto. Entretanto, as instituições educativas seriam responsáveis por desenvolver o potencial destes "futuros adultos". Este processo formador está presente na concepção universalista e cosmopolita de Kant.

Neste sentido, torna-se evidente a educação concebida como um projeto a ser realizado, sedimentando-a em seu caráter extemporâneo e cosmopolita1 que podemos constatar nas seguintes citações de Sobre a pedagogia: "a educação é uma arte, cuja prática necessita ser aperfeiçoada por várias gerações." (p.19); "não se devem educar as crianças segundo o presente estado da espécie humana, mas segundo um estado melhor, possível no futuro, isto é, segundo a idéia de humanidade e da sua inteira destinação."(p.22); "o estabelecimento de um projeto educativo deve ser executado de modo cosmopolita" (p.23); "deve-se orientar o jovem à humanidade, no trato com os outros, aos sentimentos cosmopolitas. Em nossa alma há qualquer coisa que chamamos de interesse: 1) por nós próprios; 2) por aqueles que conosco cresceram; e, por fim, 3) pelo bem universal." (p.114).

O estatuto paradoxal explicitado por Gagnebin, no advento da modernidade apresenta-se como um desafio a ser vencido pela pedagogia contemporânea. A superação da cultura centrada no adulto, que tolhe todas as possibilidades infantis, chega com o avanço de determinadas concepções que redefinem a idéia de infância no âmbito concepções pedagógicas que não tenham por centralidade a disciplina. Enfim surge o que podemos definir como uma "pedagogia da ruptura", na qual assistimos a um rompimento com a tradição iluminista sem que se proponha alternativas satisfatórias à experiência de autonomia das crianças e nem tampouco de respeito à diversidade presente no espaço escolar. A preocupação com o extremismo contemporâneo desta pedagogia é assim posto por Arendt: "(...) ao emancipar-se da autoridade dos adultos, a criança não foi libertada, e sim sujeita a uma autoridade muito mais terrível e verdadeiramente tirânica, que é a tirania da maioria. Em todo caso, o resultado foi serem as crianças, por assim dizer, banidas do mundo dos adultos. São elas, ou jogadas a si mesmas, ou entregues à tirania de seu próprio grupo, contra o qual, por sua superioridade numérica, elas não podem se rebelar, contra o qual, por serem crianças não podem argumentar, e do qual não podem escapar para nenhum outro mundo por lhes ter sido barrado o mundo dos adultos." (1997, p.231).

A lucidez dos escritos de Arendt nos confirmam que a riqueza da educação consiste justamente nas antinomias presentes em todas as concepções já elaboradas e em todas as possibilidades do que ainda está por vir.

Uma das principais críticas feitas à pedagogia de Kant é a de que para ele a imagem da criança a ser educada já está dada, visando a autonomia do sujeito. Mas como conceber um processo de educação que não seja formador em sua essência? Se está "imagem ideal" do sujeito não está posta antecipadamente, qual o sentido de uma educação que se propõe "formadora"?

As questões que são hoje silenciadas por muitos daqueles que se propõem a pensar a educação, o são muitas vezes em defesa de um discurso de apologia do novo. Tal perspectiva despreza uma diferenciação básica para a compreensão de qualquer processo histórico: tudo que se constitui enquanto nova concepção, não se institui como uma idéia original em sua gênese, pois há um arquétipo a ser considerado para ser superado. Negar sua gênese e sua construção, ou se negar a pensar a educação a partir desse arquétipo é ser omisso com a historicidade.

Se Kant teve a coragem e a coerência de explicitar seu pensamento acerca dos preceitos morais e tratar de questões como disciplina, liberdade e constrangimento no processo educativo, reflexo da problematicidade de sua época, é a ele que devemos um avançar sobre a concepção pedagógica de Rousseau quando institui a crença na sociedade e no Estado como formadores da criança. Devemos também a ele o legado da instituição de uma educação pautada na ética, discussão hoje tão amplamente presente no âmbito escolar e social.

Por conta disso, torna-se imprescindível pensar a educação contemporânea como aquela que trabalha contra si – e aqui me posiciono ao questionamento explicitado por Reboul na epígrafe deste ensaio – desenvolvendo possibilidades de superação de todas as impossibilidades apresentadas cotidianamente, apontando para uma proposta que não se esgota no presente, mas, inconclusa, se constrói a partir das concepções educativas anteriormente colocadas bem como dos anseios postos a cada momento, repletos de historicidade, e que assim, se projeta na busca incessante de um futuro repleto de possibilidades.

 

Referências bibliográficas

ARENDT, H. (1997). Entre o passado e o futuro. São Paulo, SP: Perspectiva.

CAMBI, F. (1999). História da pedagogia. São Paulo, SP: Editora Unesp.

GAGNEBIN, J. M. (1997). Infância e pensamento. In: GHIRALDELLI JUNIOR, P. (org.). Infância, escola e modernidade.(pp. 83-100). São Paulo, SP: Cortez; Curitiba, PR: Editora UFPR.

KANT, I. (1980a). Crítica da razão pura. São Paulo, SP: Abril Cultural. (Col. Os Pensadores).

KANT, I. (1980b). Fundamentação da metafísica dos costumes.(pp. 101-162). São Paulo, SP: Abril Cultural. (Col. Os Pensadores).

KANT, I. (1986). Idéia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita. São Paulo, SP: Brasiliense.

KANT, I. (1996). Sobre a pedagogia. Piracicaba, SP: Editora Unimep.

REBOUL, O. (2000). A filosofia da educação. Lisboa, Portugal: Edições 70.

 

 

1 Estas características foram melhor trabalhadas por Kant no texto Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, publicado em 1784. A citação aqui transcrita revela a mesma preocupação presente em Sobre a pedagogia: " o louvável cuidado com os detalhes com que se escreve a história de seu tempo deve levar cada um naturalmente à seguinte inquietação: como nossos descendentes longínquos irão arcar com o fardo da história que nós lhes deixaremos depois de alguns séculos." (Kant: 1986, p.24)